Em O avesso da pele, que chega às livrarias na próxima semana, Jeferson Tenório adota a segunda pessoa do singular como voz narrativa, estratégia para mostrar a saga de um filho que reconstrói a história do pai a partir de uma morte trágica. Jeferson passa por temas que dominam o debate público no Brasil e no mundo, como, por exemplo, a violência policial cujos alvos preferenciais são pessoas negras. No entanto, vai além ao propor não só mostrar como a cor da pele, num país racializado como o Brasil, determina toda a trajetória de um indivíduo, principalmente os infortúnios, mas o avesso, ao revelar as subjetividades que, a despeito de todos percalços do sujeito, permitem uma aproximação afetuosa com esses personagens.
Isso faz com que o autor escreva sobre a temática étnico-racial, mas a partir do fazer literário consciente de que a forma também é cara à literatura. “Do ponto vista estético, eu classifico como literatura. Sem adjetivos. Do ponto de vista político e de reivindicação de um determinado espaço, talvez seja importante acrescentar o adjetivo ‘negra’”, diz.
Isso faz com que o autor escreva sobre a temática étnico-racial, mas a partir do fazer literário consciente de que a forma também é cara à literatura. “Do ponto vista estético, eu classifico como literatura. Sem adjetivos. Do ponto de vista político e de reivindicação de um determinado espaço, talvez seja importante acrescentar o adjetivo ‘negra’”, diz.
Jeferson Tenório nasceu no Rio de Janeiro, em 1977, e mora em Porto Alegre. Estreou na literatura com o romance O beijo na parede (Sulina, 2013), eleito o Livro do Ano pela Associação Gaúcha de Escritores. É autor também do romance Estela sem Deus (Zouk, 2018). O avesso da pele é sua estreia na editora Companhia das Letras, que destaca o lançamento como uma das grandes apostas do ano: os direitos de adaptação audiovisual já foram vendidos para a RT Features, a mesma produtora de Me chame pelo seu nome, e há negociações em andamento para tradução em diversos países. A capa, de alto impacto, reproduz a obra Trampolim (2019), que integra a série Ba- nhistas, do artista plástico brasiliense Antonio Obá.
“Poucos são os escritores brasileiros da atualidade tão seguros e originais na abordagem narrativa e na construção da linguagem — é única a voz do narrador em primeira pessoa que assume uma roupagem de segunda pessoa. Com inquestionável talento para criar verdades — aquelas que só podem e só conseguem surgir com vigor na literatura —, Jeferson Tenório se coloca como autor que nos ajuda a compreender nossa identidade, brasileira, negra, humana, nosso drama”, destaca Paulo Scott, autor de outro romance vigoroso sobre o racismo no Brasil, Marrom e amarelo. Doutorando em teoria literária pela PUC-RS, professor de literatura e pesquisador, Jeferson concedeu a seguinte entrevista ao Pensar do Estado de Minas:
Em O avesso da pele, você experimenta diferentes vozes narrativas. O que o levou a optar pela voz em segunda pessoa? O que essa estratégia traz à narrativa?
Penso que cada projeto literário tem seu modo de ser contado. O avesso da pele tinha de ser assim. Do ponto de vista técnico, creio que a escolha da segunda pessoa convoca o leitor a participar da história. Embora o romance tenha Pedro como único narrador, eu quis construir uma narração que, de certo modo, transitasse entre a 1ª, a 2ª e a 3ª pessoas. Isso porque quando se narra em 2ª corre-se o risco de cair em certos vícios e repetições e que podem cansar o leitor.
Há elementos comuns entre você e Pedro? Ou seria mais pontos comuns entre você e o professor Henrique? Você, como ele, é professor de literatura. Também dá aula em escolas públicas?
Bem, não sou professor de escola pública há pelo menos 10 anos. No entanto, a experiência que tive no início de minha docência certamente me deu um bom material para transformar em li- teratura. Assim, tanto Pedro como Henrique formam um duplo que são e não são, ao mesmo tempo, pedaços de mim.
Ao construir os personagens, você não os apresenta de imediato como negros. Essa característica aparece, na relação do personagem com o outro, principalmente a partir de posicionamentos do interlocutor que evidenciam a cor da pele. Embora o Brasil por muito tempo tenha usado o argumento da miscigenação para dizer que não era um país racista, esse é um problema nosso, talvez o maior. A racialização marca todas as relações, de amizade, amo- rosas, profissionais?
Creio que esse seja um ponto delicado da narrativa. A preocupação em não racializar meus personagens de imediato parte justamente do desejo de contar uma história que não se constitui apenas pelo discurso racial, mas por uma busca subjetiva do narrador, pois é o avesso de Henrique que frustra o sistema racista, não a cor de sua pele. A reivindicação aqui está para além de uma denúncia de um estado racista. O avesso da pele é, antes de tudo, uma reivindicação do afeto. Uma reivindicação de uma vida interrompida pela máquina policial. Nesse sentido e levando em consideração o racismo estrutural que se organizou no Brasil, creio que todas as relações acabam, de algum modo, sendo marcadas pelo racismo. O avesso... talvez seja, nesse sentido, a representação de um Brasil que não resolveu a questão racial e que talvez esteja longe disso.
Você aborda, ao construir a narrativa, temas que atravessam a vida de negros no Brasil, como a relação amorosa inter-racial, o preconceito sob a máscara da brincadeira, a violência policial tendo o jovem negro como principal alvo. São expe- riências muito difíceis para quem é negro. Como é para você escrever sobre esses temas? Em que medida eles o atravessam?
Penso que a literatura é um modo de lidar com nossos fantasmas e pesadelos. Ninguém é negro impunemente. Não se sai ileso de uma sociedade racista que, mesmo diante de uma pandemia, não dá trégua. O estado e a perseguição policial são nossos pesadelos e fantasmas desde muito tempo.
A sua estreia como romancista foi com O beijo na parede (2013), premiado pela Associação Gaúcha de Escritores. Em uma entrevista, você externou certo estranhamento por seu romance ser um dos poucos, na literatura brasileira contemporânea, com um protagonista negro. A escrita desse personagem partiu do desejo de suprir essa lacuna ou decorre de sua vivência no Brasil?
Cada livro tem um processo diferente. No caso de O beijo na parede, eu não tinha muita consciência do que estava produzindo em termos de representatividade, digo, para mim na época isso não era uma questão a ser discutida. Escrevi porque tinha de escrevê-lo. João, meu personagem, era, em primeiro lugar, um acerto de contas com minha infância e com meus escritos guardados. Só me dei conta da singularidade de haver construído um personagem negro protagonista quando terminei o livro. Certamente, esse processo é oriundo de minhas vivências, mas não só. É a fabulação que o torna verossímil na minha visão.
Em Estela sem Deus (2018), o seu segundo romance, você mostra como o racismo e suas implicações econômicas provocam o amadurecimento precoce de jovens ne- gros. De certa forma, em O avesso da pele essa denúncia é retomada na apresentação da realidade dos alunos do professor Henrique?
Talvez a palavra exata não seja “denúncia”, mas uma certa “conscientização” dos meus narradores frente ao sistema racista. A questão que se coloca em meus projetos literários passa pelo entendimento de que negros não são pobres, não sofrem violências e não são mortos por meras circunstâncias da vida. Isso acontece porque eles são negros. Essa é a questão. Portanto, a consciência precoce desta condição é que nos garante estratégias de sobrevivência. Uma dessas estratégias é a maturidade precoce. O que quero dizer é que não há tempo para ingenuidade quando se é negro. Não há tempo para se ter infância quando a perseguição racista está instalada na sociedade. Os alunos do professor Henrique representam essa perda da ingenuidade diante da violência e do descaso.
Em O avesso da pele, você apresenta Porto Alegre como pano de fundo. Em Marrom e amarelo, de Paulo Scott, a cidade também aparece. Você identifica peculiaridades do racismo em Porto Alegre em comparação com outras cidades brasileiras?
Marrom e amarelo, do Scott, é um livro essencial para compreendermos a complexidade do racismo estrutural no Brasil. Certamente, o sul do país apresenta algumas especificidades no que diz respeito ao racismo. Sou carioca, vim para Porto Alegre aos 13 anos e lembro-me de sentir rapidamente os efeitos de ser negro aqui. Tenho a impressão de que o racismo é mais escancarado no Sul.
A professora Regina Dalcastagnè, em pesquisa extensa e criteriosa sobre o romance brasileiro no século 20, mostra quem é e sobre o que escreve o autor brasileiro. Ela constata que a maioria é formada por homens brancos, de classe média, que escrevem sobre o universo onde se inserem. Como você vê a inserção de diferentes vozes e corpos na literatura brasileira?
A pesquisa da professora Regina confirma aquilo de que já desconfiávamos: a literatura brasileira sempre teve cor, classe e gênero. Acho que as vozes oriundas de outras experiências podem ajudar a contar uma história sobre o Brasil por meio da literatura e que precisa ser contada. Reconhecer essas vozes é um modo de ampliar nossa capacidade de compreender por que o Brasil se tornou um país como o que vemos hoje.
Em dado momento, a literatura de autoria negra recebia a definição de literatura negra. No entanto, ao mesmo tempo em que evidencia a produção de um segmento com pouca visibilidade e oportunidade no mercado editorial, essa adjetivação pode circunscrever a escrita a um nicho. Como você classifica a literatura feita por você?
Do ponto vista estético, classifico como literatura. Sem adjetivos. Do ponto de vista político e de reivindicação de um determinado espaço, talvez seja importante acrescentar o adjetivo “negra” em algum momento, desde que isso não sirva para encerrar a literatura produzida por pessoas negras num gueto. É importante que o mercado editorial entenda que existe uma demanda por histórias que contêm parte de um Brasil silenciado.
O avesso da pele
.De Jeferson Tenório
.Companhia das Letras
.265 páginas
.R$ 59,90.
.E-book: R$ 29,90