Jornal Estado de Minas

"O ressentimento está enraizado na sociedade"

Apesar de o imperativo da alegria do futebol, da cordialidade e de festas populares como o carnaval constituírem a face externa mais propagada do Brasil; temerosa de parecer ressentida, a sociedade brasileira costuma “deixar barato” o resgate de grandes injustiças de sua história. Além de não elaborar e agir coletivamente para superar os próprios traumas – como a escravidão, a violência contra indígenas e a tortura praticada pelo estado brasileiro contra opositores do regime autoritário-militar instalado pelo golpe de 1964 –, a sociedade brasileira tem pressa em perdoar e em esquecer. Em consequência, não reconhece a própria responsabilidade coletiva pela solução de seus problemas, atribuindo sempre a um outro a “culpa” por todos os seus males. 





Ressentimento é o nome da obra pioneira da psicanalista e escritora Maria Rita Kehl, que ganha nova edição pela Boitempo. A autora considera: “O ressentimento na sociedade brasileira está enraizado em nossa dificuldade em nos reconhecermos como agentes da vida social, sujeitos da nossa história, responsáveis coletivamente pela resolução dos problemas que nos afligem”. 

O livro conceitua o ressentimento a partir da perspectiva da clínica psicanalítica, da filosofia de Nietzsche e de Espinosa, da produção literária e do campo da ação política. “Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer”, afirma ela. “A passividade é uma das atitudes que caracterizam o ressentido, um vingativo que não se reconhece como tal”, define a autora, que concedeu a seguinte entrevista ao Estado de Minas. 

O que é o ressentimento e como esse tema é tratado pela psicanálise?
O ressentimento não é um conceito da psicanálise. Pesquisei muito e não encontrei na psicanálise nada específico sobre o ressentimento. Pensei em começar a desenvolver essa teoria neste livro. Nietzsche foi o filósofo que desnudou a patologia do ressentimento e articulou-a aos valores morais impostos pelo cristianismo. O ressentimento é uma categoria do senso comum que nomeia a impossibilidade ou a recusa de esquecer ou superar um agravo. Na língua portuguesa, o prefixo “re” indica o retorno da mágoa, a reiteração de um sentimento. O ressentido não é alguém incapaz de esquecer ou perdoar; é alguém que não quer esquecer, não quer superar o mal que o vitimou. É diferente de uma mágoa, em relação à qual, se a pessoa se desculpar, passa. A passividade é uma das atitudes que caracterizam o ressentido. É assim que Nietzsche diz que o ressentimento é uma vingança adiada: você quer se vingar, mas não tem coragem, não chegou a hora, não sabe o que fazer. Ressentir-se significa, então, atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. E ao não assumir a responsabilidade sobre a própria situação, o ressentido busca apenas uma vingança imaginária e adiada. Talvez o ressentido seja capturado por algo que Freud chama de “a covardia moral do neurótico”: quer ser tão bom, tão especial, tão puro que não enfrenta, recua porque finge uma superioridade moral, mas não perdoa. Então, o ressentido é um vingativo que não se reconhece como tal.





Se a passividade é uma das características do ressentimento, assim como lançar sempre a culpa sobre o outro não assumindo a responsabilidade sobre a própria situação, que consequências tem ressentimento sobre a cidadania e a vida política?
Vários autores, entre os quais o filósofo alemão Max Scheler (1874-1928), sugerem que o ressentimento social tenha origem nos casos em que a desigualdade é sentida como injusta diante de uma ordem simbólica fundada sobre o pressuposto da igualdade. Então seria mais provável encontrar esse sentimento em democracias liberais modernas – que acenam para os indivíduos com a promessa de uma igualdade social que não se cumpre, pelo menos nos termos em que foi simbolicamente antecipada – do que em sociedades de castas, fortemente estratificadas, sem mobilidade social. A atitude ressentida, de passividade queixosa, torna os sujeitos impotentes como agentes da transformação política que lhes interessa. Então, no dizer de Pierre Bourdieu, o ressentimento é uma revolta submissa. A atitude que se opõe a ela, diante de injustiças e humilhações, seria a da revolta ativa, por todos os meios legítimos de que a sociedade democrática dispõe. Uma das causas do ressentimento seria, assim, o divórcio entre a potência do sujeito e sua capacidade de agir: é o terreno dos afetos reativos, da vingança imaginária e adiada, da memória que só serve à manutenção de uma queixa repetitiva e estéril. O ressentido deseja a ordem – por isso é compatível com o conservadorismo – contanto que possa beneficiar-se dela, nem que seja na condição de vítima. Se o ressentimento é o avesso da política, ele só pode ser curado pela retomada do sentido radical da ação política. O ato político implica sempre risco de desestabilizar a ordem. Ao contrário da resignação ressentida, da revolta submissa do ressentimento, ele nasce de uma aposta na possibilidade de se modificarem as condições estruturais presentes em sua origem.

Em sua avaliação, o ressentimento coletivo – típico de determinadas conjunturas – pode explicar a ascensão pelo voto de regimes como o nazismo, o fascismo e de lideranças populistas como presenciamos na atualidade, mundo afora?
O filósofo búlgaro Tzvetan Todorov (1939-2017) atribui ao ressentimento a eleição de Hitler na Alemanha, que se deu pela frustração de uma classe média baixa espremida entre a burguesia e a potência de luta do proletariado durante a grande inflação do início dos anos 1930. Para Todorov, o ressentimento na Alemanha brota de parte das chamadas “classes decadentes”. Ao buscar uma estratégia de desidentificação com seus vizinhos mais pobres e fracassar na tentativa de ascensão social, milhões de cidadãos dessa classe média decaída encontraram a resposta na designação de um culpado pelo sofrimento que eles entendiam como humilhação social. 

E, nesse caso, como se revela a subjetividade do ressentimento?  
A disposição subjetiva do ressentimento, que pede um bode expiatório para desimplicar o sujeito de suas culpas e seus fracassos, se revela nesse caso em que o personagem ideal para carregar tal culpa não poderia ser “um de nós”. Não obstante, tinha de pertencer à mesma ordem social. Ninguém melhor que esse semelhante (socialmente), mas tão desigual (subjetivamente): o judeu. “Então a culpa é deles.” Essa é uma das frases que Nietzsche usa para definir o ressentimento: “Eu sofro. Ponto. Alguém deve ser culpado”. Então, se é uma pessoa que não tem esse pendor ao ressentimento, que tem um pouco de humildade, vai dizer: “Estou sofrendo, o que será que eu fiz para cair nesse buraco?”.  Não no sentido da culpa, mas se entrei no buraco, quero achar a saída. Na Alemanha, o judeu passou a ser o “culpado” disso: “Ele quem tirou o meu emprego”, “Não quero ser vizinho de bairro”. É evidente que o ressentimento, nesse caso, participa das motivações inconscientes dos eleitores de Hitler, mas não esgota as razões de tal escolha. Todorov faz o seguinte raciocínio: com a profunda crise econômica e crescente pauperização da população, uma parte da classe média caiu, se sentiu humilhada, aderindo a uma figura que prometia empoderá-la diante daqueles que acreditavam não estar tão atingidos pela crise. As crises econômicas destroem a confiança que as pessoas teriam no futuro. Assim, apostas regressivas parecem ter conferido alguma segurança imaginária aos eleitores de Hitler. 





O Brasil viveu o trauma da ditadura militar, mas, diferentemente dos outros países da América Latina, só em 2011 instalou a sua Comissão Nacional da Verdade. E o fez décadas depois de ter anistiado torturadores e militantes que resistiram à ditadura – dando igual peso às violações cometidas por agentes do Estado e por aqueles que se rebelaram contra o golpe de estado e a nova ordem autoritária imposta. Que tipo de ressentimentos afloraram da Comissão Nacional da Verdade? 
A tortura cometida por agentes de estado em presos sob custódia – à qual seguia-se o desaparecimento de corpos – é crime de lesa-humanidade. Isso foi anistiado no Brasil. Na Argentina, as mães da Praça de Maio, agora já são avós, ficam na praça, já mudaram de presidentes tantas vezes, pressionando para saber onde estão os desaparecidos pela ditadura. Aqui não teve um movimento político forte confrontando os crimes da ditadura. Quando a Comissão da Verdade começou a falar, começou a aparecer essa teoria dos dois lados, que era um jeito de as pessoas não se sentirem tão mal. Eu fui abordada na rua algumas vezes: “Ah, a sra. é da Comissão da Verdade... E o outro lado, não vai apurar não, o lado dos terroristas?”. Eu percebi que havia essa reação ressentida de alguns, que foi se azedando, que em parte explica a eleição de uma pessoa que elogia torturador em público. Tem dois ressentimentos que se juntam – uma coisa é: “Aconteceu algo muito importante e horrível no país que eu não sabia; preferia que não tivesse acontecido, não gostei”. A outra é: “Não acredito que as pessoas que tinham poder político no Brasil fizeram tanta crueldade”. E diante de uma certa angústia, busca-se o conforto mental no argumento: “Ah, então... eles mereceram”. É o conforto mental dos covardes. Não se pode dizer que a sociedade brasileira tenha perdoado os militares por seus abusos, seus crimes, por 20 anos de atraso no desenvolvimento da democracia. Nada foi perdoado porque nada foi levado às últimas consequências, nenhum ex-ditador foi julgado, ninguém precisou pedir perdão. Ao contrário do que fizeram os argentinos, a sociedade brasileira costuma “deixar barato” o resgate das grandes injustiças de sua história. Não passamos nada a limpo, não elaboramos nossos traumas nem valorizamos nossas conquistas. Por isso mesmo, nós, brasileiros, não nos reconhecemos no discurso que produzimos, e sim naquele que o estrangeiro produz sobre nós. Por essa mesma razão, estamos sempre em dívida para com uma identidade perdida.

Embora o Brasil tenha fama de abrigar um povo alegre e cordial, somos uma nação fundada em atos de violência contra os indígenas, contra africanos escravizados – povos que lutaram e resistiram à dominação, embora essa resistência nem sempre esteja devidamente retratada na memória histórica. Por que entramos no século 21 perpetuando e aprofundando as injustiças sociais? Somos um país ressentido?
Os brasileiros, em geral, não se consideram ressentidos. De fato, o imperativo da alegria, somado aos espaços genuínos de festividade popular em nossa cultura, favorecem o esquecimento dos agravos. Mas o ressentimento não deixa de estar presente entre nós, disfarçado em formações de linguagem irônicas, cínicas ou queixosas, que parecem – mas não são – uma crítica progressista em relação a nossas falhas históricas e às nossas insuficiências sociais. Falhas que não são interpretadas como dívidas (para com o passado), passíveis de se pagar por meio da ação presente. Ao contrário, concebemos nossos problemas sociais como insuficiências que nos parecem sempre injustas, de responsabilidade de um outro, de alguém que teria o poder de remediar nossas mazelas, mas não o fez. 

O ressentimento faz parte da história de nosso país?
O ressentimento na sociedade brasileira está enraizado em nossa dificuldade em nos reconhecermos como agentes da vida social, sujeitos da nossa história, responsáveis coletivamente pela resolução dos problemas que nos afligem. Suas raízes remontam à tradição paternalista e cordial de mando, que mantém os subordinados em uma relação de dependência filial e servil em relação às autoridades políticas ou patronais, na expectativa de ver reconhecidos e premiados o bom comportamento e a docilidade de classe. No Brasil, nosso compromisso com a alegria, a festa, a irresponsabilidade nos faz rejeitar a memória e abandonar os projetos de reparação de injustiças passadas. Distantes das condições sociais dos países do chamado Primeiro Mundo, idealizado e invejado, contentamo-nos em ser reconhecidos internacionalmente a partir da imagem de povo alegre, despreocupado e sensual que o colonizador fez de nós, desde a carta de Caminha. Tal compromisso nos impede de levar a reparação das injustiças às últimas consequências. Temos pressa em perdoar os inimigos, com medo de parecer ressentidos – mas o ressentimento, afeto que não ousa dizer seu nome, se esconde justamente nas formações reativas do esquecimento apressado, tão característico da sociedade brasileira.

Ressentimento
De Maria Rita Kehl
Boitempo Editora
208 páginas
R$ 53