Jornal Estado de Minas

DRAMA E RISO

F. Scott Fitzgerald e D. H. Lawrence: histórias de Hollywood e da condição feminina na Inglaterra


F. Scott Fitzgerald
Era uma vez em Hollywood

“A angústia em Hollywood é endêmica e sempre pungente. Quase invariavelmente, um executivo está sendo consumido por algum problema insolúvel e, democraticamente, faz todo mundo participar do sentimento, de graça. O problema, seja ele de saúde, seja de produção, é enfrentado corajosamente com gemidos remunerados entre mil e cinco mil dólares por semana. É assim que os filmes são feitos.”



Mais suave é a noite em que se pode ler um conto tão irônico e cheio de verve como O segredo de Pat Hobby, uma das 17 histórias de Francis Scott Fitzgerald (1896-1940), reunidas em livro e traduzidas pela primeira vez no Brasil.

Mais conhecido como romancista (O grande Gatsby, Belos e malditos, Este lado do paraíso), Fitzgerald se aproveitou de sua experiência, um tanto turbulenta, em Hollywood (trabalhou em dezenas de roteiros, entre eles o de ... E o vento levou) para criar as desventuras em série de um roteirista decadente, que experimentou o apogeu no cinema mudo e, depois de transitar entre todos os valores (“de mil dólares a zero”), vive mendigando um trabalho, um drinque e um flerte (não necessariamente nessa ordem). “Para pedir dinheiro emprestado com elegância, é preciso escolher o momento e o local”, ensina Hobby. 

Publicadas originalmente na revista Esquire entre janeiro de 1940 e maio de 1941, as 17 histórias protagonizadas pelo roteirista foram publicadas, portanto, durante a Segunda Guerra Mundial. Oitenta anos depois, em tempos de medo e luto por causa da pandemia do coronavírus, os contos cumprem a mesma função: alegram, divertem e nos levam, ao menos por algum tempo, para longe deste insensato mundo.



“As coisas andam difíceis”, diz um produtor para o roteirista, em No meio do caminho. “Não podemos pagar salário para um sujeito a menos que ele tenha uma ideia.” E Hobby rebate: “Como é que eu posso ter ideias sem receber salário?”.

A tradução de As histórias de Pat Hobby é do jornalista José Geraldo Couto, que destaca na apresentação a “prosa envolvente, o humor irônico e, sobretudo, a profunda e poética compreensão do fracasso humano” de Fitzgerald. Um dos melhores críticos de cinema do país, o tradutor concedeu a seguinte entrevista ao Pensar.

O que foi mais marcante na relação de F. Scott Fitzgerald com Hollywood, descrita em sua apresentação como “intermitente e conflituosa”?
Acho que existe um aspecto interessante na relação dele com a indústria do cinema. Ao contrário de vários outros escritores, que não entendiam que o cinema era outro meio, que exigia outro tipo de escrita, ele tinha plena consciência disso. Veja, por exemplo, a passagem do romance O último magnata, em que o produtor Monroe Stahr descreve a um perplexo escritor/roteirista a construção de uma cena especificamente cinematográfica. O problema, aparentemente, é que ele, Fitzgerald, não tinha a paciência, a humildade ou a estabilidade emocional para adaptar seu talento por muito tempo a essa tarefa.





“Aquilo não era uma arte, ele costumava dizer – aquilo era uma indústria.” Como Fitzgerald se colocava nessa oposição arte x indústria? E qual era o papel que Pat Hobby tentava desempenhar nessa engrenagem?
Como eu disse na resposta anterior, Fitzgerald entendia bem a especificidade da indústria e de seus objetivos, mas certamente também percebia agudamente o preço emocional que pagava quem entrava nessa engrenagem. O Pat Hobby é o sujeito que, sem muito talento, tenta se virar nesse mundo à força de malandragem, de “jeitinho”. É o lado cômico desse processo de adaptação ou inadaptação retratado de modo sério, quase trágico, em O último magnata.

A prosa de Fitzgerald tem ironia, verve, agilidade; captura um certo espírito do seu tempo. Quais os maiores desafios da tradução?
Pois é, você disse bem: a prosa dele tem ironia, verve, agilidade. O desafio era tentar transpor isso para a língua portuguesa, mais precisamente para o leitor brasileiro de hoje, sem perder no processo nenhuma dessas virtudes, e sem cair na tentação de fazer mais graça que o original, nem resvalar no anacronismo. Claro que muita coisa sempre se perde, mas o esforço é de preservar o máximo possível as qualidades do texto original.

Um dos contos mais marcantes do livro é Pat Hobby e Orson Welles. O que chama a atenção na forma como Fitzgerald retrata o cineasta no conto? Como Welles era visto dentro da indústria do cinema?
Naquele momento em que o Fitzgerald escreve, isto é, quando Welles tinha acabado de chegar a Hollywood como um garoto prodígio, antes mesmo de realizar seu primeiro filme, a atitude geral se dividia entre os que estavam deslumbrados e os que sentiam despeito diante daquele outsider abusado. Acho que é esse clima que o conto capta de forma deliciosa.



A ironia é que Welles acabaria tendo, de certa forma, um destino análogo ao do próprio Fitzgerald, que também causou sensação muito jovem e depois caiu num certo descrédito e encontrou dificuldades para manter sua produção no mesmo alto nível. Ambos foram grandes artistas apenas parcialmente aceitos e reconhecidos em sua época.

Quais as características da prosa de Fitzgerald em romances como O grande Gatsby, que podem ser reconhecidas nas histórias ou nos personagens dos contos? 
Acho que além da fluência da linguagem, da riqueza das imagens e do “ouvido” para os diálogos, o que há em comum, a meu ver, é a aguda sensibilidade dele para o erro, o fracasso, as coisas que poderiam ter sido e que não foram. Há sempre um gosto de derrota, que nos contos (não só nestas histórias do Pat Hobby) geralmente são matizados pelo humor.

Como crítico cinematográfico, qual a sua avaliação das adaptações das obras de Fitzgerald para o cinema?
Bom, O grande Gatsby teve quatro adaptações para o cinema e uma para a televisão. Só vi as versões cinematográficas de Jack Clayton (de 1976) e de Baz Luhrmann (de 2013). Ambas, a meu ver, se preocuparam mais com a reconstituição suntuosa de época, sobretudo a segunda, do que com a caracterização dos personagens e sua evolução, que é tão maravilhosamente desenvolvida no livro. (Houve antes duas outras versões que eu não vi: uma em 1926 e uma em 1949.)



O curioso caso de Benjamin Button (David Fincher, 2008), baseado no conto homônimo, é interessante, mas resvala num certo romantismo, até para encher linguiça e formar um longa, perdendo um dos encantos do original, que é a ironia com que se narram as mudanças do perso- nagem. No fim, dos filmes que eu conheço, o que mais me agrada é mesmo O último magnata (Elia Kazan, 1976), por preservar o caráter de incompletude do original, descrevendo relações humanas truncadas, frustradas, sobre um pano de fundo social, cultural e político muito bem descrito. Não assisti à versão de Henry King para Suave é a noite, de 1962.

Consegue imaginar quem poderia interpretar Pat Hobby em uma eventual adaptação para as telas?
Puxa vida, nunca pensei nisso. Talvez o Leonardo Di Caprio, despindo o glamour do Gatsby (que ele interpretou no filme de 2013) e assumindo a autoironia do ator decadente que ele viveu em Era uma vez em Hollywood. Talvez tivessem que “enfeiá-lo” um pouco também. Pensei numa opção melhor: Robert Downey Jr., também devidamente “enfeiado” e decadente.

As histórias de Pat Hobby – Um mergulho cômico na era de Ouro de Hollywood
De F. Scott Fitzgerald
Tradução e apresentação de José Geraldo Couto
Todavia
páginas
R$ 49,90

D. H. Lawrence



MULHERES SiLENCIADAS

Autor de romances que marcaram o início do século 20, a exemplo de Mulheres apaixonadas e O amante de Lady Chatterley, David Herbert Lawrence (1885-1930) também era exímio contista: As mulheres contam reúne sete histórias escritas pelo inglês entre 1910 e 1927 com personagens femininas como figuras centrais. Odor de crisântemos, que está na edição brasileira, frequentemente é incluído em antologia com as melhores histórias curtas em língua inglesa do século passado.

Mas outros contos são igualmente fortes. “Em um bonde abarrotado de mineradores barulhentos, rugindo hinos no andar inferior e uma espécie de antifonia de obscenidades no superior, as moças se sentem perfeitamente à vontade. Lançam-se sobre os jovens que tentam escapar da máquina de bilhetes. Empurram os homens assim que eles chegam a seus destinos. Não serão enganadas – elas, não. Não temem ninguém – e todos as temem”, narra o autor em Bilhetes, por favor. 

O projeto gráfico da edição brasileira, assinado por Tereza Bettinardi, remete aos cartazes do movimento sufragista inglês, que lutava pelo direito das mulheres ao voto, conquistado em 1918. “A principal crítica do autor nas obras girava em torno do abismo social que separava as mulheres dos homens”, destaca a tradutora e organizadora Patrícia Freitas, mestre em artes e doutoranda em estudos linguísticos e literários em inglês pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).



“E uma das formas de demonstrar os efeitos devastadores do que parecia ser imutável ou, até mesmo, de uma ‘condição feminina’ deu-se pela caracterização de mulheres frustradas e desiludidas em relação ao ideal de indivíduo autônomo, que lutam contra sua impotência para transformar a situação em que vivem”, destaca Patrícia Freitas. A seguir, uma entrevista com a tradutora.   

Por que podemos considerar D. H. Lawrence como um “operário das letras”?
Utilizei essa expressão porque, a meu ver, parece condensar duas partes fundamentais do trabalho literário desenvolvido por D. H. Lawrence, a saber:  a lapidação da linguagem em seus escritos, que permite entrever a maturação de um estilo próprio do autor, e a representação do universo proletário de Eastwood. A sintonia entre elas resulta numa das literaturas mais audaciosas dentro da Inglaterra vintecentista, tendo em conta os avanços formais e o intenso debate estético e ideológico que ela fomentou.

É curioso porque esse apreço de Lawrence por Eastwood e outras regiões do centro da Inglaterra, onde a principal fonte de renda provinha da extração de carvão, é justificado pelo autor pela via biográfica. Eastwood, terra natal de Lawrence, retornava em sua literatura, portanto, com essa familiaridade quase nostálgica. No entanto, também era o lugar por excelência em que não havia oportunidades para um escritor. Um dos biógrafos de Lawrence, John Worthen, aponta que os colegas de infância do autor não tinham outras perspectivas senão o trabalho com a mineração após a vida estudantil. Worthen, de modo muito cirúrgico, diz que Lawrence foi “abençoado (e amaldiçoado) ao se distanciar dos conterrâneos tanto por afinidade quanto pela conjuntura do trabalho como escritor”.

A saída de Eastwood, nesse sentido, é o primeiro indício de uma trajetória exilar que lhe permitiu fazer parte de inúmeros círculos literários, mas que também marca uma vida de cerceamentos e rejeições





Quais os critérios utilizados para a seleção dos contos?
A ideia no início era traduzir somente um conto, Bilhetes, por favor. Eu havia passado pelo curso de letras da Universidade de São Paulo e não entendia o motivo de D. H. Lawrence nunca ter estado presente nas listas de leituras obrigatórias. Achei o conto genial pelo modo como as personagens femininas – cobradoras de bonde durante a Primeira Guerra – são heroicizadas. E, de fato, trata-se da única obra de Lawrence em que a ruptura com o domínio masculino se dá pelo embate físico contra o homem.

Traduzi Bilhetes, por favor com a ajuda do professor John Milton, do Departamento de Estudos da Tradução da USP. Na época, entrei em contato com a futura crítica de Lawrence e com alguns trabalhos, principalmente o de John Mid-      dleton Murry e Kate Millet, que o cunhavam como um escritor misógino. Esses trabalhos, no entanto, têm como ponto de partida uma análise biográfica quase caricata de Lawrence. Muitos outros contestam essa ideia, como os de Anaïs Nin, Hilary Simpson, Carol Siegel e Leo Hamalian.

Fora do terreno especificamente estético, as duas biografias do autor, escritas por John Worthen e Jeffrey Meyers, bem como os volumes de correspondências publicado pela Cambridge University Press deixam claro o relacionamento amistoso de Lawrence com algumas sufragistas, a experiência de Lydia Lawrence, mãe do escritor, com a Co-operative Women’s Guild e a amizade com autoras engajadas na luta das mulheres, como Katherine Mansfield, Hilda Doolitle, Sylvia Plath, Kay Boyle e Rebecca West. Foi essa espécie de dualidade que me instigou a perceber como o ponto de vista feminino era abordado nas obras de Lawrence.



E considerei o recorte narrativo de alguns contos representativo de uma espécie de silêncio compulsório das mulheres do início do século – sintoma social que a narrativa em si, ao colocá-las como protagônicas, visa romper. Este foi o fio da meada: a aproximação entre narrador e protagonistas femininas, através de um discurso indireto livre que permitia que o leitor percebesse as agonias e repressões vividas pelas mulheres da época.

Quais elementos dos romances de Lawrence podem ser encontrados nos contos de As mulheres contam?
Muitos elementos: os conflitos entre homens e mulheres; a crítica à desumanização engendrada pela guerra; a representação da vida precária dos mineradores ingleses. Não acredito que os contos de Lawrence formem uma produção literária apartada dos romances. Ele era, de fato, um grande romancista. Mas acho que o conto, até mesmo pelas restrições formais que tem, consegue sintetizar um espírito de época. Cortázar costumava comparar o romance a um filme e o conto à fotografia. Visto dessa forma, algumas características narrativas de Lawrence se dão de maneira diferente nos contos presentes em As mulheres contam.

Quais são os recursos utilizados pelo autor para que as narrativas assumam o ponto de vista feminino?
Continuando a resposta à pergunta anterior, a narrativa dos contos selecionados para o livro tende a focar em uma determinada personagem, utilizando para tanto o estilo indireto livre ou o testemunho. Nos romances, vemos um manejo flexível de pontos de vista, o que Michael Bell chama de “modo narrativo cambiante” e faz com que as vozes das personagens sejam interpostas ao longo do texto.



Nos contos presentes no livro em questão, não vemos tanto essa interposição de vozes, mas o adensamento no universo íntimo de mulheres socialmente reprimidas. Isso não significa que o enfoque seja só em uma personagem, mas que ele é direcionado às mulheres. Em O batizado e Você me tocou, por exemplo, somos defrontados com a infelicidade de irmãs que vivem à sombra esmagadora do pai. Também em Bilhetes, por favor e Fanny e Annie, a representação da opressão é criada a partir de várias personagens femininas.

Enfim, o que quero reforçar é que a narrativa dos contos selecionados se destaca ao conferir poder de voz às protagonistas e consequentemente ao criticar o lugar que as mulheres ocupavam na Inglaterra da época.

Do ponto de vista da tradução, quais foram os maiores desafios? E as características da prosa de Lawrence que você tentou preservar?
Os desafios foram inúmeros, mas acredito que eles sempre existirão em qualquer tradução literária. Lawrence utiliza uma exorbitância de advérbios. E um recurso estilístico que tem que ser preservado pelo tradutor. No entanto, existe o risco de criarmos um eco no português, visto que os advérbios de modo em nosso idioma são na maioria das vezes terminados em “mente”.



A literatura plástica de Lawrence, repleta de detalhes, também foi outro ponto difícil, porque era necessário encontrar correlatos a fim de evitar poluir o texto com notas explicativas. E um dos mais difíceis foi o ritmo da prosa de Lawrence, que algumas vezes se associa à prosódia dialetal das personagens.

Como o autor retrata o “abismo social” que separava as mulheres dos homens?
Através do não lugar de voz. Lembro-me de uma carta que Lawrence escreveu a Jessie Chambers, namorada e confidente literária do autor, em que ele diz se sentir culpado por tomar todo o tempo livre de que Jessie dispunha com conversas sobre a literatura que ele, Lawrence, escrevia. Ao final da carta, Lawrence afirma que a melhor saída seria Chambers escrever seus próprios romances.

Em 1915, em carta a Cynthia Asquith, Lawrence diz que o panorama da guerra seria menos terrível se ao menos as “mulheres pudessem se levantar e falar com autoridade”. Acho que os contos do livro sinalizam a supressão da voz feminina, apontando os efeitos de uma sociedade erigida sob valores masculinos.





O que as “mulheres compulsoriamente silenciadas” de Lawrence, como você define, têm a dizer para as mulheres do século 21?
Elas têm muito a dizer e espero que isso reverbere de formas distintas em cada leitor. Mas se fosse para identificar o grito mais importante das mulheres de Lawrence, diria que é a necessidade de compreendermos a dominação sobre a mulher como algo histórico e, portanto, passível de ser modificado.  

As mulheres contam
De D. H. Lawrence
Tradução, seleção e posfácio: Patrícia Freitas
Editora Carambaia
288 páginas
R$ 79,90