Jornal Estado de Minas

Afetos ferozes

O amor e outros objetos pontiagudos





Ana Elisa Ribeiro

Especial para o EM

Afetos ferozes é o título em português de Fierce attachments: a memoir, de Vivian Gornick, publicado nos Estados Unidos em 1987 e traduzido no Brasil, pela primeira vez, por Heloisa Jahn para a editora Todavia. São 208 páginas de um texto quase sem interrupções, isto é, aparentemente um único fôlego das memórias de uma das autoras feministas mais respeitadas da contemporaneidade. Espaços em branco separam nacos grandes de parágrafos dedicados ao narrar-se, ou seja, Vivian Gornick, nascida em 1935, conta sua vida em um bairro de trabalhadores de Nova York, onde a vizinhança era setorizada pela origem dos imigrantes e a convivência era tão orgânica quanto ordinária e estranha. 





Como não há uma divisão em capítulos e os blocos de texto são marcados por discretos espaçamentos em branco, é difícil organizar aqui os aspectos da vida abordados pela autora. Talvez se possa eleger a relação com a mãe judia como o ponto nevrálgico da obra, estampada aí a ferocidade dos afetos selecionados pela memória. Uma mãe feliz e infeliz, casada, depois viúva convicta, controladora, forte e frágil, contrassensos comuns em qualquer ser humano. Gornick, autorizadamente confundida com a narradora, narra sua própria infância, adolescência, adulta em formação, ideologicamente à esquerda, feminista, a partir de uma experiência de ser mulher que ela só visualiza com menos opacidade depois de bem adulta, como, afinal, ocorre à maioria de nós, em especial as que vivemos em sociedades fortemente patriarcais, mas em que ainda (e já) é possível pensar e emancipar-se. 
 
 
 
 
Um segundo aspecto de relevo em Afetos ferozes é a relação da narradora com maridos, amantes e namorados, elemento vital analisado à luz de outras relações, inclusive a da mãe com o pai e a de mulheres da vizinhança próxima com seus pares masculinos. A percepção da ferocidade nesses afetos – ligados ao amor romântico e ao sexo –, em si e em outras, aparece como elemento formador, nem que fosse por imitação e/ou recusa, não sendo difícil uma identificação do/a leitor/a com as vivências dessa mulher que atravessou o século 20 e chegou parcialmente transformada ao nosso século. A convivência com uma vizinhança movimentada e muito observada também é um aspecto importante no livro, em especial as histórias de mulheres menos e mais conformadas com seus destinos aparentemente decididos pelos fluxos e comportamentos sociais vigentes. 

Vivian Gornick narra a própria história de modo a provocar nossa imersão num bairro nova-iorquino, que bem poderia ser muitos outros lugares do mundo; favorece também uma reflexão sobre precedentes familiares e rupturas necessárias; assim como deixa no ar um gosto de coragem, já que conta, com algum detalhe e exposição, sua vida íntima com pessoas que mereceram sua homenagem e sua ferocidade. Tudo isso é feito em uma linguagem viva e literária, característica apontada como uma das agudezas e excepcionalidades deste belo livro de memórias. É esse travestimento literário que torna Afetos ferozes uma narrativa de si menos parecida com um depoimento ou uma simples confissão; e dá a ele o tom universal e abrangente que a literatura muitas vezes alcança. Para além das inter-relações humanas, Gornick trata também de sua relação com a própria escrita, que também não dispensa certo grau de ferocidade e incontinência. 







Ana Elisa Ribeiro é professora no CEFET-MG e escritora
 
 
 
 

Trechos

“Sabia que a iniciativa de me ensinar a ser uma sedutora de homens trazia em si um risco específico, mas perigo não era o departamento dela. Seu departamento era me preparar para ter a melhor participação possível no jogo da vida. Nem é preciso dizer que se eu me tornasse a garota mais cobiçada do quarteirão, estaria correndo risco de estupro e gravidez, mas aquelas eram as regras do jogo, não é mesmo? Uma garota precisava ser sensata. Saber como entregar o mínimo possível para obter o máximo possível era uma coisa que eu deveria ter absorvido junto com o leite materno.”
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“Meu relacionamento com minha mãe não é bom, e à medida que nossas vidas se acumulam, muitas vezes dá a impressão de piorar. Estamos presas num estreito canal de familiaridade, intensa, que nos prende uma à outra. Às vezes se passam anos seguidos de exaustão, em que ocorre uma espécie de abrandamento entre nós. Depois a raiva vem de novo à tona, quente e nítida, erótica em seu poder de exigir atenção. Neste momento as coisas não vão bem entre nós. Minha mãe “lida” com esses períodos em que as coisas não vão bem entre nós me acusando em voz alta e publicamente da verdade. Basta ela me ver para dizer: “Você me detesta. Você sabe que me detesta”. Posso estar lhe fazendo uma visita, por exemplo, e ela diz a quem quer que por acaso esteja no aposento — um vizinho, um amigo, meu irmão ou uma das minhas sobrinhas: “Ela me detesta. Não sei o que tem contra mim, mas ela me detesta”. Se estamos as duas dando uma caminhada, é bem capaz de parar um desconhecido na rua e dizer: “Esta é minha filha. Ela me detesta”. Depois se vira para mim e implora: “O que foi que eu fiz para você me detestar desse jeito?”. Nunca respondo. Sei que ela está em chamas e prefiro deixá-la arder. Por que não? Também estou. Mas percorremos infinitamente as ruas de Nova York juntas. Nós duas vivemos agora na parte sul de Manhattan, em apartamentos separados por pouco mais de um quilômetro, e gostamos de caminhar juntas, em vez de nos visitar. Minha mãe é uma camponesa urbana e eu sou filha da minha mãe. A cidade é nosso elemento natural.”
 
 
 
» Afetos ferozes
» De Vivian Gornick
»  Tradução de Heloisa Jahn
» Todavia
» 208 páginas
» R$ 64, 90