Febre é elevação da temperatura, reação a alguma anormalidade. Faz o corpo suar, às vezes quase derreter. Até delirar. Como ignorar a febre Ferrante, expressão surgida para nomear o movimento dos leitores e leitoras da autora italiana? A imagem de um amor passional não deve ser desprezada, ainda mais nos dias de hoje, em que nos ressentimos da falta de adesão à leitura. Impossível ignorar o alcance da obra da escritora: são mais de 12 milhões de exemplares vendidos em 50 países, e no Brasil muitos estão perfilados nesse poderoso time. Comprovei em rápida pesquisa: estou cercada de fãs de Ferrante. Sim, são mulheres: a discussão sobre a ausência dos homens nessa legião me permito não discutir aqui, mas fica o registro.
Não raro, a crítica especializada torce o nariz para narrativas de sucesso, mas muita gente dá uma banana para isso. Quer bons livros, e há muito deveríamos ter superado o fosso que separa sucesso comercial de qualidade literária. Quarenta anos se passaram desde um marco a esse respeito, a publicação de O nome da rosa, de Umberto Eco, o semiólogo e medievalista que virou best-seller, sem culpa e sem condescendência. Tanto Eco quanto autores como Italo Calvino defendiam abertamente o prazer da leitura, para ficarmos apenas na tradição literária italiana. Insinuando-se de forma muito pessoal nessa linhagem, a criadora da chamada tetralogia napolitana oferece ao público generosas doses de deleite, e isso não é pouco: os títulos A amiga genial, História do novo sobrenome, História de quem foge e de quem fica e História da menina perdida, publicados entre 2011 e 2014, arrebataram multidões.
Elena Ferrante é um pseudônimo mantido há quase 30 anos. Ao insistir no apagamento da autoria, segue acendendo a fagulha da curiosidade e conferindo todo o poder às leitoras e aos leitores: eles importam mais do que a figura midiática da escritora (Anita Raja, Domenico Starnone, seja quem for). E ela está de volta, cinco anos depois do final da tetralogia. A vida mentirosa dos adultos manipula conhecidos códigos literários, abraçando sem medo o folhetim e o melodrama. O romance de mais de 400 páginas revisita temas, ambientes e até vozes presentes em sua obra, talvez sem a mesma temperatura alcançada antes – houve quem dissesse que faz um pastiche de si mesma, mas há quem louve a possibilidade de respirar a mesma atmosfera de encanto dos outros livros. Levantou-se igualmente a hipótese de que este volume seja o início de uma nova série. Certo é que a autora traz a retomada de um fio que não se deixa partir.
Lenta erosão
de mundo
Ela começa bem: “Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia”. As páginas que lemos são a tentativa, já na maturidade, de dar uma resposta a essa estocada paterna. Giovanna tem 12 anos e uma vida confortável ao lado do pai e da mãe na Nápoles dos anos 1990. Ambos professores de ensino médio, ele de história e filosofia, ela de latim. No entanto, a frase entreouvida provoca uma lenta erosão desse mundo aparentemente estável, pondo em marcha uma visita a territórios íntimos e geografias inusitadas. Contrariando o desejo dos pais, a jovem passa a frequentar a casa da tia paterna, uma personagem carregada de tintas fortes e ao mesmo tempo ambígua em sua construção.
A origem humilde do pai, bastante apagada em um cotidiano vivido no bairro nobre de Vomero, incita curiosidade, e o sangue vai contar outras histórias que Giovanna quer conhecer. A presença constante de uma pulseira pertencente à bisavó surge como símbolo de uma complicada herança familiar: passando de pulso em pulso, se configura um elo entre as mentiras e revela aos poucos o quão provisória é a verdade, ou pelo menos o quão parcial é a versão de cada um.
Dividida em sete partes, a narrativa relata em primeira pessoa a história de uma adolescente olhando o mundo adulto e se espantando com o que vê debaixo das mesas, dentro das fotografias, por entre as sombras familiares. A convivência com a tia, proscrita do convívio pelo pai, vem acompanhada de um alerta: “Olhe bem seus pais, não se deixe enganar”. A afirmativa é uma espécie de ponto de virada na vida de Giovanna, início de um amadurecimento que se dá aos trancos e barrancos. Em muitos lugares ela verá enganos, ficções, fabulações – os adultos mentem mesmo. Mentem entre si, para lidar com convenções sociais, mentem para si mesmos, em exercícios de autoengano, e mentem para os outros, forma de se reinventar em sociedade.
Como nos romances da tetralogia, a ambientação no Sul da Itália traz referências a uma linguagem muito própria. O napolitano com suas especificidades e tonalidades discursivas é o idioma para xingar, falar obscenidades, anunciar um mundo carnal e violento, universo de descontrole e despudor. Mas também de um léxico familiar, da partilha da intimidade e do afeto – uma língua materna, com todo o peso que isso pode acarretar. Inúmeras passagens de A vida mentirosa dos adultos reforçam a presença do dialeto, mas não existem trechos em que isso irrompa diretamente, provocando algum estranhamento. Sobre esse tema, Maurício Santana Dias, premiado tradutor da tetralogia, citou em entrevista a existência de uma espécie de língua submersa, destacando uma dimensão linguística presente na obra de Ferrante que revelaria uma permanente tensão entre o italiano e o napolitano.
Conflito e
Contradições
sociais
Esse conflito no âmbito da linguagem exprime inúmeras contradições sociais. O romance põe em cena duas cidades diferentes, a periferia urbana e a Nápoles do cartão-postal, visitada pelos mais pobres “como se fosse um país estrangeiro”. É cruel a partilha da cidade, cujos territórios são demarcados e excludentes. Mas Giovanna sente-se atraída pelo lado familiar menos controlado pela censura das normas e protocolos sociais, e nesse momento se percebe o quanto certas fronteiras são porosas.
Em meio à forte crise existencial, a adolescente se afasta do modelo materno e busca no novo espaço outras referências. E se faz presente um dos grandes temas da obra de Ferrante: a amizade e a solidariedade entre mulheres. Trata-se de um universo feminino em que as personagens, diante de um mundo patriarcal, criam filhos juntas, estabelecem laços eróticos, constroem novas formas de convívio, se apoiam. A viagem em direção ao mundo de uma mulher adulta requer a lúcida constatação de deixar uma vida para trás, levando na bagagem alguns destroços, mas também desejos.
“Os objetos não têm culpa”, afirma Giovanna sobre os desentendimentos causados pela pulseira herdada. Eles podem não ter culpa, mas os adultos carregam muitas, e a história dos objetos é a narrativa que se constrói sobre eles. A vida privada está mesmo cheia de opacidade e lacunas – importam menos os segredos e as mentiras do que o modo como se lida com eles. Com qual temperatura se reage, como um organismo em febre lutando contra um corpo estranho. Dessa resposta nasce a literatura que orquestra as dores embaralhadas anunciadas pela protagonista no início de sua jornada.
Stefania Chiarelli é professora de literatura brasileira na Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora do ensaio O cavaleiro inexistente de Italo Calvino, uma alegoria contemporânea
» A vida mentirosa dos adultos
» De Elena Ferrante
» Tradução de Marcello Lino
» Intrínseca
l 432 páginas
» R$ 59, 90
» E-book R$ 39,90
trecho
“Com o tempo, percebi que, quando se reconhecia em mim, Vittoria era dominada pelo afeto, mas, se identificava algum traço do meu pai, desconfiava que eu faria com ela ou com as pessoas que ela amava o que o irmão lhe fizera no passado. De resto, o mesmo acontecia comigo. Eu a achava extraordinária quando me imaginava uma adulta combativa, e repugnante quando reconhecia nela os traços do meu pai. Aquela manhã, pensei de repente em algo que me pareceu insuportável e ao mesmo tempo divertido: nem eu nem Vittoria nem meu pai podíamos eliminar nossas raízes comuns e, portanto, acabávamos amando e odiando, dependendo do caso, sempre nós mesmos.”