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Estado de Minas

O fim da trilogia que revela a alma


04/09/2020 04:00 - atualizado 03/09/2020 23:29


Segredos, novo romance de Domenico Starnone, traz uma cena emblemática. A filha do protagonista relata que, em um sonho recorrente, chega no quarto para acordar o pai pela manhã e o encontra lendo na cama. É um crocodilo. O animal, que na mitologia alcança inúmeras significações, como o próprio fingimento e a morte, condensa e expande o tema central da narrativa. Nela, a permanente sensação de ameaça, de um mal-estar produzido nos personagens diante da constante pergunta: é possível confiar?.

O primeiro bloco traz o relato de Pietro, na Roma dos anos 1980. Professor de uma escola da periferia, o jovem vive relacionamento apaixonado com a ex-aluna Teresa. Quando namorados, estabelecem um acordo em que revelam um ao outro segredos inconfessáveis, algo que não gostariam de admitir nem para si mesmos. Terminada a relação, o fato irá assombrar a vida do protagonista e afetar todos que o cercam. O tempo passa e ele se casa com Nadia, destacando-se pouco a pouco por sua atuação e pelas reflexões publicadas como educador. A mulher, matemática, abandona a carreira de pesquisadora e se ressente da projeção crescente do marido, dedicando-se intensamente ao cuidado dos três filhos do casal. Já Teresa se muda para os Estados Unidos com efetivo destaque profissional como cientista.

Mesmo após o final do relacionamento explosivo, Pietro e Teresa ainda mantêm correspondência regular, em um pacto de palavras nunca abandonado ao longo de décadas – talvez o único ponto do livro em que se possa usar sem risco a palavra fidelidade. Mas a troca de cartas é também uma forma lenta e cruel de controle entre os envolvidos. Pietro sofre com o medo de que sua confissão seja revelada.

Numa estrutura tripartida, seguem-se mais dois relatos: o da filha, 40 anos depois, e, por fim, da ex-namorada Teresa. A narrativa encerra, depois da publicação de Laços (2017) e Assombrações (2018), a chamada trilogia sentimental do autor napolitano. Ao justapor pontos de vista, oferecendo distintas perspectivas sobre os fatos, Segredos ecoa Laços, em que a esposa traída dá vazão a todo o ódio pelo companheiro, que a abandona para viver com uma moça mais jovem. O casal se separa, mas retoma a vida conjugal poucos anos depois. A narrativa dá voz também ao marido e aos filhos, marcados por uma vida familiar nunca recuperada das rupturas ocorridas. Mas nada é assim tão simples, parecem afirmar seus livros. “Ficar pode ser mais violento que partir”, afirmou Starnone em entrevista.

 Essência e aparência

Para além da natureza vulcânica dos afetos e suas consequências, explorada por Starnone ao mergulhar na subjetividade de cada personagem de forma nada banal, surge uma questão ligada aos princípios que norteiam a vida de cada um. Essência e aparência brigam permanentemente nessa arena, e vida pública e privada se mostram bem mais complexas quando olhadas com lente de aumento. Ex-professor pode namorar jovem aluna? Orientador respeitável tem direito, no gabinete fechado, de chamar a pesquisadora para seu colo? Esposa enciumada de marido infiel deve seduzir os amigos do marido para se vingar? Filha imatura pode burlar a lista dos homenageados pelo presidente para nela inserir o nome do pai, a quem idealiza cegamente? A lista é longa.

Some-se às incômodas perguntas o fato de que a imagem que o próprio protagonista carrega de si diverge radicalmente daquela que os outros têm dele. Pietro Vella se acha um blefe. O mundo o adora e lhe atribui um mérito que desconhece em si. “Em resumo, nunca ocorrera nada em minha vida que me autorizasse a atenuar a congênita insatisfação por mim”, sustenta. Em quem acreditar?

Starnone está ligado ao tema dos mistérios familiares de outros modos – há anos se debate na imprensa e na academia qual seria sua relação com Elena Ferrante, sucesso inquestionável de vendas (como sabido, a escritora não se apresenta em público e responde às entrevistas por e-mail). Questiona-se até se o próprio não seria o verdadeiro autor dos romances. Na vida real, o criador de Segredos é casado com a tradutora Anita Raja, também apontada como a pessoa por trás do mistério Ferrante – parte da crítica sugere que Dias de abandono (2016), de Ferrante, seja lido em diálogo com Laços. Em comum, casamentos desfeitos e narrativas em primeira pessoa a desvelar os andaimes de relacionamentos em crise.

Em um tempo de privacidades devassadas e performances mediadas pela tecnologia, que facilita, por meio de imagens, textos e vídeos, a exposição da intimidade de cada um de nós, escancarando gostos, aversões e preferências de toda ordem, o que significaria hoje falar de sentimentos? O que pode a literatura ainda, dentro da proliferação massiva das verdades íntimas de cada um?

Ler Starnone significa compreender que raramente os pontos de vista coincidem sobre algo. O autor domina com elegância uma prosa que revira do avesso a alma de personagens contraditórios, e, por isso mesmo, fascinantes. “Narrar significa mentir, e narra melhor quem mente melhor”, afirma Teresa, não por acaso aquela que traz a palavra final.

Mas não nos enganemos: uma verdade última e definitiva não será alcançada, pois esses relatos se constroem no território movediço da linguagem. A literatura oferece o necessário benefício da dúvida, endereçando perguntas onde parecem triunfar certezas. O crocodilo sempre estará lá, à espreita. (Stefania Chiarelli)
 
 
 
 
» Segredos
» De Domenico Starnone
» Tradução de Maurício Santana Dias
» Todavia Editora
» 152 páginas
» R$ 59,90
 
 
 
trecho
 
“Pensei: a gente se apaixona por pessoas que parecem verdadeiras, mas não existem, são uma invenção nossa; essa mulher firme, de frases escandidas, essa mulher sem timidez, cortante, não é a que conheço, não é Nadia. Uma coisa é a pessoa amada, outra é a pessoa real que, enquanto a amamos, nunca vemos realmente. Quanto tempo, disse a mim mesmo, desperdiçamos nas relações amorosas. Nesses anos inventei com felicidade uma pessoa. Entrei com grande gozo no corpo de uma aquarela que fiz com cores suaves, e tenho no outro quarto uma filha real de um ano, que foi parida de uma ficção minha.”
 


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