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Estado de Minas MATRIMÔNIO

Tolstói e o casamento: do céu ao inferno

Edição com quatro novelas e nova tradução revela o matrimônio como um dos temas obsessivos de um dos maiores escritores de todos os tempos


18/09/2020 04:00 - atualizado 18/09/2020 07:59

(foto: lelis)
(foto: lelis)

Como Tolstói enxergava o casamento? O autor do maior épico dos tempos modernos (Guerra e paz) e do mais perfeito romance dramático oitocentista já escrito (Anna Kariênnina) via com ceticismo a instituição do matrimônio. Talvez ceticismo seja um eufemismo para o homem que chegou ao final do século 19 mais popular, adorado e temido do que o czar. Liév Tolstói (1828-1910) ficou 44 anos casado com Sófia e tiveram 13 filhos. Isso foi o suficiente para que o conde excomungado da Igreja Ortodoxa chegasse à conclusão de que os laços conjugais são tão frágeis que a solução é tornar-se asceta. 

 

As quatro novelas reunidas em ordem cronológica, publicadas pela editora Todavia em nova e excelente tradução de Rubens Figueiredo (com breves introduções elucidativas), poderiam ser embaladas por um único e grande título. Algo como Casamento: uma biografia. 

 

Felicidade conjugal tem o sabor de estreia literária, embora Tolstói tenha escrito e publicado alguns anos antes Infância. Ele tinha 31 anos e ainda não havia conhecido Sófia, mas seu arguto poder de observação dos salões da aristocracia à qual pertencia e suas aventuras amorosas sem grande comprometimento – embora haja fortes indícios de um filho bastardo com uma mujique – foram o bastante para essa admirável e um tanto ingênua novela ser concluída em 1859. 

 

Dividida em duas partes, a breve narrativa é premonitória da própria união do autor com uma mulher com idade para ser sua filha e prefigura também a oposição tão cara a Tolstói entre a pureza do campo e a corrupção da cidade, numa Rússia cujo capitalismo avançava selvagemente.  

 

Vendo-se órfã de mãe (seu pai já morrera quando a história começa), uma jovem de 17 anos passa a limpo a história de seu casamento com Sierguiéi, amigo de seu pai e pelo qual ela se apaixona na primeira metade do livro. No início, ela o vê como substituto paterno, mas aos poucos e por viver numa propriedade rural isolada da sociedade com a governanta e a irmã mais nova, a adoração filial se transmuta em paixão:

 

“Ele não era mais um velho tio, que me acarinhara e me orientara, era uma pessoa igual a mim, que me amava e me temia e a quem eu também temia e amava.” Mas a alegria dura apenas alguns meses enquanto os dois vivem só para si até que: “De súbito, seu rosto pareceu-me velho e desagradável”. 

 

O leitor atento de Anna Kariênnina vai notar algo parecido quando Anna, depois de conhecer Vrónski, reencontra o marido e sente repugnância por suas orelhas. Tolstói era um mestre desses pequenos detalhes da intimidade que secretam grandes mudanças de sentimento. 

 

À medida que os bailes e recepções ocupam a vida da protagonista, a relação vai se dissolvendo: “Desapareceram completamente os seus acessos de alegria na minha presença, o comportamento juvenil, despareceram o seu perdão e indiferença em relação a tudo, que antes me indignavam, não lhe apareceu mais o olhar profundo que, antes, sempre, me deixava confusa e me alegrava, sumiram as orações, os êxtases em comum, deixamos até de ver-nos com frequência, ele estava continuamente de viagem, e não temia, não lamentava deixar-me sozinha”.

 

Então, o inevitável acontece. Brigas, rancores, ódios são os ingredientes explosivos da relação quando o primeiro filho nasce. Ao passo que é essa criança a responsável pela transformação da tal felicidade do título, numa das mais belas passagens do livro. A cena acontece quando a narradora (os dois estão de volta ao campo) se dá conta do amor do marido pelo rebento.  

 

“A partir desse dia, terminou meu romance com meu marido; o sentimento antigo tornou-se uma recordação querida, algo impossível de se trazer de volta, e o novo sentimento de amor aos filhos e ao pai dos meus filhos deu início a uma nova vida, de uma felicidade completamente diversa, e que ainda não acabei de viver...”

 

As reticências assinalam o que estaria por vir, o que só aconteceu décadas depois quando o que muitos (incluindo este resenhista) consideram a maior obra-prima do gênero novela já publicada.

 

Os anos que precederam a publicação de A morte de Ivan Ilitch (em 1886, quase uma década depois da explosão de crítica e popularidade de Anna Kariênnina) foram enlouquecedores no ciclo familiar dos Tolstói. 

 

Escreve Rosamund Bartlett, autora de uma monumental biografia do conde: “A vida familiar na casa dos Tolstói em Moscou nos primeiros meses de 1884 era surreal. Em uma parte da casa, vigiado de perto pelo governador-geral, Tolstói estava restringindo ao mínimo suas pegadas na terra e condenando atividades depravadas, tais como uso de adornos físicos e a da dança nos bailes. Em outra parte da casa, Sófia e Tânia (filha) se vestiam com aprumo em tule e veludo para a bailes de gala da sociedade onde conviviam com o governador-geral. (...) Tolstói deplorava o dinheiro que a esposa vinha gastando para introduzir Tânia na sociedade moscovita naquele ano. (...) Sófia se queixava com a irmã de que estava farta de viver com o marido, um ‘tolo santo’, que negligenciava suas funções de pai e já não demonstrava o menor interesse em tomar parte da vida familiar; (...) Ele (Tolstói) sentia que era a única pessoa sã vivendo em um hospício dirigido por loucos”.

 

Foi nesse ambiente conflagrado que Tolstói escreveu A morte de Ivan Ilitch e, quando o senso comum julga suas obras como se seu autor desativasse o modo autobiográfico, a verdade é que os anos precedentes à morte do magistrado que dá título à magnífica novela se nutriram desse pugilato entre o conde e sua esposa. A trama é simples. O personagem do título é acometido de uma doença que o leva à morte. Em flashback – Tolstói nunca se contentava em repetir a mesma fórmula –, descobrimos como a vida do juiz foi recheada de aparências, falsidades e hipocrisias, e só diante do fim ele enxerga o quanto se ludibriou. E entre os maiores enganos está, claro, seu casamento com uma dama da sociedade – o ódio do conde à sua classe social só encontra paralelo na aversão de Flaubert pela burguesia. 

 

Ele nos conta a história de seu casamento.  “Ivan Ilitch conheceu aquela que viria a ser sua esposa, Praskovya Iodorovna Mikhel, a garota mais fascinante, inteligente e espirituosa do seu círculo, e, entre tantas atividades que praticava para se distrair, Ivan Ilitch começou um leve e divertido flerte.”  

 

Nosso herói não era predisposto a se casar, mas as exigências sociais se impunham para além de suas veleidades. “No início, Ivan Ilitch não tinha intenções definidas de casamento, mas, ao percebê-la apaixonada, perguntou-se: ‘Afinal de contas, por que não casar?’”

 

Ivan pensava que o casamento tolheria sua liberdade, mas o começo da sua vida conjugal o surpreendeu e “longe de atrapalhar” seu modo de vida, “até acrescentou-lhe um novo encanto”.

 

No entanto, quando a esposa engravida, “(...) um novo elemento, inesperado, desagradável, cansativo e totalmente inapropriado”, surge, algo que ele “nunca poderia ter previsto e do qual não havia como escapar”. Ele logo trata de nos esclarecer a natureza desse elemento: “(...) sem razão alguma, por puro capricho, como ele dizia, começou a perturbar a agradável e decente ordem de sua vida. Sem que houvesse qualquer tipo de justificativa, Praskovya começou a mostrar-se ciumenta, a exigir que ele dedicasse toda sua atenção a ela, punha defeitos em tudo e fazia as mais desagradáveis e constrangedoras cenas”. 

 

Com o passar dos anos, a vida com a esposa se torna um tédio que o magistrado suporta entregando-se ao trabalho. A distância entre marido e mulher só aumenta, mas isso que poderia tê-lo feito sofrer, ele achava “não só normal, mas até um objetivo a ser alcançado na vida doméstica.”

 

Assim continuou por dezessete anos até Ivan começar sua agonia num longo sofrimento até a extinção.

 

Uma breve introdução é necessária para se entender o tamanho da influência e poder de seu autor nos últimos anos do século 19. A frase faz parte do relato do jornalista britânico William Stead, depois de passar uma semana na propriedade rural de Tolstói: %u201CHomem de gênio que passa seu tempo plantando batatas e remendando sapatos, um grande artista literário que fundou uma propaganda de anarquia cristã, um aristocrata que passa a vida como camponês.%u201D

 

Outros pontos de vista 

Se em A morte de Ivan Ilitch as amargas reflexões sobre o casamento correm em paralelo à morte do juiz, em Sonata a Kreutzer, de 1890, o matrimônio está no centro da história do assassinato da esposa pelo marido, o proprietário rural Pózdnichev. Sua trama é contada por um anônimo narrador que a ouve do uxoricida durante uma longa viagem de trem pela Rússia – para cada obra nova, Tolstói buscava outro ponto de vista narrativo. O título da novela se refere à Sonata para violino e piano nº 9, de Beethoven, de quem Tolstói era fervoroso admirador, tendo estudado e tocado as partituras do compositor alemão na juventude e as introduzido em várias ficções. 

 

Naqueles anos, o abismo entre Sófia e Tolstói aumentava cada vez mais, tendo o conde se esforçado em levar uma vida ascética, como acordar cedo para ceifar com os camponeses, renunciado a comer carne e a beber álcool e tentando parar de fumar. No entanto, ele se autopunia por não resistir a ter relações sexuais com a esposa. Em breve, completariam 25 anos de casados, e Sófia não parava de colocar filhos no mundo. Se o jovem Liév ainda acreditava no casamento, o maduro Tolstói o condenava cabalmente, e para ilustrar seus malefícios escreveu sua novela mais polêmica e escandalosa– certamente a mais discutida de suas obras de ficção – aquela na qual ele condena o casamento sem ou mesmo com filhos à danação. 

 

Sonata a Kreutzer foi publicada em edição samizdat (clandestina) e o preço de uma cópia era maior que o valor cobrado por suas obras completas, que a diligente Sófia havia coligindo desde que o marido abdicou de seus direitos autorais. A popularidade de Liév atingira o ápice, e não apenas pelos seus romances, já naqueles anos traduzidos para as principais línguas cultas da Europa, quanto – e era o que importava para ele –  por suas ideias e ações visando reformar a Rússia com a erradicação da pobreza, a mudança do ensino, laico e religioso, e um revolução de costumes voltada para o ideal camponês e agrário.      

 

A novela parte de uma pergunta ouvida no trem sobre o atraso do casamento na Rússia comparado ao matrimônio europeu, onde a união se fazia por amor e não por conveniência. Ao ouvi-la, Pózdnichev, absolvido sob alegação de defesa da honra, ele mesmo tentará responder.

 

 “O que se deve entender por amor verdadeiro?”

 

A réplica é simples, a preferência exclusiva de um homem por uma mulher e vice-versa. Mas por quanto tempo, pergunta.  “Por quanto tempo? Ora, muitas ve- zes, por toda a vida.”  Quem está conversando com ele é uma senhora e quem nos conta é o narrador anônimo que irá ouvi-lo ao longo de inúmeras horas de viagem. O homem treplica: 

 

“Mas isso só acontece nos romances, nunca na vida real. Na vida, essa preferência de alguém por outrem dura anos, o que é muito raro, mais comumente meses, ou então, semanas, dias, horas.” Ele prossegue: “Amar a vida inteira um homem ou uma mulher é o mesmo que dizer que uma vela vai arder a vida toda”. 

 

O que se segue é uma exaltada peroração acerca do ciúme gerado pela libertinagem, pelo instinto sexual, com críticas severas aos costumes modernos e o conjunto de acusações, recriminações, queixas, ameaças, insultos, mesquinharias, raiva, petulância, desprezo e orgulho ferido e todo o repertório de sentimentos ne- gativos de duas pessoas muito íntimas, culminando no assassinato de uma delas. 

 

Sonata causou tanto barulho que Sófia teve de pedir pessoalmente autorização ao czar Alexandre III para publicação. Tchekhov condenou seu grande ídolo em carta a um amigo, considerando-o um déspota. Tolstói se viu forçado a fazer um pronunciamento público dizendo não ser contra a procriação humana como dá a entender seu texto. O livro ainda lhe rendeu a primeira excomunhão por parte da Igreja Ortodoxa, sob a alegação de ser “incoerente, indecente e imoral”. 

 

Guia espiritual

 

No começo da década de 1890, a liderança moral de Tolstói na Rússia era enorme. Ele se tornara um guia espiritual, atacando a administração czarista que deixava milhões de camponeses morrerem de fome, a indigência educacional, a indiferença da aristocracia e a Igreja Ortodoxa.

 

Padre Siérgui começou a ser escrito nessa época, mas só viria a ser publicado em 1911, pouco depois da morte do autor, que, como se sabe, “fugiu” do inferno doméstico e morreu no meio do caminho.  Uma breve introdução é necessária para se entender o tamanho da influência e poder de seu autor nos últimos anos do século 19. A frase faz parte do relato do jornalista britânico William Stead, depois de passar uma semana na propriedade rural de Tolstói: “Homem de gênio que passa seu tempo plantando batatas e remendando sapatos, um grande artista literário que fundou uma propaganda de anarquia cristã, um aristocrata que passa a vida como camponês”. 

 

Eis o resumo de um santo e a história desse starets (velho líder religioso na Rússia) é que será contada em Padre Siérgui. Narrada no registro hagiográfico, a trajetória do jovem aristocrata e grande conquistador de corações é ascendente rumo ao despojamento total até se tornar um peregrino anônimo, penitente e indigente. Logo no primeiro capítulo somos informados de que um belo e rico príncipe pertencente a um regimento militar do império russo e a um mês de se casar com uma jovem e bela dama da sociedade renuncia à sua propriedade rural, aos seus bens, à sua posição e segue para um mosteiro. 

 

A jovem é a condessa Korotkova, ele se apaixonou por ela e depois de um período inicial de frieza, ficou surpreso quando ela o aceitou, mas a condessa, como todos sabiam menos o príncipe, fora amante do czar Nicolau I, a quem o príncipe amava acima de tudo. E é quando ela revela ao noivo pouco antes do casamento que se entregara ao imperador que o príncipe resolve despedir-se do mundo e tornar-se monge, pois seu orgulho – como o de Tolstói – estava acima de tudo. 

 

O príncipe de nome Kassátski viveu sete anos no mosteiro e se ordenou monge, com o nome de Siérgui. Tolstói era especialmente supersticioso com o número sete. Depois veio a primeira tentação na forma de uma mulher mundana que queria conhecê-lo, o padre resistiu, mas pediu para ser transferido e terminou tornando-se um eremita em sua cela na cavidade de uma rocha do monastério. Seis anos depois (próximo de sete), ele se percebe tentado por uma mulher de hábitos extravagantes, rica, bela, conhecida por suas aventuras e que apostou que o seduziria. 

 

Ele ouve a mulher batendo na porta de sua cela e diz: “Meu Deus! Será mesmo verdade o que eu li nas Vidas dos santos? Que o diabo assume a forma de mulher?”. Pois  diante essa mulher, desnuda, o monge pegou o cepo e cortou o dedo da mão direita. Ela ficou tão horrorizada que se tornou alguns depois uma monja. E outros sete anos se passaram até o padre mudar de monastério de novo.  

 

Como Tolstói não concluiu a novela, há certos lapsos na narrativa. Ele recebe a visita de uma jovem neurastênica ou histérica e se deixa ceder à luxúria. Parece que ele a mata e sai então caminhando como peregrino. Tem um sonho com Pachenka, uma menina a quem haviam feito mal quando criança, e acredita que somente ao encontrá-la poderá se salvar. Por isso vai atrás dela. Quando finalmente encontra a mulher, vivendo na penúria, ele a toma como sua confessora e diz: “Eu sou um depravado, sou um assassino, sou um blasfemo e um hipócrita”.

 

Ele peregrinou até ser preso, e como não havia documentos em sua posse e já despossuído de tudo o que havia no mundo, não se importou de ser degredado para a Sibéria como vagabundo. No fim, cuida da horta de um proprietário e ajuda na educação das crianças. 

 

André Nigri é jornalista e autor do romance Paralisia (2018). Em outubro, publica o livro de contos Com a corda no pescoço, pela Editora Reformatório 

 

As novelas reunidas

Felicidade conjugal

A morte de Ivan Ilitch

Sonata a Kreutzer

Padre Siérgui

 

Trecho

 

No vasto edifício da Corte de Justiça, durante o intervalo de uma sessão do julgamento dos Melvínski, os membros da Corte e o procurador se reuniram no gabinete de Ivan Iegórovitch Chebek e teve início uma conversa sobre o célebre caso Krássov. Fiódor Vassílievitch se inflamou, ao demonstrar que a Corte não tinha jurisdição sobre o caso, Ivan Iegórovitch fincou pé em seu ponto de vista, enquanto, de outro lado, Piotr Ivánovitch, que desde o início não entrara na discussão e dela não tomava parte, se limitava a passar os olhos nos exemplares do jornal Viédomost trazidos pouco antes. – Senhores! – disse ele. – O Ivan Ilitch morreu! – Será possível? – Veja, leia aqui – disse para Fiódor Vassílievitch, mostrando o jornal ainda fresco, cheirando a tinta. Cercado por um friso preto, estava escrito: “Praskóvia Fiódorovna Goloviná, com sincero pesar, comunica aos parentes e conhecidos o falecimento de seu adorado esposo, membro da Câmara de Justiça, Ivan Ilitch Golovin, ocorrido no dia 4 de fevereiro deste ano de 1882. O enterro será na sexta-feira, à uma hora da tarde”.

Ivan Ilitch tinha sido colega de trabalho dos senhores ali reunidos e todos gostavam dele. Fazia algumas semanas que havia adoecido; diziam que sua doença era incurável. Fora mantido no cargo, porém já estava acertado que, no caso de sua morte, Alekséiev podia ser nomeado em seu lugar e, para o posto de Alekséiev, seriam indicados ou Vínnikov ou Chtábel. Por isso, ao saber da morte de Ivan Ilitch, o primeiro pensamento de todos os senhores reunidos no gabinete foi sobre o efeito que aquela morte podia produzir na transferência ou na promoção dos próprios membros da Corte ou de seus conhecidos.

 

(De A morte de Ivan Ilitch)


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