A pesquisa do contexto histórico e alguns dos personagens fictícios se fundem sob a inspiração do peruano Mario Vargas Llosa para a reconstrução do cenário da Guatemala de 1954, quando os Estados Unidos, por meio da CIA, com ampla manipulação de informações e brandindo o “big stick” da “ameaça comunista”, intervieram para derrubar o governo democrático progressista de Jacobo Árbenz (1951-1954).
Com o título original de Tiempos recios, o livro foi lançado em Portugal como Tempos duros. A edição brasileira, que chega às livrarias na próxima semana, foi batizada de Tempos ásperos (Alfaguara). A mudança, deliberada ou não, remete a Os ásperos tempos, de Jorge Amado, primeiro volume da trilogia Os subterrâneos da liberdade, que aborda o golpe do Estado Novo em 1937 e a implantação da ditadura Vargas no país.
Em plena atividade literária depois de uma incursão pela política que culminou com uma candidatura pre- sidencial derrotada em 1990, Vargas Llosa esteve na Alemanha no início da semana. Na abertura do Festival Internacional de Literatura de Berlim, o autor de Conversa na catedral (1969), Pantaleão e as visitadoras (1973) e A guerra do fim do mundo (recriação de Canudos, lançada em 1981) foi saudado pelos organizadores como “um herói do nosso tempo” e declarou, em discurso: “As ditaduras são profundamente desconfiadas em relação à lite- ratura, sabem que ela representa um perigo para elas”.
Ainda na conferência, destacou: “Se, como cidadãs e cidadãos, não queremos ser zumbis, criaturas que aceitam tudo o que seja imposto de cima para baixo, temos que infiltrar a sociedade com literatura”.
Em Tempos ásperos, Vargas Llosa atribui grande ênfase à autoria intelectual do golpe de 1954 na Guatemala à multinacional United Fruit Company – conhecida como Polvo, que detinha o monopólio da exportação da banana na América Central e havia tido algumas terras ociosas expropriadas por Jacobo Árbenz. Também estava sob ameaça de ser forçada a pagar impostos pela primeira vez. O presidente da Guatemala era um reformista: não pretendia expulsar do país a companhia.
Ao contrário, desejava empurrá-la para o marco legal: além de ser tributada, teria de respeitar os trabalhadores, submetidos a uma estrutura feudal no campo, em que a maioria de guatemaltecos – os camponeses –, sem terras para a própria produção de subsistência, eram forçados ao trabalho para os fazendeiros mestiços e brancos por salários mi- seráveis. Em contraposição, os grandes ruralistas viviam, nas palavras de Vargas Llosa, “como os donatários na colônia, desfrutando de todos os benefícios da modernidade”.
Tal visão de mundo não interessava à United Fruit Company e poderia abrir perigoso precedente na América Central. Detalhando os bastidores da formulação da estratégia para a cons- trução do golpe, Vargas Llosa apresenta as duas personagens, “diferentes entre si por origem, temperamento e vocação”, que exerceram a maior influência sobre o destino daquele país e da América Central no século 20: Sam Zemurray, presidente da United Fruit Company, e Edward L. Bernays , que se autodenominava o “pai das Relações Públicas”.
Autor do livro Propaganda, publicado em 1928, nele Bernays sustenta a tese de que “a publicidade prevalecerá sobre a verdade”, o que despertou o interesse Zemurray, motivado que estava em reverter a má fama de sua empresa na América Central e nos Estados Unidos. Assim começou a relação entre os dois homens.
Ditadores aliados
“Antes” é o título do primeiro capítulo de Tempos ásperos. Nele, Vargas Llosa narra toda a formulação da estratégia política da companhia para escapar das reformas de Árbenz, que culminaria com o golpe de Estado, também apoiado pelos ditadores aliados da CIA, Rafael Trujillo, da República Dominicana, e Anastacio Somoza, da Nicarágua.
O autor descreve como Bernays, que passara algumas semanas na Guatemala levantando informações sobre a conjuntura local, anunciou à direção da companhia, em reunião realizada em Boston, o “receituário” para derrubar o incômodo Árbenz. Embora reconhecendo o caráter democrático do governo dele, propôs a difusão da tese, nos Estados Unidos, de que a então União Soviética, interessada em apoderar-se do canal do Panamá, estaria exercendo forte influência sobre a Guatemala.
“A ideia de que a Guatemala está prestes a cair nas mãos dos soviéticos não deve nascer na imprensa republicana e direitista dos Estados Unidos, mas na imprensa progressista — quer dizer, o centro e a esquerda —, aquela que os democratas leem e ouvem. Aquela que chega a um público maior. Para a coisa ficar mais veros-símil, tudo deve ser obra da imprensa liberal”, defendeu Bernays à diretoria da companhia.
Tiveram papel ativo no golpe o governo Eisenhower (1953-1961), em particular o secretário de Estado, John Foster Dulles, e o chefe da CIA, Allen Dulles, irmão daquele, ambos ex-procuradores da United Fruit. Apontado como ponta de lança da propaganda anticomunista no continente, foi por meio da CIA, a chamada Madrasta, que o longevo ditador dominicano Rafael Trujillo (entre 1930 e 1961) — também personagem de Vargas Llosa em A festa do bode – recebeu os recursos necessários para municiar a operação em curso. Trujillo au- xiliou na formação do assim denominado Exército Liberacionista: eram recrutados cubanos, salvadorenhos, guatemaltecos, colombianos e até alguns “hispânicos” dos Estados Unidos, que se juntaram aos voluntários buscados da Guatemala, segundo descreve o autor.
Exilado em Honduras e ali mantido financeiramente pela United Fruit, o coronel guatemalteco Carlos Castillo Armas foi o “selecionado” para enca- beçar as operações de “libertação” do país. Levado à Flórida, Armas lá recebeu o treinamento para a invasão. De volta à América Central, desta vez para a Nicarágua, teve o apoio e a logística oferecidos pelo ditador Anastacio Somoza para a reunião e preparação do exército de mercenários.
Entre os preparativos para o golpe – que, sob o slogan Deus, pátria e família era chamado por seus gestores de Revolução Liberacionista – destaca-se a rádio clandestina Emissora Liberação, que de Honduras alcançava todo o território guatemalteco com uma das típicas campanhas de desinformação prepa- ratórias de golpes de Estado. E os aviões que partiam de Manágua para atirar panfletos que anunciavam à população civil a invasão para “salvar” o país da ameaça soviética.
De Trujillo, o coronel Castillo Armas recebeu remessas de dólares e armamentos. E no único encontro que com ele teve, a indisposição se reve-lou: Armas não gostou de saber que o ditador dominicano lhe impunha condições para depois de conquistada a vitória e tomado o governo. Não à toa, três anos após a derrocada de Arbenz, em 26 de julho de 1957, Armas, já no comando da Guatemala e sem cumprir nenhuma das exigências de Trujillo, foi assassinado a tiros em um palácio de governo, que, coincidentemente, ficara sem guarda-costas e funcionários naquela noite.
O crime envolto em mistério caiu no esquecimento face às duras turbulências enfrentadas pela América Central nas décadas seguintes, sempre sob a interferência internacional. Mas a história foi retomada pelo jornalista dominicano Tony Raful, autor de La rapsodia del crimen Trujillo vs Armas (Grijalbo, 2017). Baseada em pesquisa do- cumental, a obra de Raful sustenta que o autor do assassinato fora Trujillo. Insatisfeito com Armas, que além de não atender aos seus interesses também debochava dele toda vez que se embebedava, o ditador dominicano enviou Johnny Abbes García como adido militar àquele país, encarregado de tocar a conspiração.
Na noite do assassinato, Abbes García escapou, carregando consigo a amante de Castillo Armas. Amigo de Raful, Vargas Llosa ficou fascinado pela história. E assim nasceu o novo romance.
Sessenta e seis anos depois, a Guatemala segue com 70% de sua população indígena marginalizada, a forte tradição militarista colonial enraizada e uma elite minoritária que monopoliza terras, minas e as riquezas. E ninguém menos do que Eduardo Galeano (1940-2015) poderia prevê-lo, como o fez em Babelia, ensaio geral sobre a violência política na América Latina, publicado pela primeira vez este ano na Espanha pela Editora Siglo XXI. O ensaio foi escrito antes de sua obra Guatemala, uma análise política do continente publicada em 1967, depois de visita feita àquele país, em que aborda as implicações políticas da situação guatemalteca para todo o continente. Por seu turno, o livro Guatemala nasceu quatro anos antes da obra mais conhecida de Galeano, As veias abertas da América Latina.
Eis a força da história que agora Vargas Llosa retoma. Nas palavras do gigante Eduardo Galeano: “A Guatemala é o rosto, desastradamente disfarçado, de toda a América Latina; a face que exibe o sofrimento e a esperança destas nossas terras despojadas de suas riquezas e do direito de esco- lher seu destino (...) O domínio e a exploração da Guatemala como se fosse um objeto de propriedade não é, evidentemente, novo. Ganhou ca- racterísticas singulares a partir de 1954, porque a invasão criminosa que o imperialismo desencadeou à época marcou a ferro e fogo a história presente do país. A queda de Árbenz foi um elo decisivo de uma longa cadeia de agressões que não começaram e não terminaram com ela. A situação atual não poderia ser explicada sem levar em consideração o processo revolucionário da década aberta em 1944 e seu trágico fim: estas tempestades vêm daqueles ventos”.
Trecho do livro
“Arévalo quer fazer da Guatemala uma democracia, como os Estados Unidos, país que admira e tem como modelo. Os sonhadores costumam ser perigosos, e nesse sentido o doutor Arévalo também é. Seu projeto não tem a menor possibilidade de se realizar. Como pode ser uma democracia moderna um país de três milhões de habitantes, setenta por cento dos quais são índios analfabetos que mal saíram do paganismo, ou ainda estão nele, e onde deve haver três ou quatro xamãs para cada médico?
E no qual, por outro lado, a minoria branca, formada por latifundiários racistas e exploradores, despreza os índios e os trata como escravos? Os militares com quem falei também parecem viver em pleno século XIX e podem dar um golpe a qualquer momento. O presidente Arévalo sofreu várias rebeliões militares e conseguiu derrotá-las. Pois bem. Embora me pareçam inúteis os seus esforços para tornar seu país uma democracia moderna, qualquer avanço que ele fizer nesse campo, não vamos nos enganar, seria muito prejudicial para nós.”