Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Montanhas de histórias, vozes e ideias em livro sobre os 300 anos de produção de literatura em Minas

Celebrar é gerar sentido. É expressar um modo de ser e de estar no mundo. É afirmar valores e escolhas. É, ainda, recusar o esquecimento e protestar contra a indiferença ou a ideia de que nada tem importância. De comemorações, rituais e símbolos é possível extrair significados potentes, que ajudam a lidar com os desafios do presente e com as incertezas do futuro.



O tricentenário da autonomia política e administrativa de Minas Gerais não é uma data trivial. É história e memória. Ponto para meditação, merece ocupar as mentes e aquecer os corações daqueles que um dia nasceram em seu território ou dos que, de algum modo, se deixaram seduzir por seus encantos e mistérios, identificando-se – ou intrigando-se – com a sua cultura e a riqueza de suas manifestações artísticas. 

 

Exigência da cidadania, lançar luz sobre os percursos trilhados em Minas e por Minas ao longo do tempo é gesto fundamental para a evolução das perspectivas sobre a sociedade que fomos capazes de levantar e a ampliação de seus horizontes éticos e estéticos. É assim em qualquer área da atuação humana. Não seria diferente quando o assunto é a literatura que por aqui floresceu.

Complexo, o fenômeno literário é enigma de decifração trabalhosa, a requerer pesquisa e empenho. Se, por décadas, ele irrompia sobretudo em alguns núcleos beneficiados pela origem, a renda e a escolaridade, hoje, mais que nunca, permeia a experiência de variados extratos da população, estando por toda parte: nas aldeias, nos quilombos, nas comunidades, nas prisões, nos becos e debaixo dos viadutos.



Fazendo ecoar vozes inesperadas, todas indispensáveis à escuta sensível da realidade, resulta na polifonia que Literatura mineira: trezentos anos pretendeu capturar, em 446 páginas, num painel em que a tradição e o contemporâneo dialogam em grande estilo.  

 

Seleção abrangente          

 

Feita por Jacyntho Lins Brandão,  professor emérito da UFMG e meu confrade na Academia Mineira de Letras, a quem convidei para atuar como organizador, a seleção dos temas e dos autores focalizados nos 30 ensaios do mencionado livro confirma o seu caráter abrangente e inclusivo, atento ao ambiente multifacetado em que se insere, de que servem como exemplos os estudos sobre a literatura afrodescendente, indígena, marginal, erótica.

A formação do grupo de especialistas também procurou dar visibilidade a diferentes instituições universitárias, tanto da capital quanto do vasto interior do estado, prestigiando, desse modo, o princípio da pluralidade.

 

Idealizado quando ainda presidia o BDMG Cultural, em janeiro de 2019, o volume surgiu da intenção de olhar para os três séculos de Minas a partir do legado deixado pelos seus escritores e da vontade de divulgar massivamente tal contribuição em formato capaz de sintetizá-la e de comunicá-la a larga audiência, em combate contra atitudes elitistas. Sua linguagem, por isso, é totalmente acessível, sem perder a precisão e a correção técnica.



Como escrevi no texto de apresentação da obra, “(...) produto de interesse público, este livro foi feito para habitar as salas de aula, as bibliotecas, os centros comunitários e os clubes de leitura de todos os cantos do Brasil. O seu destino é ganhar a estrada, sem limites, e inspirar a reflexão, a crítica e as discussões entre alunos, professores e leitores – sejam quem forem, estejam onde estiverem – sobre esse importante patrimônio de trezentos anos”.

 

Tais propósitos foram elegantemente honrados pela competente jornalista Gabriela Moulin, minha sucessora na direção do BDMG Cultural, e pelo novo presidente do banco, Sérgio Gusmão Suchodolski, quando garantiram plena continuidade ao projeto do livro – que ganhou um belo projeto gráfico, baseado nas cores de nossa bandeira inconfidente, e uma expressiva tiragem –, assim reconhecendo a sua dimensão como fonte e documento histórico e os seus poderosos efeitos no meio social, assegurados tanto por meio da distribuição gratuita da versão impressa quanto pela veiculação integral de seu conteúdo no sítio do Instituto Cultural do Banco de Desenvolvimento, na internet. 

 

Artigo de primeira necessidade, direito de todos, recurso para educar, informar, alegrar e entreter, literatura é para consumo amplo, geral e irrestrito, exigindo acesso fácil e democrático, como preveem as políticas de apoio e incentivo à leitura, todas amparadas e estimuladas pelo nosso ordenamento constitucional.



Não há sociedade avançada que se oponha ou restrinja de algum modo a vigorosa circulação dos livros pelos seus espaços. Criar obstáculos ao trabalho de qualquer dos integrantes de sua cadeia produtiva, como as editoras ou as livrarias, é claramente militar contra a inteligência, a razão iluminista e o progresso. Ler ensina a pensar. E a desconfiar. Ler é libertar-se, é manter a coluna ereta e a cabeça erguida, na condução do próprio destino, sem submissão a nenhum senhor ou guru. É renovar a aposta no sonho da civilização, hoje tão agredida pela ignorância, pela truculência, pela perversão e pela barbárie.

 

*Rogério Faria Tavares é jornalista, doutor em literatura e presidente da Academia Mineira de Letras.

 

Em verso e prosa 

Os autores analisados em ensaios

 

 

Do particular ao universal

Jacyntho Lins Brandão

Especial para o EM

 

O pensamento 65 de Pascal ensina: “Diversidade: uma cidade, um campo, de longe é uma cidade e um campo, mas à medida que alguém se aproxima, são casas, árvores, telhas, folhas, ervas, formigas, pernas de formigas, ao infinito”. Em consequência, quanto mais alguém se afaste, mais perceberá como tudo isso pode “envelopar-se sob o nome de campo” ou cidade.

É essa experiência de variação sucessiva de escalas que orienta a organização de Literatura mineira: trezentos anos. Com enfoques variados, o leitor é convidado ora a contemplar amplas paisagens, ora a concentrar-se em aspectos bem específicos, indo do campo a pernas de formiga e vice-versa.





 

A começar pela analogia numérica: sendo impossível abarcar em detalhe 300 anos, esse tempo reverbera no espaço impresso de 30 ensaios. Como a pretensão não foi que a obra constituísse uma história da literatura mineira ou algum tipo de enciclopédia, a cada um dos autores foi dada liberdade de tratar do tema que lhe foi proposto como considerasse mais adequado. Esses temas dividem-se em dois blocos: de um lado, 16 estudos sobre épocas, gêneros, tendências, movimentos e estilos; de outro, 14 escritores abordados em trabalhos a eles inteiramente dedicados.

 

No primeiro bloco, o leitor encontrará ensaios sobre grupos literários, como o do Suplemento, sobre movimentos, como o Modernismo, e épocas, como a literatura colonial, mais a abordagem da literatura de autoria feminina, afrodescendente, periodística, indígena, marginal, infantojuvenil e erótica, além de estudos sobre os gêneros crônica, romance, poesia, teatro e a própria crítica literária.

A isso se somam, na segunda parte, os textos dedicados a Conceição Evaristo, Lúcio Cardoso, Cláudio Manuel da Costa, Alphonsus de Guimaraens, Pedro Nava, Murilo Rubião, Adélia Prado, Bernardo Guimarães, Henriqueta Lisboa, Júlio Ribeiro, Guimarães Rosa, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Herculano Lopes e Murilo Mendes.





 

No jogo de aproximação e distanciamento que a leitura de Literatura mineira propõe, são passados em revista, alguns de maneira breve, outros de forma mais detida, mais de mil escritores, como se pode constatar do índice onomástico que fecha o volume. Mesmo esse milhar, contudo, não é nem se pretende que seja a totalidade dos autores mineiros, mas se acredita que representem bem o legado de três séculos que se comemora.

Pode-se dizer que Literatura mineira constitui uma espécie de balanço, como compete fazer nos momentos de contagem e comemoração. Se a herança que nos cabe nesses 300 anos tem muito de lamentável – ganância, corrupção, destruição da natureza, espoliação das populações indígenas, escravidão, marginalização, pobreza –, é preciso saber exercer o direito de escolher que tem todo herdeiro, descartando o que há de negativo e elegendo o que tem valor, não só para ressaltar o que há de positivo, como para abrir perspectivas de renovação para o futuro.

 

Nesse sentido, deve-se reconhecer que uma das partes mais valiosas da herança que nos cabe é justamente a literatura, inclusive porque permite refletir sobre o próprio conjunto de nossos males e bens tricentenários. Mais importante, ao permitir a cada um ver o mundo com os olhos de outro, a literatura impulsiona o percurso do particular ao universal, do mesmo ao diferente, da propriedade à diversidade.





 

Como na experiência de Pascal (que agora, a um simples toque, se pode ter no googlemapas), do ponto de vista mais elevado o que vislumbra é esse amplo conjunto que, com justiça, se pode denominar “literatura mineira”. Não de uma perspectiva bairrista, como sinônimo de mineirice, nem mesmo de mineiridade, mas como um modo próprio de se expressar no conjunto da literatura brasileira e da literatura universal.

Quanto mais se ajusta o foco, mais o leitor poderá acompanhar como cada época e cada autor processou a sua inserção nesse espaço mais amplo, desde os primeiros que buscaram imprimir em Minas alguma identidade, como Cláudio Manuel da Costa ao cantar o Ribeirão do Carmo, até os que investem na subversão dessa mesma identidade, como faz Cacaso: “Mar de mineiro é/ inho/ mar de mineiro é/ vão/ mar de mineiro é chão/ mar de mineiro é margem”.

 

Enfim, na rede que se tece entre escritores e ensaístas, Literatura mineira pretende ser não só um olhar que se lança para o passado e desenha um contorno, mas também uma projeção voltada para o futuro, no sentido do que ensina Carlos Drummond de Andrade ao garantir que “as coisas findas/ muito mais que lindas/ estas ficarão”.

 

*Jacyntho Lins Brandão é escritor, tradutor e professor emérito da UFMG

 

Literatura Mineira: 300 anos

 

Edição BDMG Cultural
446 páginas
Distribuição gratuita para as bibliotecas públicas do estado.
O conteúdo integral pode ser acessado gratuitamente no site bdmgcultural.mg.gov.br