O ciclo da terra inclui amor, trabalho e tempo, ensina Raduan Nassar em Lavoura arcaica. Ingredientes
semelhantes
formam o ciclo de um livro: do trabalho do autor aos olhos dos leitores, sempre há um certo tempo. Ao tempo de criação, edição e divulgação, é somada a expectativa da repercussão até a alegria com as primeiras reações (se positivas, claro).
Quando demonstrações de encantamento se multiplicam, o livro não corre mais o risco de ser esquecido. Permanece. Como a história das irmãs Bibiana e Belonísia. E dos seus pais, filhos, avós e de todos que as cercam na saga familiar narrada com maestria por Itamar Vieira Junior em Torto arado.
Quando demonstrações de encantamento se multiplicam, o livro não corre mais o risco de ser esquecido. Permanece. Como a história das irmãs Bibiana e Belonísia. E dos seus pais, filhos, avós e de todos que as cercam na saga familiar narrada com maestria por Itamar Vieira Junior em Torto arado.
Nascido em Salvador, em 1979, Vieira Junior pegou emprestada uma frase da Lavoura de Nassar para a epígrafe do primeiro romance, vencedor em 2018 do Prêmio LeYa, a premiação literária de valor mais alto para originais em língua portuguesa: 100 mil euros.
Presidente do júri, o escritor português Manuel Alegre destacou “a solidez da construção, o equilíbrio da narrativa e a forma como aborda o universo rural do Brasil, colocando ênfase nas figuras femininas, em sua liberdade e na violência exercida sobre o corpo num contexto dominado pela sociedade patriarcal”. Torto arado foi publicado em Portugal antes de no Brasil. Foi do outro lado do Atlântico, portanto, que o encanto começou. E, nos últimos meses, se espalha em nosso país.
Com 30 mil exemplares vendidos desde o lançamento, no segundo semestre de 2019, a edição
brasileira
de Torto arado teve quatro reimpressões e está entre os três títulos mais vendidos pela editora em 2020. Mais do que a vendagem, bem superior à média obtida nos últimos anos até mesmo por grandes nomes da literatura nacional, impressiona a repercussão do romance de Itamar Vieira Junior em redes sociais como o Instagram.
“Essa história certamente jamais sairá da minha memória: um livro que é a força de todos os encantamentos – é voz que não se cala”, destacou Wal Bittencourt (“uma dentista falando de livros”), do perfil @amorpelaliteratura.
“Essa história certamente jamais sairá da minha memória: um livro que é a força de todos os encantamentos – é voz que não se cala”, destacou Wal Bittencourt (“uma dentista falando de livros”), do perfil @amorpelaliteratura.
“Lembrou meu Saramago favorito, Levantado do chão: imprescindível como toda a excelente literatura do sertão”, comentou outro leitor, o procurador Rafael Medeiros Martins. “Fazia muito tempo que um livro não me tocava tão profundamente, que não me fazia olhar dentro de mim e encontrar a força do meu sangue, sentir a história da minha família”, revelou a jornalista Mariana Soletti, do perfil @bedbooks&beyond.
Engenho e destreza
“Cada mulher sabe a força da natureza que abriga na torrente que flui de sua vida”, narra o escritor. O protagonismo feminino, a decisão de dar voz aos silenciados (
trabalhadores
rurais que vivem em condições análogas à escravidão em fazenda no interior da Bahia) e o cuidado na representação das entidades afro-brasileiras (geógrafo, o autor tem doutorado em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia) podem funcionar, nos dias de hoje, como chamariz para a leitura.
Mas, além de questões de gênero e de religião, Torto arado é um livro que, pela destreza e engenho da narrativa (a alternância dos narradores e o domínio da divisão dos capítulos são particularmente notáveis), nasceu revestido de atemporalidade. Como a faca escondida pela avó de Bibiana e Belonísia, que cumpre função narrativa semelhante ao embrulho do pai do narrador de Quase memória (1995), de Carlos Heitor Cony, Torto arado reluz e desafia a corrosão do tempo.
“O livro tem se beneficiado do boca a boca, ainda hoje a melhor forma de ver um livro crescer e chegar aos leitores”, conta o editor Leandro Sarmatz, da Todavia. “Nisso entra também a singularidade de que Torto arado causa em muitos leitores a impressão de se impor como algo já ‘clássico’, um livro já incontornável”, acredita Sarmatz.
Ele aponta outro fator para o êxito do romance: “O livro também se beneficia desse nosso importante momento social e cultural de valorização de outras vozes, não hegemônicas, da nossa sociedade e história. Os quilombolas, os adeptos das religiões afro, as vozes rurais (mas dos trabalhadores do campo, não dos donos da terra). Essa outra história brasileira que ainda precisa ser contada, estudada, lembrada”, destaca o editor.
“A necessidade de romper a barreira do silêncio e fazer com que a voz ecoe talvez seja a principal metáfora do livro”, acredita o crítico Rodrigo Casarin, do blog Página Cinco, que destacou também “a competência de Itamar para transformar a oralidade em literatura.”
Ele aponta outro fator para o êxito do romance: “O livro também se beneficia desse nosso importante momento social e cultural de valorização de outras vozes, não hegemônicas, da nossa sociedade e história. Os quilombolas, os adeptos das religiões afro, as vozes rurais (mas dos trabalhadores do campo, não dos donos da terra). Essa outra história brasileira que ainda precisa ser contada, estudada, lembrada”, destaca o editor.
“A necessidade de romper a barreira do silêncio e fazer com que a voz ecoe talvez seja a principal metáfora do livro”, acredita o crítico Rodrigo Casarin, do blog Página Cinco, que destacou também “a competência de Itamar para transformar a oralidade em literatura.”
“Vejo leitores de todas as origens
comentando
e divulgando o livro. Não há um perfil definido. Jovens e pessoas mais velhas, homens e mulheres, negros e brancos. Todas as leituras são muito especiais. Fiquei especialmente emocionado com mensagens de leitores que reconheceram suas vidas, a de seus pais e avós nos eventos narrados no romance. Muitos nem sequer sabiam que aquela condição de subalternidade se tratava de relações de servidão, permanências do nosso passado escravagista”, conta Itamar Vieira Junior em entrevista ao
Estado de Minas
.
“Teve também duas leituras que me comoveram especialmente: a de Nina Santos, neta do grande intelectual Milton Santos, que por situações adversas de minha vida se tornou meu tutor intelectual, e a da cineasta Daniela Thomas, que me escreveu um texto emocionado”, lembra. Os direitos de adaptação para o audiovisual foram comprados pela produtora Paranoid, do cineasta Heitor Dhalia. E a tradução em italiano, com o título Aratro ritorto, foi lançada em agosto pela Tuga Edizioni.
“Teve também duas leituras que me comoveram especialmente: a de Nina Santos, neta do grande intelectual Milton Santos, que por situações adversas de minha vida se tornou meu tutor intelectual, e a da cineasta Daniela Thomas, que me escreveu um texto emocionado”, lembra. Os direitos de adaptação para o audiovisual foram comprados pela produtora Paranoid, do cineasta Heitor Dhalia. E a tradução em italiano, com o título Aratro ritorto, foi lançada em agosto pela Tuga Edizioni.
Novo romance
Em 2021, a Todavia editará, com histórias inéditas, a coletânea de contos A oração do carrasco, lançada originalmente pela editora Mondrongo em 2017 e finalista da 60ª edição do prêmio Jabuti. Um novo romance, ainda sem data para
conclusão
, está no horizonte do autor, que adianta o tema: “Os conflitos fundiários permanecem e há um olhar também para os desterrados, os que saíram do campo para a cidade e vivem em condições de vulnerabilidade”.
Vieira Junior cita os nomes de três escritores brasileiros que foram decisivos para a sua formação como escritor: Jorge Amado, Lima Barreto e Clarice Lispector. “Entre os
estrangeiros
, gosto muito de Toni Morrison, Herman Hesse e William Faulkner”, destaca.
Os escritores citados conseguiram, em seus grandes momentos, o que o baiano obteve logo em sua estreia, ao revolver a terra assombrada pela violência e encharcada de desigualdade: fazer o leitor mergulhar em uma vertiginosa “procissão de lembranças”, um turbilhão em que não se sabe onde termina o ontem e começa o hoje. “O sangue do passado corre feito um rio. Corre nos sonhos, primeiro. Depois chega galopando, como se andasse a cavalo”, escreve Vieira Junior em Torto arado.
Os escritores citados conseguiram, em seus grandes momentos, o que o baiano obteve logo em sua estreia, ao revolver a terra assombrada pela violência e encharcada de desigualdade: fazer o leitor mergulhar em uma vertiginosa “procissão de lembranças”, um turbilhão em que não se sabe onde termina o ontem e começa o hoje. “O sangue do passado corre feito um rio. Corre nos sonhos, primeiro. Depois chega galopando, como se andasse a cavalo”, escreve Vieira Junior em Torto arado.
Entrevista com o autor:
"O passado escravagista nunca permitiu que o Brasil abandonasse seu status colonial. Só que agora somos colonizadores de nós mesmos. O racismo estrutural é o maior legado da economia escravagista e o principal pilar da nossa desigualdade"
Itamar Vieira Junior
O que nasceu primeiro em Torto arado: as personagens ou a história?
A história. Eu era adolescente e estava impactado pela leitura dos grandes romances brasileiros da geração de 1930 e 1945. Foi quando comecei a escrever o
romance
. Depois houve um grande hiato quando segui com os estudos acadêmicos e fui trabalhar em outras frentes. Mas a história me acompanhou por longos anos, e quanto mais eu conhecia, mais as personagens ganhavam força. No processo de reescrita são elas que assumem a narrativa.
Como você decidiu pela alternância de vozes narrativas? Que vozes são essas e quais as diferenças entre elas?
Já no processo de reescrita, a história começou a ser narrada por uma das irmãs. Depois de muitas páginas eu me dei conta de que havia uma vida anterior que precisava ser
narrada
. Mas esses fatos não deveriam ser narrados pela mesma personagem, era preciso dar voz a outra. Gosto muito da ideia de que nenhum narrador é confiável. De que a memória é traiçoeira, que é um jogo entre o recordar e o esquecer, um processo que repercute de forma diferente em cada um. Por fim, uma terceira narradora assume a última parte. Não é uma personagem muito
convencional
, mas ela pode contar a história a partir de uma perspectiva temporal muito mais ampla, já que ela própria não teria nem começo nem fim.
Como incorporou os seus estudos étnicos e africanos à ficção?
Não incorporei apenas os estudos étnicos à ficção. Ali há muito do mundo,
conhecimento
que adquiri com meus estudos de geografia – sou geógrafo de formação. Há muito de filosofia, antropologia. Costumo dizer que todo meu percurso acadêmico, científico, além de toda a minha história pessoal e profissional, costumam atravessar minha escrita. Os métodos antropológicos e etnográficos, sobretudo, me permitiram a estudar as personagens como sujeitos plenos de vida. Para falar sobre elas, eu precisava conhecê-las. Para mim, o processo de escrita é muito longo, não é algo que se resolve em pouco tempo. Eu preciso conhecer as
personagens
em profundidade para poder escrever sobre elas.
Torto arado foi premiado e editado em Portugal, depois chegou ao Brasil. O que mudou com o fato de a trajetória do livro começar em outro país? Notou diferença entre as leituras dos portugueses e dos brasileiros?
Como não tinha contato com editoras, eu inscrevi o livro no Prêmio LeYa. Quando acabei de escrever e revisar os originais, recebi um alerta dizendo que faltavam cinco dias para finalizar a inscrição. Fui pesquisar o histórico do prêmio e vi que um brasileiro e um moçambicano foram
distinguidos
em anos anteriores, e o restante eram autores portugueses. Vi também que é a obra é avaliada por um júri de notáveis: o escritor Manuel Alegre, o poeta Nuno Júdice, a poeta angolana Ana Paula Tavares, a crítica e escritora Isabel Lucas, entre ou- tros. Meses depois, recebi um telefonema do Manuel Alegre, um telefonema que já se tornou marca do Prêmio LeYa. De lá pra cá tudo mudou.
Como foi a receptividade em Portugal?
O prêmio tem uma grande visibilidade em Portugal, sendo divulgado com muito interesse pelos meios de comunicação. Participei de feiras e festivais, percorri Portugal de norte a sul. Fui para lá cheio de medo, pensava, bom, o júri
gostou
, mas e o público e a crítica? Mas foram semanas especiais e até hoje recebo retorno de leitores portugueses. O prêmio ajudou a divulgar o romance, a despertar o interesse pelo livro. Em Portugal, recebi retorno de leitores mais velhos e que conhecem a história de seu país. Viram os conflitos fundiários e a servidão como parte da história de
regiões
como o Alentejo, por exemplo. O resto do caminho o livro tem feito só, e é o que importa. Tem conquistado leitores pela história.
Como tem acompanhado a reação ao livro nas redes sociais?
Eu tenho acompanhado as redes sociais para divulgação do trabalho. Só abri uma conta no Instagram em 2018, depois que contatos começaram a divulgar leituras do meu livro anterior, A oração do carrasco. Passei a ter uma conta no Facebook em 2012 para divulgar o meu livro de contos Dias. Acho
interessante
essa forma de estabelecer contato entre o autor e o leitor, algo inimaginável nos meus primeiros anos de leitura.
“De tudo que vi meu pai bem-querer na vida, talvez fosse a escrita e a leitura dos filhos o que perseguiu com mais afinco.” O conhecimento ainda é o maior legado possível em nosso país?
A educação é um atributo humano, uma constante em nossas vidas. Educar vem do latim educere, que significa “ir para fora”, sair de si, exercitar a alteridade. Nesse processo, a educação formal como conhecemos, a escrita, a leitura, o conhecimento científico e todos os processos de vida que não estão
sistematizados
, mas que também podem fazer parte de nossa educação, como a cosmovisão dos povos indígenas e quilombolas, por exemplo, devem ajudar a construir o cidadão, aquele que saberá exercer de forma plena a cidadania. Sem dúvida, esse é o maior legado que um país pode deixar para o seu
povo
.
Pretende explorar, no próximo romance, a relação do homem com a terra? Quando deve concluir? O que pode adiantar sobre ele?
Quando concebi Torto arado, imaginei o romance como início de um projeto literário maior que deve se debruçar sobre a relação de homens e mulheres com a terra, além dos nossos graves conflitos fundiários. Tenho pesquisado e refletido sobre um novo projeto de romance há alguns anos. Eu não me dei prazo para concluí-lo. Quero que venha a público quando considerá-lo pronto. O que posso adiantar é que no novo projeto os conflitos
fundiários
permanecem e há um olhar também para os desterrados, os que saíram do campo para a cidade e vivem em condições de vulnerabilidade.
Como o passado escravagista assombra o país?
O passado escravagista nunca permitiu que o Brasil abandonasse seu status colonial. Só que agora somos colonizadores de nós mesmos. O racismo estrutural é o maior legado da economia escravagista e o principal pilar da nossa desigualdade. São marcas profundas que estão por toda parte: os negros e pardos são maioria da população carcerária; são as maiores vítimas da atual pandemia. O grande contingente de
desempregados
e as vítimas das forças de segurança do país são também, em sua grande maioria, negros e pardos. Essa consciência é primeiro passo para uma mudança efetiva, uma mudança que seja seguida por uma reparação pelos séculos de segregação desumana.
O que Bibiana e Belonísia têm a dizer ao Brasil de 2020?
Que “lutar” deve ser uma palavra permanente em nosso vocabulário. A luta contra injustiças, por direitos, por democracia, pela completa abolição de qualquer forma de
escravidão
deve ser constante em nossas vidas. Nós seremos cobrados pelas gerações futuras se não fizermos algo para proteger os povos indígenas, os quilombolas, a Amazônia e o Pantanal.
Três perguntas para...
Leandro Sarmatz (editor)
"Estamos assistindo ao nascimento de um clássico"
O que foi decisivo para a decisão da Todavia de lançar Torto arado?
A altíssima qualidade do livro. O trabalho cuidadoso de linguagem; a construção precisa dos personagens; a trama que abre uma janela para o Brasil profundo. E a força do livro como uma visada absolutamente afiada do Brasil – de ontem e de hoje. Logo nas primeiras páginas foi possível
vislumbrar
que estávamos diante de um autor bastante singular, com uma voz já madura e com um universo muito rico para tratar. Foi, portanto, um desses momentos sonhados por qualquer editor: entrar em contato com um novo autor já estabelecido em seu métier, “descobrir” uma nova voz já potente e decisiva para a nossa cena
contemporânea
.
Como avalia a opção do autor por diferentes vozes narrativas e quais outros aspectos da técnica narrativa de Itamar Vieira Júnio chamaram a sua atenção?
Acho que o “concerto” de vozes urdido pelo Itamar
responde
estruturalmente à necessidade de mostrar essa história pelos mais diversos ângulos. E de produzir essa alternância de tempos, pontos de vista e até de andamentos da narrativa. Acho um acerto estupendo. Um negócio muito importante no Itamar é a linguagem. Seria “fácil”, talvez, optar por uma voz
excessivamente
regional, ou então apenas pelo tom de um narrador cultivado observando aquelas vidas.
O Itamar sabiamente escolheu um outro caminho, em que o dado regional, a voz local aparece, mas também sob o filtro de uma voz literária cônscia do equilíbrio entre essas duas vertentes. E é uma voz melodiosa, fluente, às vezes quase encantatória . Ela ajuda a produzir aquele mundo dele. Isso para mim, aliado à visão crítica da situação em que se encontram os personagens, faz de Torto arado aquilo que muitos leitores e críticos têm observado: estamos assistindo ao nascimento de um clássico.
O Itamar sabiamente escolheu um outro caminho, em que o dado regional, a voz local aparece, mas também sob o filtro de uma voz literária cônscia do equilíbrio entre essas duas vertentes. E é uma voz melodiosa, fluente, às vezes quase encantatória . Ela ajuda a produzir aquele mundo dele. Isso para mim, aliado à visão crítica da situação em que se encontram os personagens, faz de Torto arado aquilo que muitos leitores e críticos têm observado: estamos assistindo ao nascimento de um clássico.
Há uma atemporalidade em Torto arado que parece ecoar nos leitores. Acredita que o livro tem condições de atravessar gerações e se tornar atemporal, como os grandes romances da literatura brasileira?
De fato, eu mesmo tive essa impressão na minha primeiríssima leitura. Eu estava diante de um livro premiado poucos meses antes que transpirava uma qualidade e uma energia de um livro que “já estava” entre nós. O modo como eu li é, imagino, o mesmo que tantos leitores experimentam: é um livro que poderia ter sido escrito por um de nossos grandes em 1940, 1960. Daí vem essa aura de “clássico no nascimento”. Isso tem a ver com aspectos formais bem evidentes, como a construção da narrativa, a
linguagem
, o tema, os personagens, mas também com algo menos palpável, uma energia muito particular de um livro que nos faz atravessar para outro lado do nosso país, um lado que infelizmente mudou muito pouco ao longo dos séculos, e que está retratado no livro com dignidade e força.
Trecho
“Pela estrada, debaixo do sol forte, a massa do buriti aquecido escorria pelas tramas da linhagem e nos besuntava com sua polpa gordurosa e alaranjada. Nossa pele negra ficava quase acobreada. Chegávamos à cidade
envergonhadas
da sujeira em nosso cabelo e roupas. Levávamos tecidos enrolados embaixo da cabeça para ajudar no equilíbrio do peso e amenizar um pouco o que escorria. Mas tinha dias em que o sol parecia uma fogueira acesa de cabeça para baixo, nossos corpos se enchiam do sumo do
buriti
.
Eu mesma cheguei a escorregar na massa que escorria. Da mesma forma, levávamos o azeite de dendê fabricado em nossos quintais, quando havia, em garrafas vazias de cachaça, fechadas com cortiças usadas. Não tínhamos animal naquele tempo, então era preciso contar com a força dos braços para carregar as sacolas de taboa com as garrafas cheias de azeite, chegando com as mãos inchadas e dormentes à feira. O sol nos castigava com a fome e nos restava o desalento pelas roças perdidas .”
Eu mesma cheguei a escorregar na massa que escorria. Da mesma forma, levávamos o azeite de dendê fabricado em nossos quintais, quando havia, em garrafas vazias de cachaça, fechadas com cortiças usadas. Não tínhamos animal naquele tempo, então era preciso contar com a força dos braços para carregar as sacolas de taboa com as garrafas cheias de azeite, chegando com as mãos inchadas e dormentes à feira. O sol nos castigava com a fome e nos restava o desalento pelas roças perdidas .”
. Torto arado
. Itamar Vieira Junior
. Todavia Editora
. 262 páginas
. R$ 54,90