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Estado de Minas LIVRO

O lugar da liberdade


09/10/2020 04:00 - atualizado 09/10/2020 09:25

A linguagem da ficção, que é um real por si mesmo, joga o leitor num universo irreal criado pela obra. A literatura é écriture (como a denominava Barthes), sendo, por isso, uma espécie de autre que cria mundos paralelamente ao mundo “real”. O leitor é chamado a viver o que o autor lhe propõe, dentro de regras específicas da criação literária, numa realidade concreta – mesmo quando representando o impossível, o irreal, o fantasioso –, a da ficção que materializa seu próprio universo.

O poder de criar é o poder de fundar novos mundos. A literatura não é a imitação do mundo, não é seu reflexo, mas a realização de si mesma.  E é acreditando nela, como se estivéssemos em presença da verdade, que acreditamos no poder de nos tonar navegantes de um mundo paradoxal, onde a mentira, a impossibilidade da verdade, a insuficiência do ser, torna-se realização de uma irrealização (como dizia Blanchot).

Essas reflexões iniciais servem para introduzirmos o livro Novos fármacos & outras histórias, de Juliano Klevanskis (Scriptum). Diferentemente do escriba que, “há milhares de anos, copia os rolos da Torá, meticulosa e ortodoxamente” (Prólogo), os contos apresentados no livro, embora muitos deles mergulhados na cultura judaica, levam o leitor a universos fantasiosos, nos quais a realidade é sabotada insistentemente, seja no universo das situações prosaicas ou nas situações da ordem mais fincada em tradições religiosas e familiares. Não só, pois aqui também se ficcionaliza as tradições intelectuais judaicas, com seus livros sagrados, suas histórias ancestrais e suas práticas religiosas.

Em alguns momentos, como se pode ver no conto Senhora, Cohen, percebe-se o arremedo da própria escrita bíblica ao se tratar de um tema contemporâneo, como a questão do empoderamento feminino, da questão do uso das tecnologias, da função do poder paterno e, ao mesmo tempo, das regras religiosas que organizam aquela família e seus valores, como pode ser exemplificado nas seguintes colocações do conto: “Ignorar as dúvidas do filho é pecado”, “A última palavra aqui é minha!” e “Equidade de gênero, percebem? E querem introduzi-la no judaísmo! É mais um modernismo!...”

Assim, dribla-se todo o jogo do poder patriarcal numa construção ficcional – segundo o autor, à maneira de Arthur Azevedo – que nos faz pensar nos textos bíblicos em que os ensinamentos se dão através de conversas prosaicas exemplares.

Já que a realidade da literatura pode transformar a simples existência dos personagens num fantasioso universo de acontecimentos, a cada conto de Klevanskis que lemos somam-se as situações absurdas que aparecem constantemente, mesclando dados do real a elementos do fantástico. Um exemplo é o conto Gato Borges, que elenca no seu referencial dois escritores da chamada literatura fantástica: Jorge Luís Borges e Murilo Rubião. 

O nome do gato e o personagem desaparecido, Murilo Rubião, procurado pela polícia, se encontram numa trama maluca na qual o gato, que passa a morar na casa da senhora Ême e do senhor Pê, começa a comandar as ações do lar, desenvolvendo um poder absoluto sobre seus moradores. Da convivência simples de uma senhora sonhadora, nostálgica da vida das grandes cidades, com seus restaurantes, teatros e cinemas, e do marido, preocupado com as tarefas cotidianas de plantar, colher, aguar a horta e cuidas das galinhas, vivendo no aconchego de uma vida simples com seus três gatos, eis que surge o imprevisto, um novo gato que instaura o absurdo e desregula toda a realidade.

A transfiguração dos nomes dos personagens já nos introduz no mundo da ficção fantasiosa, denominados como letras do alfabeto (M e P), indicam que pertencem ao reino da escrita, ao universo da criação literária.

É nesse redemoinho de referências literárias, religiosas e da própria escrita que se vão constituindo os contos de Novos fármacos & outras histórias, mas tudo isso mergulhado em situações inesperadas, que contradizem o real a todo tempo, fazendo o leitor deslizar por alguns instantes no desespero de não saber qual o limite desses universos. Os contos De repente, um tiro e Suicídio paralelo nos introduzem nesse dilema dos limites das ações reais e irreais, por exemplo.

Sendo essa reunião de contos um livro, não poderia de deixar de refletir sobre leitores e vendedores de livros, os livreiros, num conto bastante engraçado, no qual situações também absurdas se mesclam à prosa cotidiana da existência de uma livraria. Refiro-me ao conto A arte de pedir um livro em uma livraria. Numa enciclopédia do gosto dos compradores por livros específicos desenha-se o caráter e ansiedades de cada um deles. Da relutância sobre preços, entregas, procuras vai se formando o universo de uma livraria e seus personagens, que são desnudados em suas exigências de leitores.

Novos fármacos & outras histórias é um livro singular. Com forte referencial intelectual na cultura judaica, busca ainda sim empreender uma invenção literária que ultrapassa os ditames das verdades estabelecidas, procurando nas entrelinhas do absurdo aquela verdade que a literatura carrega, a do confronto com a linguagem comum, o abandono das certezas que se querem imutáveis. Como dizia Maurice Blanchot, em L’Entretieninfinit: “Escrever, desse ponto de vista, é a maior violência, pois transgride a lei, toda lei e sua própria lei.”

Há dois exílios para o escritor: ele está fora do mundo e fora de si. Por isso escreve, não permanecendo onde está, não pertencendo a nenhum lugar. Exilado está, mas dentro do único lugar que lhe interessa: o lugar da liberdade de criação.

Novos fármacos & outras histórias 
>> Juliano Klevanskis
>> Scriptum
>> 247 páginas
>> R$ 54
>> Encomendas pelo site: livrariascriptum.com.br ou pelo whatsapp da livraria: (31) 99951-1789


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