“Só o Paulo Rónai e o Antonio Candido penetraram nas primeiras camadas do derma; o resto flutuou sem molhar as penas”, escreveu Guimarães Rosa ao embaixador Antônio Azeredo da Silveira, em carta datada de 25 de setembro de 1946, como registra a filha Vilma no livro Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, de 1999.
A passagem do tempo, naturalmente, ampliou a lista dos ‘leitores qualificados’ do legado rosiano, auxiliando imenso público, no Brasil e no exterior, na fascinante jornada pela sua obra, como fizeram, com inegável talento, Benedito Nunes, Alfredo Bosi, Luiz Costa Lima, Walnice Nogueira Galvão e Davi Arrigucci Jr., entre outros.
O valor das reflexões de seus ‘leitores pioneiros’, no entanto, permanece intacto. Eles ainda são capazes de iluminar as perspectivas de interpretação de Rosa e de oferecer, até hoje, chaves fundamentais à compreensão do universo por ele criado. Originalmente publicado na revista Diálogo, em 1957, O sertão e o mundo, de Candido, depois rebatizado como O homem dos avessos, é exemplo que comprova tal afirmação, assim como outro de seus ensaios, Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa, de 1965.
Além de acurado analista da obra de Rosa, Paulo Rónai, por sua vez, é mais: foi prefaciador, editor e um de seus melhores amigos, alguém com quem o escritor manteve, ao longo da vida, várias afinidades. Como relembra Eneida Maria de Souza, professora emérita da UFMG, no artigo “A Hungria/sertão de Guimarães Rosa”, ‘(...) filólogo e escritor cultivavam o amor da língua, não se restringindo aos idiomas maternos, mas se expandindo por outros de procedências diversificadas. Rónai ocupará na divulgação da obra de Rosa lugar de destaque, prefaciando em 1962 Primeiras estórias e sendo responsável pela publicação póstuma de Ave, palavra e Estas estórias. A prática tradutória, de âmbito literal em Rónai, é assumida metaforicamente por Rosa, na sua poética revolucionária e transgressora, ao condensar e inventar palavras de origens diferentes’.
A contribuição de Rónai à leitura de Rosa, antes dispersa, agora surge disponível, integralmente, em Rosa & Rónai – O universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador (Bazar do Tempo). Organizada por Ana Cecília Impellizieri Martins – que também assina a excelente biografia do intelectual húngaro, O homem que aprendeu o Brasil – A vida de Paulo Rónai (Todavia) – e pela economista e tradutora Zsuzsanna Spiry, a edição reúne as ideias que Rónai desenvolveu, por três décadas, sobre os livros do imortal de Cordisburgo e ainda inclui uma útil tabela sobre a sua produção relativa a Rosa.
Uma breve biografia e a bibliografia básica do crítico húngaro encerram a obra, que também é um eficiente guia para quem quiser conhecer melhor as tramas engendradas pelo gênio de Grande Sertão: veredas.
Uma breve biografia e a bibliografia básica do crítico húngaro encerram a obra, que também é um eficiente guia para quem quiser conhecer melhor as tramas engendradas pelo gênio de Grande Sertão: veredas.
“O leitor ideal”
Um texto de Samuel Titan Jr. abre o volume. Começando por destacar a trajetória invulgar de Rónai, o professor de teoria literária e literatura comparada da USP salienta no prefácio a vocação do húngaro para a vida literária, manifestada desde muito cedo, em seu país de origem, e a fidelidade a ela ao longo de toda a sua biografia, mesmo depois de se ver obrigado a fugir dos nazistas que dominavam a Europa, no começo dos anos 1940, para tentar a sobrevivência num território completamente desconhecido.
Premido pela necessidade de seguir adiante, disposto a superar todos os obstáculos, Rónai refaz a sua realidade na terra estrangeira. Renascendo brasileiro, integra-se de corpo e alma ao território responsável por acolhê-lo. Como é sabido, com incrível talento para a amizade, cria e cultiva laços com importantes nomes da vida cultural brasileira, como Ribeiro Couto, Carlos Drummond de Andrade, Aurélio Buarque de Holanda e Cecília Meireles.
Incansável, apaixonado por idiomas (trabalhava bem com cerca de nove) e leitor voraz, afirma-se como professor, ensaísta, crítico, editor e tradutor, facetas que terminam por alçá-lo à condição de ‘leitor ideal’ de Rosa, na visão de Titan Jr.
Incansável, apaixonado por idiomas (trabalhava bem com cerca de nove) e leitor voraz, afirma-se como professor, ensaísta, crítico, editor e tradutor, facetas que terminam por alçá-lo à condição de ‘leitor ideal’ de Rosa, na visão de Titan Jr.
A aproximação entre Rónai e o autor surge motivada por uma questão que aquele precisava resolver no Itamaraty, e permanece sólida até a morte do mineiro, em 1968, três dias depois de sua posse na Academia Brasileira de Letras, onde fora recebido por Afonso Arinos de Melo Franco.
Como enfatiza Zsuzsanna Spiry, citando frase de Rónai, logo no parágrafo de abertura do texto Nas veredas da amizade, que sucede ao de Titan Jr.: “Não estava preparado para sobreviver a Guimarães Rosa”. Outra a sublinhar os vários pontos que ligavam Rosa a Rónai, Spiry investiga a natureza da identificação intelectual entre eles, nomeando-a de ‘mútuo apreço de espíritos’, não sem lembrar como ela se materializava: ‘Com o tempo, os textos críticos de Paulo Rónai passaram a integrar todas as edições dos livros de Guimarães Rosa, como prefácio, posfácio ou nota explicativa’.
Como enfatiza Zsuzsanna Spiry, citando frase de Rónai, logo no parágrafo de abertura do texto Nas veredas da amizade, que sucede ao de Titan Jr.: “Não estava preparado para sobreviver a Guimarães Rosa”. Outra a sublinhar os vários pontos que ligavam Rosa a Rónai, Spiry investiga a natureza da identificação intelectual entre eles, nomeando-a de ‘mútuo apreço de espíritos’, não sem lembrar como ela se materializava: ‘Com o tempo, os textos críticos de Paulo Rónai passaram a integrar todas as edições dos livros de Guimarães Rosa, como prefácio, posfácio ou nota explicativa’.
O texto publicado por Rónai no Diário de Notícias em 11 de julho de 1946, que figura em lugar de destaque no livro, dimensiona com exatidão o olhar que o crítico conferiu à estreia de Rosa, em Sagarana. Nele, o escritor é apontado como ‘o autor regionalista de uma obra cujo conteúdo universal e humano prende o leitor desde o primeiro momento, mais ainda que a novidade do tom ou o sabor do estilo’.
Premonitório, Rónai diz que Rosa – vocação épica de excepcional fôlego – ‘dar-nos à decerto algum romance em que seu dote de criar e movimentar personagens e vidas se manifeste ainda mais à vontade’. Na conclusão, ressalta o quanto Rosa ‘não apenas conhece todas as riquezas do vocabulário, não apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas numa alegria quase sensual, fundindo num conjunto de saber inédito arcaísmos, expressões regionais, termos de gíria e linguagem literária”.
Premonitório, Rónai diz que Rosa – vocação épica de excepcional fôlego – ‘dar-nos à decerto algum romance em que seu dote de criar e movimentar personagens e vidas se manifeste ainda mais à vontade’. Na conclusão, ressalta o quanto Rosa ‘não apenas conhece todas as riquezas do vocabulário, não apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas numa alegria quase sensual, fundindo num conjunto de saber inédito arcaísmos, expressões regionais, termos de gíria e linguagem literária”.
Uma década depois, em 10 de junho de 1956, Rónai assina “O segredo de Guimarães Rosa” no jornal O Estado de S.Paulo e, sob o título de “Rondando os segredos de Guimarães Rosa”, o mesmo texto, no Diário de Notícias. É quando escreve sobre Corpo de baile, oportunidade em que chama o autor de ‘inventor de abismos’: ‘Esses abismos inventados dão reais calafrios. No fundo deles se vislumbram os grandes medos atávicos do homem, sua sede de amor e seu horror à solidão, seus vãos esforços de segurar o passado e dirigir o futuro. Nas obras de Guimarães Rosa, tais sentimentos plasmam a mente de personagens marginais, imperfeitamente absorvidas pelo convívio social ou nada tocadas por ele: crianças, loucos, mendigos, cantadores, prostitutas, capangas, vaqueiros. Eles é que formam o corpo de baile num teatro em que não há separação entre palco e plateia’.
É de 16 de dezembro de 1956 o texto em que Rónai saúda, finalmente, o aparecimento do grande romance pelo qual aguardava desde Sagarana. Originalmente publicado no Diário de Notícias, é quando o crítico definitivamente consagra o escritor, por conta de Grande sertão: veredas: ‘Em redor de um mito universal, Guimarães Rosa conseguiu edificar uma obra de valor universal com elementos indígenas. O seu Riobaldo, esse Fausto sertanejo, entre inculto mas dotado de imaginação e poesia, ao passar revista dos acontecimentos de sua vida aventurosa, enfrenta seguidamente todas as contingências do ser – o amor, a alegria, a ambição, a insatisfação, a solidão, a dor, o medo, a morte – e relata-as com a surpresa, a reação fresca de quem as experimentasse pela primeira vez no mundo, reinventando as explicações dos filósofos numa formulação pitoresca e ingênua’.
As observações de Rónai sobre Primeiras estórias, Tutameia (terceiras estórias), Estas estórias e Ave, palavra também integram o livro, que já nasce indispensável a toda biblioteca rosiana, numa bela e necessária celebração do diálogo entre duas personalidades que foram capazes de recriar, cada uma ao seu modo, mas sempre magistralmente, e em favor da literatura, o mundo que lhes coube viver. Como não ler?
Jornalista, doutor em literatura e presidente da Academia Mineira de Letras
Rosa & Rónai – o universo de Guimarães Rosa por Paulo Rónai, seu maior decifrador
>> Organização de Ana Cecilia Impellizieri Martins e Zsuzsanna Spiry. Prefácio de Samuel Titan Jr.
>> Bazar do Tempo
>> 308 páginas
>> R$ 65
Entrevistas /Ana Cecilia Martins e Zsuzsanna Spiry
“Afinidade na paixão pela literatura”
Carlos marcelo
Paulo Rónai conhecia tão profundamente a obra de Guimarães Rosa que o húngaro recebeu a missão de organizar as obras póstumas do escritor, morto em 1967. É o que destacam as organizadoras do livro Rosa & Rónai, a jornalista e historiadora Ana Cecilia Impellizieri Martins, autora da biografia O homem que aprendeu o Brasil: a vida de Paulo Rónai (Todavia), e a economista e tradutora Zsuzsanna Spiry, mestre pela Universidade de São Paulo (USP) com a dissertação “Paulo Rónai, um brasileiro, made in Hungary”. “Somos duas pesquisadoras dedicadas ao estudo da vida e obra de Rónai há anos. E sentimos, ao longo desses percursos, o quanto nossos olhares são complementares”, afirma Ana Cecilia, uma das organizadoras.
“Neste trabalho, foi possível, enfim, unir nossa paixão e conhecimento apresentando um material que julgamos valioso para que os leitores brasileiros entendam a importância da contribuição de Rónai para nossa literatura. Veja que se trata de um húngaro que se torna o maior interlocutor de Guimarães Rosa, um de nossos mais inventivos e fascinantes ficcionistas”, ressalta Ana Cecilia, editora da Bazar do Tempo.
“Neste trabalho, foi possível, enfim, unir nossa paixão e conhecimento apresentando um material que julgamos valioso para que os leitores brasileiros entendam a importância da contribuição de Rónai para nossa literatura. Veja que se trata de um húngaro que se torna o maior interlocutor de Guimarães Rosa, um de nossos mais inventivos e fascinantes ficcionistas”, ressalta Ana Cecilia, editora da Bazar do Tempo.
“Um ponto que também julgamos importante destacar é que Rónai, diferentemente de outros importantes críticos da obra de Rosa, fazia suas leituras/críticas no momento em que as obras eram lançadas, sem ter, portanto, outros amparos, parâmetros. Tem, assim, esse mérito de uma percepção pioneira, autêntica. Talvez apenas Antonio Candido tenha tido essa pro- ximidade temporal”, lembra Ana Cecilia. A seguir, uma entrevista com as organizadoras:
Quais as afinidades mais marcantes entre os dois intelectuais?
Zsuzsanna Spiry – A meu ver, a maior afinidade entre Rosa e Rónai é a paixão pela literatura e pelas línguas e a capacidade que ambos tinham de manejar as ferramentas linguísticas para seu próprio deleite, assim como de seus leitores. Em suas críticas, demonstra Rónai seu prazer em falar das peripécias linguísticas do amigo, enquanto que Rosa, no famoso prefácio à Antologia de contos húngaros – Pequena palavra, que presenteou o amigo, descreve Rónai nos mesmos termos: “Escritor de válida formação cultural europeia, humanista, latinista, romanista, erudito em literatura comparada – é um poliglota: demais do húngaro, do latim e do português, dominando excelentemente o francês, o alemão e o italiano, familiarizado com o inglês e o espanhol, co- nhecendo o grego e o russo, orientando-se na gramática, na estrutura formal e na intimidade da essência de ainda outras línguas”.
Ao nos contar como se livrou das cha- tices das aulas formais de latim e passou a desfrutar suas traduções de clássicos como Virgílio, ainda na adolescência, na Hungria, Rónai cria uma imagem quase que sensual do ato tradutório (Rónai, em Tradução vivida): “No curso secundário do meu tempo ainda se aprendia latim em seis aulas semanais durante oito anos.
O deslumbramento veio com Virgílio no dia em que logrei escandir sozinho um hexâmetro. Comecei a encontrar prazer quase sensual naqueles versos que, aparentemente iguais, na verdade eram de extrema va- riedade musical; decorava-os, saboreava-os, recitava-os para mim mesmo”. Em seu primeiro artigo crítico sobre Guimarães Rosa (“A arte de contar em Sagarana”), o que vemos é Rónai advogar de forma semelhante sobre o amigo: “É sobretudo quase impossível falar dessa obra abstraindo-se o aspecto da expressão verbal, que nela é de excepcional importância.
O autor não apenas co- nhece todas as riquezas do vocabulário, não apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas numa alegria quase sensual, fundindo num conjunto de saber inédito arcaísmos, expressões regionais, termos de gíria e linguagem literária.”
Ao nos contar como se livrou das cha- tices das aulas formais de latim e passou a desfrutar suas traduções de clássicos como Virgílio, ainda na adolescência, na Hungria, Rónai cria uma imagem quase que sensual do ato tradutório (Rónai, em Tradução vivida): “No curso secundário do meu tempo ainda se aprendia latim em seis aulas semanais durante oito anos.
O deslumbramento veio com Virgílio no dia em que logrei escandir sozinho um hexâmetro. Comecei a encontrar prazer quase sensual naqueles versos que, aparentemente iguais, na verdade eram de extrema va- riedade musical; decorava-os, saboreava-os, recitava-os para mim mesmo”. Em seu primeiro artigo crítico sobre Guimarães Rosa (“A arte de contar em Sagarana”), o que vemos é Rónai advogar de forma semelhante sobre o amigo: “É sobretudo quase impossível falar dessa obra abstraindo-se o aspecto da expressão verbal, que nela é de excepcional importância.
O autor não apenas co- nhece todas as riquezas do vocabulário, não apenas coleciona palavras, mas se delicia com elas numa alegria quase sensual, fundindo num conjunto de saber inédito arcaísmos, expressões regionais, termos de gíria e linguagem literária.”
Como vocês mostram no livro a evolução da identificação in- telectual para uma amizade?
Ana Cecilia – Rónai conheceu Guimarães Rosa quando foi ao Ministério das Relações Exteriores pedir ajuda para salvar a família, que havia ficado em Budapeste. Na época, Rosa era chefe de gabinete do ministério e Rónai já publicava nos principais jornais do país, principalmente no Rio de Janeiro, então capital federal, onde ambos moravam. Portanto, Guimarães Rosa sabia dos predicados do crítico, apesar de este desconhecer a veia artística daquele funcionário público gentil.
E foi pego de surpresa quando, num belo dia, Rosa lhe entregou um calhamaço de papel – “Você sabe que eu também sou escritor?” teria lhe dito – junto com um pedido para que o crítico lhe desse uma opinião. Rónai se viu numa saia justa. Era muito grato pela ajuda que recebia do secretário do ministério – apesar de não ter dado tempo de salvar sua esposa, morta pelos nazistas no alvorecer de 1945, Rosa estava ajudando a trazer o restante de sua família, mãe e irmãs, que sobrevivera à barbárie – mas, “e se ele fosse um subliterato? O que faria se achasse o livro ruim?”.
Mas bastou ele abrir as primeiras páginas do manuscrito para ficar totalmente arrebatado pela qua- lidade do material que tinha em mãos. Tanto assim que Rónai foi um dos primeiros a publicar uma crítica sobre Sagarana, esse artigo que reproduzimos nas primeiras páginas do livro Rosa & Rónai. Se Rónai já nutria uma simpatia pessoal pela pessoa daquele funcionário público gentil e prestativo, a partir das primeiras linhas de Sagarana a amizade se solidificou em identificação cultural.
No fim daquele ano de 1946, quando Rosa lança Sagarana, Rónai escreve crítica elogiosa ao livro e a família húngara (familiares que sobreviveram) consegue finalmente chegar ao Brasil, os dois já trocam cartas como amigos. A amizade e a identificação intelectual permaneceriam lado a lado nesta trajetória dos dois.
E foi pego de surpresa quando, num belo dia, Rosa lhe entregou um calhamaço de papel – “Você sabe que eu também sou escritor?” teria lhe dito – junto com um pedido para que o crítico lhe desse uma opinião. Rónai se viu numa saia justa. Era muito grato pela ajuda que recebia do secretário do ministério – apesar de não ter dado tempo de salvar sua esposa, morta pelos nazistas no alvorecer de 1945, Rosa estava ajudando a trazer o restante de sua família, mãe e irmãs, que sobrevivera à barbárie – mas, “e se ele fosse um subliterato? O que faria se achasse o livro ruim?”.
Mas bastou ele abrir as primeiras páginas do manuscrito para ficar totalmente arrebatado pela qua- lidade do material que tinha em mãos. Tanto assim que Rónai foi um dos primeiros a publicar uma crítica sobre Sagarana, esse artigo que reproduzimos nas primeiras páginas do livro Rosa & Rónai. Se Rónai já nutria uma simpatia pessoal pela pessoa daquele funcionário público gentil e prestativo, a partir das primeiras linhas de Sagarana a amizade se solidificou em identificação cultural.
No fim daquele ano de 1946, quando Rosa lança Sagarana, Rónai escreve crítica elogiosa ao livro e a família húngara (familiares que sobreviveram) consegue finalmente chegar ao Brasil, os dois já trocam cartas como amigos. A amizade e a identificação intelectual permaneceriam lado a lado nesta trajetória dos dois.
Poderiam destacar o que foi mais marcante na reação de Rónai a Grande sertão: veredas?
Zsuzsanna Spiry – As primeiras observações de Rónai sobre Grande sertão: veredas estão no texto que ele chama de “Trajetória de uma obra” e que abre nosso livro. De imediato, ele adverte o leitor sobre o profundo impacto da linguagem: “Era preciso advertir o leitor para que não se deixasse vencer pelas dificuldades iniciais da abordagem. Ressaltam as da linguagem, condensada, elíptica, tipicamente regional e profundamente pessoal, frequentemente enigmática”.
Apesar de essa linguagem já não ser novidade, pois era substancialmente a mesma de Corpo de baile, a maciça obra em dois volumes que Rosa lançara poucos meses antes de Grande sertão, “só que, desta vez, concorre também para construir a personalidade de um único herói, contador de sua própria história, e assim torna-se fator primordial da composição. Vários exegetas repararam nessa predominância da linguagem que transcende a importância instrumental para virar matéria-prima.”
Não se pode afirmar que a questão da linguagem rosiana é a impressão mais marcante, pois vários outros elementos são amplamente dissecados por Rónai, mas, sem dúvida, a linguagem é notoriamente discutida e trabalhada ao longo de toda sua crítica. Mais adiante, vemos Rónai afirmar que, em Grande sertão: veredas, “sai-se do livro com a impressão de se ter participado não só da vida aventu- rosa do herói, mas também da alegria criadora do autor”.
Apesar de essa linguagem já não ser novidade, pois era substancialmente a mesma de Corpo de baile, a maciça obra em dois volumes que Rosa lançara poucos meses antes de Grande sertão, “só que, desta vez, concorre também para construir a personalidade de um único herói, contador de sua própria história, e assim torna-se fator primordial da composição. Vários exegetas repararam nessa predominância da linguagem que transcende a importância instrumental para virar matéria-prima.”
Não se pode afirmar que a questão da linguagem rosiana é a impressão mais marcante, pois vários outros elementos são amplamente dissecados por Rónai, mas, sem dúvida, a linguagem é notoriamente discutida e trabalhada ao longo de toda sua crítica. Mais adiante, vemos Rónai afirmar que, em Grande sertão: veredas, “sai-se do livro com a impressão de se ter participado não só da vida aventu- rosa do herói, mas também da alegria criadora do autor”.
Alegria em moldar a linguagem em formas inusitadas, que Rónai identifica como estilo do autor. “Outra barreira que o leitor tem de romper é a do estilo. Guimarães Rosa joga com toda a riqueza da língua popular de Minas, mas é fácil perceber que não se contenta com a simples reprodução. Aproveitando conscientemente os processos de derivação e as tendências sintáticas do povo, uns e outros frequentemente ainda nem registrados, cria uma língua pessoal, toda dele, de espantosa força expressiva, e que há de encantar os seus lexicógrafos. Obedecendo ora à exigência íntima da matização infinita, ora a um sensualismo brincalhão que se compraz em novas sonoridades, submete o idioma a uma atomização radical, da qual só encontraríamos precedentes em (James) Joyce”.
Acho esse trecho exemplar, pois condensa a agenda de Rosa, segundo seu crítico: é linguagem popular de Minas Gerais, sim, mas não uma mera reprodução, já que Rosa aplica à mesma uma imensa gama de recursos estilísticos que lhe imprimem uma “espantosa força expressiva”. E o que encanta um lexicógrafo senão desvendar uma rica etimologia ino- vativa? O leitor de Rosa & Rónai vai encontrar inúmeros exemplos desse “sensualismo brincalhão”.
Acho esse trecho exemplar, pois condensa a agenda de Rosa, segundo seu crítico: é linguagem popular de Minas Gerais, sim, mas não uma mera reprodução, já que Rosa aplica à mesma uma imensa gama de recursos estilísticos que lhe imprimem uma “espantosa força expressiva”. E o que encanta um lexicógrafo senão desvendar uma rica etimologia ino- vativa? O leitor de Rosa & Rónai vai encontrar inúmeros exemplos desse “sensualismo brincalhão”.
Como Rosa demonstrou sua admiração pelo trabalho de Paulo Rónai?
Zsuzsanna Spiry – Acredito que o exemplo mais marcante dessa apreciação mútua entre Rosa e Rónai é o ensaio “Pequena palavra”, que Rosa escreveu para prefaciar a obra Antologia do conto húngaro, de Paulo Rónai. O fato foi tão inusitado na época do lançamento da antologia, 1957, que virou um verdadeiro evento no mundo da crítica, influenciando inclusive a própria existência do livro, que em cerca de um ano precisou de uma 2ª edição. Esse ensaio marcou tanto a vida literária da época que, 15 anos depois, ainda era mencionado pela crítica: Franklin de Oliveira em sua resenha à Seleta Guimarães Rosa, publicada por Rónai em 1973, diz: “Se algo há a lamentar neste analecto, é a não inclusão do prefácio que Rosa escreveu em 1956 (sic) precisamente para a Antologia do conto húngaro, organizada por Rónai, prefácio que além de constituir autêntico ensaio de teoria literária ilumina os processos criativos do autor de Corpo de baile, sendo essencial à compreensão da estilística rosiana”.
Uma outra forma que Rosa encontrou de demonstrar sua admiração pelo crítico foi mencionando sua opinião na correspondência que mantinha com seus tradutores. Tanto nas cartas que trocou com Curt Meyer-Clason, seu tradutor alemão, como com seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, várias vezes Rosa, em vez de dar sua própria opinião para sanar a dúvida do tradutor, prefere recorrer ao amigo: “Mas vamos ver o que Paulo Rónai falou sobre isso”, e cita trechos das análises de Rónai sobre suas publicações, em claro en- dosso à sua posição crítica.
Uma outra forma que Rosa encontrou de demonstrar sua admiração pelo crítico foi mencionando sua opinião na correspondência que mantinha com seus tradutores. Tanto nas cartas que trocou com Curt Meyer-Clason, seu tradutor alemão, como com seu tradutor italiano, Edoardo Bizzarri, várias vezes Rosa, em vez de dar sua própria opinião para sanar a dúvida do tradutor, prefere recorrer ao amigo: “Mas vamos ver o que Paulo Rónai falou sobre isso”, e cita trechos das análises de Rónai sobre suas publicações, em claro en- dosso à sua posição crítica.
Ana Cecilia – O fato de Rónai ter sido designado tutor da obra de Rosa após a morte do escritor, ficando responsável pelas publicações de seus livros póstumos, de- monstra o quanto Rónai era tido como o grande co- nhecedor da obra rosiana.
Podemos dizer que Rosa e Rónai foram homens apaixonados pelas palavras e pelas línguas?
Ana Cecilia – Acreditamos que esses exemplos acima demonstram esse amor de ambos pelas palavras e línguas. Alguns outros exemplos, no caso de Rónai, são suas escolhas de estudo e formação (filólogo, doutor em filologia e línguas neolatinas, professor de francês, ita- liano e latim, tradutor). Ainda o incrível processo de aprendizagem, sozinho, do português, lendo poesia brasileira, munido de um dicionário alemão-português (uma história que conto na biografia O homem que aprendeu o Brasil, lançada este ano pela Todavia).
Enfim, toda a sua vida foi voltada para esse universo: seus estudos, suas traduções, seus livros. No caso de Rosa, ele era também um poliglota, estudou diversos idiomas e esse conhecimento está patente na construção de sua linguagem, cheia de referências a outras línguas, “segredos” decifrados com encanto por Paulo Rónai.
Enfim, toda a sua vida foi voltada para esse universo: seus estudos, suas traduções, seus livros. No caso de Rosa, ele era também um poliglota, estudou diversos idiomas e esse conhecimento está patente na construção de sua linguagem, cheia de referências a outras línguas, “segredos” decifrados com encanto por Paulo Rónai.