Um lugar paradisíaco que já tinha hospedado Brigitte Bardot nos anos 1960 e que, de repente, na passagem do ano- novo de 1977, torna-se cenário de um crime brutal de feminicídio: Búzios, mais especificamente a Praia dos ossos. O podcast, idealizado e apresentado por Branca Vianna e com pesquisa e produção de Flora Thomson-DeVeaux, percorre a vida de Ângela Diniz, a mulher assassinada, sua "construção" por mãos maternas diligentes, quase obcecadas em conseguir um bom casamento na Belo Horizonte dos anos 1960.
A arte da sedução aprendida cedo: num baile de carnaval em 1958, ela, com apenas 13 anos, fantasiada de grega, "fechou o salão". Impossível, hoje, não se lembrar de Helena de Troia, por cuja posse foi declarada uma guerra.
A arte da sedução aprendida cedo: num baile de carnaval em 1958, ela, com apenas 13 anos, fantasiada de grega, "fechou o salão". Impossível, hoje, não se lembrar de Helena de Troia, por cuja posse foi declarada uma guerra.
A série Praia dos ossos, com oito episódios, transmitida pela Rádio Novelo em diversas plataformas de streaming, foca em aspectos daquele que foi um drama de grande repercussão nacional e representou o uso e o início da derrota da tese da "legítima defesa da honra".
Um deles se detém no julgamento, no argumento da defesa, uma peça de machismo por parte de um dos maiores advogados criminalistas brasileiros, Evandro Lins e Silva, seu canto de cisne na cena jurídica. O advogado do assassino, Doca Street, companheiro e réu confesso, constrói para seu cliente a imagem de um belo e bom moço que foi seduzido pela mulher fatal, a "prostituta de luxo". Ao fim, ela teria sido a responsável pela própria morte, a consequência para muitas mulheres que não se adequam ao papel tradicional reservado às mulheres.
Leia Mais
Veredas de admiração e de amizade na trajetória literária de Guimarães RosaMontanhas de histórias, vozes e ideias em livro sobre os 300 anos de produção de literatura em MinasAs feridas abertas da América Latina: Mario Vargas Llosa retoma personagem de A festa do bodeJacqueline Pitanguy lança o livro 'Feminismo no Brasil', esta noite, em BHA sinfonia aos esquecidos em uma reunião de contos sobre personagens que amam, matam e morremA vida e suas armadilhas retratados no primeiro livro de contos de Luciano MendesDemocracia corrompida: jornalista mostra como redes sociais são usadas para disseminar fake newsO caso foi uma forte motivação para os movimentos feministas, na década de 1970/1980, combaterem a violência extrema contra as mulheres e a utilização da figura jurídica da "legítima defesa da honra". A narrativa é conduzida com muita criatividade e delicadeza. Somos transportados para aquele "ar do tempo" da sociedade mineira provinciana, onde tudo era permitido, "menos o escândalo", pelo texto coloquial e pela narração subjetiva de Branca Vianna.
Narração sensível em relação àquela jovem mulher que, na morte, teve o rosto, tão belo, desfigurado por tiros. A trilha sonora pontua o clima ora de melancolia, ora de suspense. O roteiro traça uma arquitetura que não se limita à ordem cronológica dos acontecimentos. Assim Anna Marina, colunista do Estado de Minas, discorre sobre Ângela Diniz tal como a retratou, post mortem, na bela crônica A menina da missa das dez, em que conta como ela era uma atração para rapazes que vinham vê-la brilhar na Igreja de Lourdes, em seus glamourosos vestidos, nunca repetidos, como ditava o dress code das "mais bem vestidas" da capital.
Também Roberto Drummond, escritor e, na época, cronista, narra um encontro, em 1969, com a então jovem senhora de 24 anos e mãe de três filhos, num dia cinzento com nuvens: "Chovia dentro daqueles olhos", escreveu ele. Carlos Drummond de Andrade comparece com o texto em que lamenta a morte cotidiana dela pela imprensa depois de seu assassinato: "Estão matando essa moça todos dias", escreveu ele.
Narração sensível em relação àquela jovem mulher que, na morte, teve o rosto, tão belo, desfigurado por tiros. A trilha sonora pontua o clima ora de melancolia, ora de suspense. O roteiro traça uma arquitetura que não se limita à ordem cronológica dos acontecimentos. Assim Anna Marina, colunista do Estado de Minas, discorre sobre Ângela Diniz tal como a retratou, post mortem, na bela crônica A menina da missa das dez, em que conta como ela era uma atração para rapazes que vinham vê-la brilhar na Igreja de Lourdes, em seus glamourosos vestidos, nunca repetidos, como ditava o dress code das "mais bem vestidas" da capital.
Também Roberto Drummond, escritor e, na época, cronista, narra um encontro, em 1969, com a então jovem senhora de 24 anos e mãe de três filhos, num dia cinzento com nuvens: "Chovia dentro daqueles olhos", escreveu ele. Carlos Drummond de Andrade comparece com o texto em que lamenta a morte cotidiana dela pela imprensa depois de seu assassinato: "Estão matando essa moça todos dias", escreveu ele.
Mas, se o roteiro é criativo, a narração sensível, a trilha sonora delicada e eficiente para compor o clima histórico, Praia dos Ossos é, sobretudo, uma obra-prima do jornalismo, uma gigantesca investigação. Um mosaico formado a partir de artigos de jornal da época e áudios do julgamento, mais entrevistas recentes com pessoas ligadas ao caso, amigas de infância e juventude, jornalistas, advogados.
Pelas vozes dos entrevistados, acompanhamos a trajetória de uma mulher que decidiu viver não a vida que queriam para ela, mas a própria. E que pagou muito caro por isso. Pela primeira vez no Brasil, temos uma narrativa humanizada de Ângela Diniz, muito mais que a "Pantera de Minas": simplesmente uma mulher.
* Mirian Christus é jornalista e coordenadora do Movimento Feminista Mineiro Quem Ama Não Mata (QANM)
SERVIÇO
Praia dos Ossos
Podcast em oito episódios sobre a vida e a morte de Ângela Diniz
Realização da Rádio Novelo
Episódios inéditos aos sábados no Spotify, Deezer e outras plataformas de streaming de áudio
Apresentação e idealização de Branca Vianna
Pesquisa e coordenação de produção de Flora Thomson-DeVeaux
Roteiro de Aurélio de Aragão e Rafael Spínola
Montagem de Laís Lifschitz
Produção de Claudia Nogarott
Análise
Um marco no jornalismo
Rafael Alves*
Praia dos Ossos ainda não terminou, mas já pode ser considerado um marco no jornalismo brasileiro por apresentar – no formato de podcast – uma extensa e cuidadosa pesquisa histórica, narrada a partir de roteiro que prende a atenção do ouvinte a cada fala, a cada entrevista, a cada recurso cenográfico. Um quebra-cabeça no qual o segredo está em remontar constantemente as peças para descobrir as muitas imagens de uma mesma personagem, de um mesmo crime.
A minissérie criada pela Rádio Novelo, produtora carioca de podcasts, começou a ser produzida em janeiro de 2019 e reuniu para os oito episódios mais de 50 entrevistas e 80 horas de gravações, além de uma infinidade de documentos e fotografias, muitas delas obtidas no acervo do jornal Estado de Minas. Esse grande volume de informações é essencial na qualidade da produção, mas também um desafio de planejamento e execução do roteiro.
Além de recursos narrativos que consagram podcasts de jornalismo mundo afora, como prólogos contundentes, trilhas sonoras exclusivas e ritmos marcantes de locução, Praia dos Ossos apresenta outras soluções criativas para reconstruir a trama. No episódio 5 (A Pantera), a transposição de uma alegoria de época das colunas sociais para contornar um dilema jornalístico, a desistência de fontes já entrevistadas de participar da minissérie, é um ótimo exemplo.
A criação de podcasts jornalísticos com roteiros que se aproximam do cinema é uma tendência. Um premiado caminho aberto por programas que se tornaram referência nesse formato, como o norte-americano Serial, de jornalismo investigativo, no qual cada temporada reúne os diversos aspectos e personagens de um mesmo crime. Outro exemplo cativante é o único Ear Hustle, podcast imersivo criado e contado por presos e egressos do sistema penitenciário de São Francisco.
Mesmo dentro dos podcasts diários de notícias, tem se destacado a lapidação de roteiros criados para subverter a tradição jornalística de responder a todas as dúvidas do leitor e ouvinte nas primeiras linhas de texto. Como mostrou a minissérie 1619, do Daily, do New York Times, sobre as marcas que a escravidão deixou nos Estados Unidos, ou mesmo episódios isolados, como o desconcertante especial para crianças The fear facer, do mesmo programa. É o que também consegue Praia dos Ossos, um triunfo da arte de narrar uma história real.
*Rafael Alves é jornalista e subeditor do Núcleo de Criação Multimídia do Estado de Minas