“O WhatsApp foi criado para abrigar conversas orgânicas entre famílias e amigos (…) No Brasil, muita gente usa o WhatsApp como fonte primária de informação e não tem meios para verificar o conteúdo.”
Essas duas declarações, que se complementam, entre o bate-papo e a transmissão de informação de interesse jornalístico, são do gerente de Políticas Públicas e Eleições Globais do WhatsApp, Ben Supple, e foram dadas no painel “Como integrar a integridade em época de eleições”, no Festival Gabo – evento anual de jornalismo realizado pela fundação do escritor Gabriel García Márquez – em Medellín, na Colômbia.
Essas duas declarações, que se complementam, entre o bate-papo e a transmissão de informação de interesse jornalístico, são do gerente de Políticas Públicas e Eleições Globais do WhatsApp, Ben Supple, e foram dadas no painel “Como integrar a integridade em época de eleições”, no Festival Gabo – evento anual de jornalismo realizado pela fundação do escritor Gabriel García Márquez – em Medellín, na Colômbia.
Como explicar que “inocentes” grupos de conversas tenham se transformado em poderosa ferramenta de disseminação de informações de interesse público e, principalmente, para infelicidade geral das nações, de notícias falsas (fake news) com consequências desastrosas? Afinal, apenas o Brasil tem cerca de 136 milhões de usuários do WhatsApp.
As redes sociais eliminaram o intermediário (mídia tradicional) para chegar ao (e)leitor. Como chegamos a esse ponto e o que fazer para nos defender? Essas e muitas outras questões são abordadas no livro A máquina do ódio – Notas de uma repórter sobre fake news e informação digital, da jornalista Patrícia Campos Mello e em sua entrevista ao Estado de Minas.
A origem do livro é o segundo turno das eleições de 2018. Às vésperas da votação, Patrícia Campos Mello publicou a primeira de uma série de reportagens sobre o financiamento de disparos de mensagens em massa pelo WhatsApp, a maioria de notícias falsas, principalmente favoráveis ao então candidato Jair Bolsonaro. A jornalista começou a sofrer, desde então, campanha violenta de difamação e intimidação.
Passados dois anos, a repórter decidiu contar em livro essa terrível história de violência pela qual vem passando. Mostra como as redes sociais estão sendo manipuladas por líderes populistas por meio de verdadeiros exércitos que incluem trolls patrióticos repercutidos por robôs, basicamente no WhatsApp, Twitter, Facebook e Instagram. Isso no Brasil e mundo afora, dos EUA até a Índia.
“Em 2015, o Supremo Tribunal Federal proibiu doações de empresas a campanhas eleitorais, numa tentativa de coibir a corrupção – muitos empresários doavam milhões e quando seus candidatos ganhavam eles os pressionavam para adotar medidas que os favorecessem. A partir de então, “comprar de fornecedores serviços digitais que beneficiam candidatos passou a ser um expediente de doar por baixo do pano”, lembra a jornalista.
“Em vez do clássico caixa dois, em que o dinheiro doado não é declarado ao TSE, inaugurava-se a terceirização do caixa dois. O simples envio de mensagens políticas em massa pelo WhatsApp só passou a ser ilegal a partir de dezembro de 2019, mais de um ano após a publicação das reportagens”, explica Patrícia.
Entre essas agências de serviços digitais estão Quickmobile, Yacows e Croc Services. “As mensagens não continham necessariamente notícias falsas. Os candidatos, ou quem contratava os disparos em massa, determinavam o conteúdo – propaganda política convencional, ataques aos opositores, fake news”, conta.
Entre essas agências de serviços digitais estão Quickmobile, Yacows e Croc Services. “As mensagens não continham necessariamente notícias falsas. Os candidatos, ou quem contratava os disparos em massa, determinavam o conteúdo – propaganda política convencional, ataques aos opositores, fake news”, conta.
MILHÕES DE ALVOS
Essas agências têm cadastros com mi- lhões de nomes de alvos, um esquema ilegal, porque todas essas pessoas não têm ideia de que seus dados estão sendo mani- pulados e divulgados. “A Yacow oferecia em um site a venda de cadastros com milhões de números de celular atrelados a CPFs, títulos de eleitor, perfil social e econômico”, conta Patrícia. “A página da plataforma Bulk Services, pertencente à Yacows, anunciava como chamariz para a clientela '240 mi- lhões de linhas de celular como perfil atrelado'”, explica.
“Mesmo com todos esses indícios de irregularidades, a polícia não investigou a fundo a Yacows nem qualquer uma das outras empresas citadas. A investigação do TSE aberta em 2018 continuou andando a ‘passos de tartaruga’, não houve quebra de sigilo dos donos das agências, nem busca e apreensão”, afirma a repórter.
Mesmo ameaçada, Patrícia continuou investigando, num trabalho que incluiu inclusive cobertura de eleições na Índia. Ela descobriu, por exemplo, que a agência de marketing espanhola Enviawhatsapps forneceu inúmeros pacotes de disparos a várias empresas brasileiras, que enviavam mensagens pró-Bolsonaro para celulares. “O empresário dizia que 'empresas, lavado- ras de carros, açougues e fábricas brasileiras haviam comprado seu software para me- tralhar mensagens a favor do ex-capitão'”.
“O esquema mostrava como era fácil influenciar uma eleição no Brasil. Bastava uma conexão de internet e um cartão de crédito ou conta no PayPal, e eram enviadas milhares de mensagens de WhatsApp em benefício – ou detrimento – de um candidato. Qualquer agência em qualquer lugar do mundo poderia ser acionada”, afirma a repórter.
O próprio Ben Suppler, porta-voz da WhatsApp, conta Patrícia, admitiu no evento na Colômbia, para surpresa de todos, que campanhas brasileiras em 2018 haviam se servido do uso pesado de disparos de mensagens, com sistemas automatizados contratados de empresas. “Na eleição brasileira do ano passado, houve a atuação de empresas fornecedoras de envios maciços de mensagens que violaram nossos termos de uso para atingir um grande número de pessoas”, afirmou Supple, segundo Patrícia.
O próprio Ben Suppler, porta-voz da WhatsApp, conta Patrícia, admitiu no evento na Colômbia, para surpresa de todos, que campanhas brasileiras em 2018 haviam se servido do uso pesado de disparos de mensagens, com sistemas automatizados contratados de empresas. “Na eleição brasileira do ano passado, houve a atuação de empresas fornecedoras de envios maciços de mensagens que violaram nossos termos de uso para atingir um grande número de pessoas”, afirmou Supple, segundo Patrícia.
E não apenas no Brasil. Nos EUA, Donald Trump se elegeu pelo mesmo caminho, com o estrategista de sua campanha, Steve Bannon, que logo depois caiu em desgraça e hoje se dedica ao The Movement, grupo que promove nacionalismo de direita mundo afora.
“Comunismo” virou palavra-chave no dicionário dos tecnopopulistas, “abrage qualquer coisa à esquerda do fascismo, englobando desde a social-democracia até o neoliberalismo econômico”, explica Patrícia.
“Comunismo” virou palavra-chave no dicionário dos tecnopopulistas, “abrage qualquer coisa à esquerda do fascismo, englobando desde a social-democracia até o neoliberalismo econômico”, explica Patrícia.
MACHISMO VIRTUAL
Na esteira dos disparos em massa fa- vorecendo os chamados “tecnopopulistas” autoritários, embalado pelas fake news, estão linchamento virtual, inclusive, machismo. “A preferência por atacar mulheres está visceralmente associada a preconceitos ancestrais. Parte dos apoiadores de líderes populistas gosta de poder se libertar do politicamente correto e se deleita com essa 'licença' para dar vazão a um machismo incrustado, que muitas vezes acomete também as mulheres – é uma espécie de catarse”, analisa Patrícia.
A autora informa que um estudo da International Women's Media Foundation e da TrollBusters indica que “63% das jornalistas já foram ameaçadas ou assediadas on-line, 58% foram ameaçadas pessoalmente e incríveis 26% foram atacadas fisicamente”. Eficiente ou não em mudar o voto das pessoas, a manipulação jamais deve ser tolerada – primeiro porque é um procedimento antiético e muitas vezes também é ilegal quando usa dados das pessoas sem a autorização delas. E porque a estratégia semeia tensões na sociedade. “Não se deve subestimar a capacidade desses estratagemas de acirrar a polarização, suprimir votos e inflamar a militância mais extremista”, diz Patrícia.
“Mas todas essas artimanhas tecnológicas de nada serviriam se os populistas digitais não tivessem captado, muito antes do establishment, que uma parcela bastante significativa da população estava se sentindo excluída e ressentida.” “E sempre, sempre, o que une esses grupos é o ressentimento, a sensação de que são vítimas de uma injustiça, de que um outro grupo é protegido pelas elites e recebe mais do que merece. Décadas de políticas identitárias de esquerda colaboram para esse sentimento. Com os grupos de WhatsApp e o Facebook, pela primeira vez, eleitores antes tachados de racistas ignorantes e homofóbicos recebiam notícias com que concordavam e podiam exprimir suas opiniões sem temer sermões politicamente corretos.”
A globalização tecnológica tão romantizada e idealizada no fim do século 20, em vez de unir diferentes povos, segrega e dissemina todos os tipos de preconceito, antes restritos a guetos. Como enfrentar tamanho “monstro”? Além da fiscalização das ilegalidades, o jornalismo é um dos caminhos. “Em um tempo de tantas incertezas, houve um recuo da onda de aversão à expertise. É necessário capitalizar a redescoberta do jornalismo e se associar aos reconvertidos. Transparência é a palavra-chave”, alerta Patrícia Campos Mello.
O perigo da verdade subjetiva
30 de outubro de 1938: a rádio CBS interrompe sua programação musical para anunciar a invasão de grandes naves marcianas no estado de Nova Jersey, na costa leste do EUA. Em meio à paranoia gerada pela ascensão de Hitler e do nazismo na Europa, milhões de americanos acompanham a transmissão.
Muitos se desesperam e chegam a abandonar suas casas. Afinal, parece mesmo uma transmissão jornalística, ao vivo, com entrevistas com testemunhas, gritaria e efeitos sonoros. Logo depois, entretanto, vem a verdade sobre a suposta verdade: trata-se de uma brincadeira do ainda desconhecido ator e diretor de cinema Orson Welles (1915-1985), baseada na obra A guerra dos mundos, do escritor britânico H. G. Wells (1866-1946).
Muitos se desesperam e chegam a abandonar suas casas. Afinal, parece mesmo uma transmissão jornalística, ao vivo, com entrevistas com testemunhas, gritaria e efeitos sonoros. Logo depois, entretanto, vem a verdade sobre a suposta verdade: trata-se de uma brincadeira do ainda desconhecido ator e diretor de cinema Orson Welles (1915-1985), baseada na obra A guerra dos mundos, do escritor britânico H. G. Wells (1866-1946).
Durante uma hora, a transmissão, que depois virou chacota mundial e é hoje uma das grandes histórias do rádio, parecia ser mesmo real. A CBS calculou que cerca de 6 milhões de pessoas ouviram a transmissão. Em 1955, em entrevista à BBC, Orson Welles admitiu: “Quando fizemos o programa dos marcianos, estávamos fartos de tudo que vinha dessa caixinha mágica, o rádio, ser simplesmente engolido. Queríamos fazer as pessoas entenderem que não podiam engolir tudo o que saísse do alto-falante.”
Em outubro de 1940, no artigo "A invasão marciana", publicado no The New Statesman and Nation, o escritor inglês George Orwell (1903-1950) escreveu: “O mais espantoso foi que pouquíssimos ouvintes americanos fizeram algum esforço de verificação. Os compiladores do levantamento examinaram 250 pessoas, que confundiram a transmissão com noticiário. Aparentemente, mais de um terço deles não buscaram nenhuma outra comprovação; ao ouvir que se aproximava o fim do mundo, eles acataram a notícia sem fazer objeção. Alguns acreditaram que se tratava, na verdade, de uma invasão alemã ou japonesa, mas a maioria acreditou na chegada dos marcianos, incluindo aqueles que só souberam da invasão por meio de vizinhos”. Passados 62 anos da época em que o rádio era a grande novidade da comunicação mundial, o que mudou? Hoje, as pessoas ainda estão propensas a acreditar em histórias assim?
Essa incrível história e muitas outras envolvendo a manipulação da verdade e o perigo da dissseminação de mentiras por governos autoritários estão incluídas no livro Sobre a verdade, que chega ao mercado brasileiro no formato pocket pela Compa- nhia das Letras. É uma coletânea de trechos de romances, reportagens, resenhas, ensaios e cartas que abrange toda a produção de George Orwell, do seu primeiro livro, Dias na Birmânia, de 1934, até seu último romance, 1984, lançado em 1949, um ano antes de sua morte, passando por A revolução dos bichos, a fábula em que a liberdade e a democracia também são trucidadas.
Orwell nasceu Eric Arthur Blair, na Índia britânica, em 1903, filho de um oficial. Chegou a servir no Exército imperial, mas logo se rebelou contra as atrocidades dos ingleses e ganhou o mundo. Viveu em Londres, Paris e outras cidades, passou fome, trabalhou como operário, repórter, foi simpatizante do comunismo, esteve na Guerra Civil espanhola, depois se desiludiu com o totalitarismo stalinista e acabou morrendo de tuberculose, em 1950, depois de adotar o pseudônimo George Orwell e escrever obras emblemáticas, como 1984 e A revolução dos bichos, ambas tendo como a tema a verdade subjetiva de regimes totalitários. E é exatamente o que ele chama de verdade subjetiva (pessoal), em contraponto à verdade objetiva (coletiva), que torna seus textos ainda hoje atualíssimos.
Após a leitura da obra, a conclusão imediata e impressionante, mesmo depois de muitas décadas, é a seguinte: exemplo para os dias atuais. O mundo de então vivia sob a sombra do nazifascismo na Alemanha, na Itália e na Espanha. E no Leste, sob a sombra da autocracia de Stálin, na URSS.
Tudo desembocou na Guerra Civil espanhola e na Segunda Guerra Mundial. Orwell não viveu o suficiente para ver os desdobramentos do obscurantismo, que ainda reverbera mundo afora, não pela invasão física de exércitos, mas pela supremacia tecnológica para distorção da verdade, principalmente por go- vernos que, mesmo eleitos democraticamente, manifestam tendências claramente autoritárias, como os EUA de Trump e o Brasil de Bolsonaro. A preocupação sobre como a mentira se torna verdade é o cerne das inúmeras reflexões de Orwell.
Tudo desembocou na Guerra Civil espanhola e na Segunda Guerra Mundial. Orwell não viveu o suficiente para ver os desdobramentos do obscurantismo, que ainda reverbera mundo afora, não pela invasão física de exércitos, mas pela supremacia tecnológica para distorção da verdade, principalmente por go- vernos que, mesmo eleitos democraticamente, manifestam tendências claramente autoritárias, como os EUA de Trump e o Brasil de Bolsonaro. A preocupação sobre como a mentira se torna verdade é o cerne das inúmeras reflexões de Orwell.
No artigo “Looking back on the spanish war”, de 1943, por exemplo, ele afirma: “A teoria nazista nega especificamente a existência de algo denominado 'verdade'. Não existe, por exemplo, algo que se chama 'ciência'. Há apenas a 'ciência alemã', a 'ciência judaica', etc. O objetivo implícito dessa linha de pensamento é um mundo de pesadelo no qual o líder ou algum grupo dominante controla não só o futuro como também o passado. Se o líder afirma que tal evento 'nunca aconteceu', então, nunca aconteceu. Se ele diz que dois mais dois são cinco, então dois mais dois são cinco. Essa perspectiva me apavora bem mais do que qualquer bomba”.
‘‘Burrice protetora’’
Outro trecho forte de Sobre a verdade é este de 1984: “Se todos aceitassem a mentira imposta pelo Partido, se todos os registros contassem a mesma história, a mentira se tornava história e virava verdade. 'Quem controla o passado controla o futuro; quem controla o presente controla o passado', rezava o lema do Partido. E com tudo isso, o passado, mesmo com sua natureza alterável, jamais fora alterado. Tudo o que fosse verdade agora fora verdade desde sempre, a vida toda. Muito simples. O indivíduo só precisava obter uma série interminável de vitórias sobre a própria memória. O passado não fora simplesmente alterado, fora destruído. Pois, como fazer para verificar o mais óbvio dos fatos, quando o único registro de sua veracidade estava em sua memória?
Outro trecho de 1984 destacado em So- bre a verdade, diz: “A primeira etapa dessa disciplina, muito simples, que pode ser ensinada inclusive a crianças pequenas, chama-se criminterrupção, significa a capaciade de estacar no limiar de todo o pensamento perigoso. O conceito inclui a capacidade de não entender analogias, de deixar de receber erros lógicos, de compreender mal os argumentos mais simples. Em suma, significa burrice protetora. Mas burrice não basta. Ao contrário, a ortodoxia em sentido pleno exige controle tão absoluto sobre os próprios processos mentais quanto o do contorcionista sobre o próprio corpo”.
Mais uma reflexão importante de Orwell é a concretização de ambientes propícios para o surgimento de ditadores ou pseudossalvadores da pátria. “A conexão evidente entre infelicidade pessoal e prontidão para aceitar o inacreditável é aqui o achado mais interessante. Pessoas que estavam desempregadas ou à beira da falência por uma década talvez ficassem aliviadas ao saber do fim iminente da civilização. É um estado de espírito que levou nações inteiras a se lançarem nos braços de um redentor.” Foi assim com Hitler e Mussolini e pode ser ainda hoje com os políticos populistas.
"Surpreendente é quanto Orwell continua a ser extraordinariamente relevante mesmo no século 21. A limpidez e a precisão da prosa preservaram o frescor do livro, e os seus temas – a importância da verdade objetiva e da distinção entre patriotismo e nacionalismo – continuam mui- tíssimo pertinentes na nossa época", diz o político britânico Alan Johnson, que assina o prefácio de Sobre a verdade. Para ele, a trajetória literária, política e filosófica de Orwell culminou numa obra magistral, que acabou incorporada às nossas vidas. “A luta em defesa da verdade objetiva ainda é fundamental e, embora Eric Blair tenha morrido em 1950, George Orwell continua bem vivo”, conclui.
Afinal, alerta Orwell, “o que distingue a nossa época é o abandono da ideia de que é possível escrever a história com veracidade”. Mas ainda há esperança e é possível afirmar nas palavras de Orwell: “Por mais que você negue a verdade, ela vai continuar a existir às suas costas”.
A MÁQUINA DO ÓDIO
Patrícia Campos Mello
Companhia das Letras
294 páginas
R$ 39,90
R$ 27,90 (e-book)
SOBRE A VERDADE
George Orwell
Companhia das Letras
205 páginas
R$ 39,90
R$ 29,90 (e-book)
Entrevista
Patrícia Campos Melo
Saímos da ditadura das armas e caímos na ditadura da tecnologia, como redes sociais, que facilita a ascensão de “tecnopopulistas”, com ou sem fake news. Como reagir a essa força cada mais sofisticada, que parece incontrolável?
Acho que não existe uma bala de prata que vá resolver o problema da desinformação e como as fake news estão corroendo a demo- cracia. Precisa ser uma combinação de re- gulamentação, ação da sociedade civil e autorregulação. Hoje em dia, as plataformas são praticamente isentas de qualquer res- ponsabilidade pela desinformação e linguagem de ódio que circula. É preciso ter algum tipo de regulação, senão elas não têm incentivos suficientes para coibir isso. A sociedade civil vem aumentando a pressão, com iniciativas como a stop hate for profit e sleeping giants. E as próprias plataformas se viram muito pressionadas pela opinião pública, deram-se conta de que tinham um abacaxi em termos de imagem, e começa-ram a agir, rotulando posts de políticos que disseminam linguagem de ódio, espalham infos científicas não comprovadas ou glorificam a violência. O principal, no entanto, é punir os esquemas profissionais de disseminação de ódio. Tem gente pagando, e essa gente precisa ser responsabilizada.
Mesmo com as restrições impostas pela Justiça Eleitoral após o pleito de 2018, o TSE terá condições – operacional e tecnológica – de impedir que tudo se repita este ano e, principalmente, em 2022?
O TSE está muito mais proativo e agindo, ao contrário de 2018, e as plataformas também estão agindo. Antes, elas simplesmente ne- gavam que existisse o problema. Então, o TSE proibiu disparos em massa de WhatsApp e a plataforma está processando quem faz isso, mas encontram brechas ou outras maneiras. O uso de dados dos elei- tores em campanhas eleitorais é uma coisa que veio pra ficar.
Existe realmente vontade política (que você chama no livro de “escasso apetite”) das administradoras das redes sociais e das autoridades policiais, políticas e judiciais para controlar a proliferação de fake news?
O ritmo das investigações sempre depende do contexto político, como sabemos. Elas tiveram um impulso no início do ano, até junho. Mas, agora, parece que há uma "acomodação". As plataformas sabem que a epidemia de desinformação gerou um enorme problema de relações públicas que ameaçava afetar a receita. Então, entenderam que precisam agir. Mas talvez seja tarde.
A disseminação de fake news atende a uma parceria entre má-fé e ignorância? Seria a mistura da divulgação intencional de notícias falsas com um público muito vulnerável, como a maioria dos brasileiros carentes de educação e capacidade crítica?
Sim, acho que nem sempre se trata de questão de educação midiática. A polarização está tão aguda que as pessoas só que- rem notícias que endossem suas visões, o viés de confirmação. Às vezes, mesmo confrontadas com a informação correta, não ligam. Acho que, em relação a essas pessoas, terraplanistas, negacionistas do aquecimento global, não há o que fazer.
O jornalismo vai sobreviver diante do uso cada vez maior das redes sociais como “fontes” de informação?
Houve revalorização do jornalismo, da ciência e da academia durante a pandemia, porque ficou claro que a democratização da informação gerada pela internet foi ma- ravilhosa, mas há quem se aproveite disso para tentar manipular o debate público. E, então, o jornalismo profissional, que ao menos se propõe a checar informações e ouvir o contraditório, é essencial.