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Estado de Minas ESTADOS DESUNIDOS DA AMÉRICA

Itamar Vieira Junior escreve sobre o livro com as memórias de James Baldwin

Autor do romance brasileiro Torto arado analisa Notas de um filho nativo, com as lembranças do escritor norte-americano da segregação racial que enfrentou nos EUA nos anos 1950


23/10/2020 04:00 - atualizado 23/10/2020 09:01

Em 1955, após a publicação de seu aclamado romance Go to tell it on the mountain (1953), James Baldwin, com apenas 31 anos, reuniu pequenos ensaios dispersos sobre a experiência de ser negro nos Estados Unidos e no exílio em Notas de um filho nativo, que acaba de ganhar nova edição pela Companhia das Letras.

Nos 10 textos escritos nos primeiros anos da década de 1950, quando a segregação racial era uma política vigente em muitos estados americanos, Baldwin tece um refinado pensamento sobre as relações raciais no Ocidente, sem jamais cair na tentação de simplificações.

Assim, o autor aborda nessa coletânea desde a representação do negro americano nas artes, como podemos constatar no ensaio sobre o filme Carmen Jones (1954), ou a leitura crítica de romances como A cabana do Pai Tomás, de Harriet Beecher Stowe, e Filho nativo, de Richard Wright, até a experiência pessoal do homem que cresceu no bairro do Harlem, em Nova York, marcado por tensões raciais, e que se submeteu ainda jovem a um autoexílio na França. Esse percurso singular, aliado à capacidade de Baldwin de iluminar a complexidade que o tema requer, faz do livro uma pequena obra-prima.

Os ensaios, publicados originalmente na Harper’s Magazine, The New Leader, Partisan Review e The Reporter, foram agrupados em três partes a partir de suas temáticas: a representação social do negro no campo das artes; a experiência autobiográfica do próprio Baldwin como homem negro americano; e o exílio na Europa quando se confronta com novas e velhas questões de sua condição existencial no Ocidente branco.

No primeiro ensaio, intitulado O romance de protesto de todos, Baldwin faz uma análise de aclamadas obras da literatura americana, como A cabana do pai Tomás e Filho nativo. Sobre o primeiro, o autor faz críticas ácidas, descrevendo-o como “[...] péssimo, e seu sentimentalismo virtuoso e presunçoso tem muito em comum com Mulherzinhas”, o romance de Louisa May Alcott. Ele argumenta que Stowe construiu uma obra panfletária com o “único objetivo de provar que a escravidão era um erro”, apresentando personagens passivos e subservientes, nocivos à história e complexidade do homem negro.

Pai Tomás, o “único negro do livro”, “foi despido de sua humanidade e despojado de seu sexo”. Os fundamentos de sua crítica estavam no tratamento raso, eivado de sentimentos cristãos, como as ideias de pecado e redenção.

Em Muitos milhares de mortos, Baldwin assume uma retórica divergente dos demais textos, aparentemente escrevendo de um lugar que não é o seu, utilizando um pronome inclusivo, o “nós”, para falar de um grupo outro, “eles”, os negros. Por um momento, o leitor tenta compreender qual o objetivo de seu discurso, ao não se incluir no segundo grupo. Nesse estranho exercício de alteridade, Baldwin sai de seu lugar de homem negro para lembrar que as questões suscitadas em seu ensaio não dizem respeito apenas ao seu grupo, mas a toda a sociedade, independentemente de suas origens.

É nesse ensaio que ele se aprofunda sobre o romance Filho nativo, de Wright, a partir do seu protagonista, Bigger Thomas, abordando a revolta e a violência do personagem não como a experiência do negro americano, e sim como um cômodo reducionismo aos estereótipos atribuídos a este pelo Estado e pelos homens brancos.

James Baldwin (foto: divulgação)
James Baldwin (foto: divulgação)

A vida no Harlem

Na segunda parte sobressaem os ensaios de teor autobiográfico, onde Baldwin narra sua vida no Harlem, centrando-os principalmente nas recordações dos conflitos com o pai/padrasto: um pastor pentecostal que educou os filhos de maneira rígida e deixou como legado um ressentimento que não dava espaço a qualquer conciliação. Em O gueto do Harlem, ele escrutina as memórias de um lugar que jamais deixaria sua vida. Em meio à violência habitual, Baldwin identifica a emoção das investidas contra os homens brancos, relatando o possível desejo do homem negro de ver crueldades antigas vingadas.

É ali que constrói a certeza de que o negro americano vive o exílio de seus ancestrais, sem conseguir se sentir integrado à sociedade como cidadão de seu país, como quando afirma: “O que causa espanto não é que tantos afundem na desgraça, mas que tantos consigam sobreviver”. Em Notas de um filho nativo, ensaio que dá título à coletânea e que faz referências a Henry James e Richard Wright, Baldwin apresenta a relação conflituosa com o homem que acreditou até a adolescência ser seu pai, e de quem herdou o sobrenome.

Partindo da morte de David Baldwin, em 1943, ele escreve esse que talvez seja seu mais emocionante texto, apresentando a natureza de um homem atormentado emaranhada à natureza dos EUA que convulsionavam com conflitos raciais sangrentos. Quis o destino que seu funeral ocorresse em meio a protestos no Harlem, ambiente propício para que Baldwin pudesse refletir sobre a tragédia americana: “Ele viveu e morreu ruminando um ressentimento espiritual intolerável, e assustava-me constatar, enquanto o levávamos para o cemitério, passando por aquelas ruas turbulentas e destruídas, o quão poderoso e transbordante era aquele ressentimento, e dar-me conta de que agora o ressentimento era meu”.

A morte do pai fez Baldwin compreender “o peso que as pessoas brancas tinham no mundo”, o mesmo peso com que viveram seus antepassados; o mesmo peso com que ele teria que conviver, concluindo que o ressentimento que matara seu pai poderia matá-lo também.

A terceira e última parte do livro é dedicada ao seu autoexílio e de como ser negro na Europa poderia ser uma extensão, em certa medida diferenciada, embora também subalterna, da vida nos EUA. Baldwin pontua essas diferenças em Encontros na margem do Sena: negros e pardos, quando reflete que embora tenham suportado privações, injustiças e toda sorte de crueldades com a colonização, o negro africano não enfrentou “a total alienação em relação ao seu povo e seu passado”, como na experiência americana.

Sua vida na França também foi repleta de experiências negativas, como quando se viu preso por ter recebido um lençol de um amigo, que pertencia a um hotel onde nunca estivera, evento relatado em Igualdade em Paris. No ensaio Um estranho na aldeia, Baldwin leva sua experiência a uma dimensão absolutamente nova quando descreve sua temporada para escrever seu primeiro romance no vilarejo de Loèche-les-Bains, na Suíça.

A surpresa dos habitantes ao conhecerem um homem negro revelou um misto de ingenuidade dos locais – que lhe tocavam o cabelo e a pele, “espantando-se ao ver que a cor dela não saía” – e de racismo igualmente doloroso, ainda que fomentado por um contato de estranhamento e não como a consciência racial da segregação nos EUA.

A complexidade do seu pensamento nem sempre foi bem recebida por seus pares: Baldwin foi acusado diversas vezes de praticar uma tolerância nociva em relação aos brancos, com suas ideias de integração, e mesmo de praticar self-hate (auto-ódio). Ao ler o posfácio de Paulo Roberto Pires, descobrimos a hostilidade a Baldwin por integrantes do Partido dos Panteras Negras, que se valeram de argumentos homofóbicos para desqualificá-lo. A rejeição ao seu pensamento foi uma constante principalmente entre os jovens, que lhe deram o apelido de “Martin Luther Queen”.

Apesar da hostilidade sofrida, Baldwin se recusa a aderir às soluções fáceis porque compreende exatamente seu alto custo: “Para odiar de fato as pessoas brancas, seria preciso apagar tanta coisa da mente – e do coração – que o ódio se tornaria uma atitude exaustiva e autodestrutiva”. O que sobressai nos seus textos é a certeza de que nas relações raciais de uma sociedade diversa só é possível superar o racismo compreendendo toda a teia de ambiguidades e paradoxos que existe não somente nas relações entre brancos e negros, mas também no próprio homem negro.

Mas reconhece que a pacificação não será fácil porque “o mundo branco é poderoso demais, autocomplacente demais, excessivamente dado a perpetrar humilhações e, acima de tudo, ignorante e inocente demais para que isso seja possível.” Consciente de que o ódio só consegue destruir quem odeia, Baldwin, que recusava a aceitação de qualquer injustiça, indica o caminho do combate: “Essa luta começa, porém, no coração, e agora era responsabilidade minha manter meu coração livre do ódio e do desespero”. Não ser escravo do ódio deve também ser o desejo de liberdade de todos nós.

*Doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia, Itamar Vieira Junior é escritor, autor de Torto arado (Todavia)

Notas de um filho nativo
.De James Baldwin
.Tradução de Paulo H. Britto
.Companhia das Letras
.248 páginas
.R$ 59,90


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