Organizado por Felipe Cordeiro e Sara Rojo, o livro Mulheres Míticas em performance apresenta duas dramaturgias que foram encenadas pelo grupo de teatro Mulheres Míticas, de Belo Horizonte: O Deszerto, de Cordeiro e Gabriela Figueiredo, livremente inspirado no romance El desierto, do chileno Carlos Franz, e Classe, tradução da obra teatral Clase, do dramaturgo chileno Guillermo Calderón. Além das dramaturgias, o livro conta com textos críticos das artistas e pesquisadoras que realizaram: tradução, transcriação e análises a partir de diferentes olhares sobre as obras.
O DESZERTO
Laura se contorce, torturada e violada. Luta com papéis pela cena, ora imprime sua força neles, ora eles a dominam.
Cáceres: Tantos já gritaram aqui... Você realmente acha que lá fora exista alguém que queira te ouvir? As pessoas só querem ordem e progresso, a qualquer custo.
Mário: Como uma santa em sa- crifício, ela se adaptou à força dele. A dor a alcançou, como um relâmpago que percorreu toda a sua pele, arrepiando-a; uma só gota de fogo, limpa de qualquer outra sensação ou sentimento. Uma gota puríssima de algo que ela nunca havia experimentado antes e para o qual a palavra dor passou a ser sempre insuficiente. Já havia entre os dois uma inti- midade irrecusável... A partir daquilo ela passou a usar seu corpo como disfarce e seu rosto como máscara. Deu-se o pacto: a cada “sacrifício” da nossa juíza, um preso seria libertado. A cada encontro com o Major Mariano Cáceres, uma nova salvação. Bastava que Laura fosse até o acampamento militar, vestida como havia sido instruída, e dissesse:
Laura: “Sou eu, quero mais”. Essa é a história dele. O que Mário chama de intimidade pra mim foi aceitação da violência, como moeda de troca pela vida. (Vira-se e encara Cáceres.) Eu achei que podia enfrentar Cáceres com meus altíssimos princípios de jovem juíza, com meu corpo, mas não, só traí a mim mesma. O horror foi tão grande que precisei atravessar o Atlântico.
Mário: Tudo é concebível. As palavras, os choques, as violências. Tudo. Até tempestades de sangue no deserto podem ser pensadas a partir daqueles ruídos distantes, que se misturam ao canto de uma geração. O que não dá para imaginar é que toda uma cidade esteja, a essa hora, em suas camas, com os olhos abertos ou levantando seus fi- lhos, ou saindo para o trabalho e escutem os gritos que atravessam seu oásis e que todos prefiram pensar, como eu, que aqueles gritos são o fantasma de um trovão perdido no diáfano ama- nhecer. É conveniente. Há tempos desaprendi a ouvir as vozes que nos falam de outros mundos. Ignorar os fantasmas, como se eles não nos pertencessem. Mas aquele silêncio... Esse... O meu silêncio.
CLASSE
Professor: Escuta.
Anota.
Isso acontece a cada certa quantidade de anos.
Esta sala de aula se transforma num deserto.
É natural.
Aqui ensinamos os planetas.
A fotossíntese.
A independência.
São coisas fascinantes.
Pelo menos para mim.
Fascinantes.
Bom, mas a cada certa quantidade de anos a rua se transforma na escola.
Aqui, um deserto, lá fora a escola.
É natural.
Há perguntas que não posso responder.
Quem são os maus?
Não sei.
O que é a ética?
Eu não sei.
Mas na rua eles sabem.
Escuta.
Suponhamos que você sai na rua.
Você vê uma bala.
Essa bala voa.
Voa baixo.
E arrebenta o olho de alguém.
Acontece todos os dias.
Quem atirou a bala?
Política.
Por que a dispararam?
Teoria do Estado.
Com que dinheiro a compraram?
Economia política.
Por que apontaram na cabeça?
Psicologia humana, história, o horror.
O que é esse líquido transparente que lhe cai pela bochecha?
O olho que se esvazia.
Biologia.
Por que o corpo dele cai no cimento?
A lei.
A lei da gravidade.
Por que as pessoas correm para ajudá-la?
A espécie humana.
Por que limpam o seu olho ferido com água?
Medicina.
Por que gritam?
Luta de classes.
Por que dispararam?
A ética.
A crueldade.
Por que olham para o céu?
A teologia.
Procuram Deus entre as nuvens.
Por que se levantam furiosos e apontam seus lasers verdes para a polícia?
A guerra de Arauco.
A guerra de independência.
A revolução dos escravizados.
A comuna.
Os soviets.
A floresta.
A batalha.
E depois a polícia foge.
E depois vocês ficam sentadas na sarjeta.
Quatorze anos de vida.
Considerando o horror da vida.
O existencialismo.
E depois se olham rodeadas de milhares de pessoas.
Todas transpirando.
Chorando.
As caras vermelhas.
O corpo vermelho.
Têm quatorze anos.
Em um par de anos vão ter dezessete.
Impossível.
Mas isso é Álgebra humana.
Quatorze mais três é dezessete.
O tempo se contrai.
Viver dezessete anos é viver um século.
Por isso, na rua, você pode considerar a
brevidade da vida.
A razão da vida.
A ética.
A forma de viver.
A rua.
A universidade da rua.
O sol sobre a terra.
O lugar perfeito para o amor.
O amor da vida.
A moral do amor.
A dor do coração partido.
E vai seguir estudando.
A brevidade de tudo.
A brevidade da vida livre.
A fumaça.
A arma química.
A química.
A fumaça lacrimogênea.
A fumaça que amassa tudo.
A fumaça branca.
A fumaça preta.
O Estado.
A revolução.
A história.
A queda do mundo.
As ruínas do mundo.
A fumaça.
As mãos cheias de sangue.
As mãos úmidas com líquido de olho.
O corpo humano.
A guerra de fora do colégio.
O fogo.
E com essa lição vão voltar a entrar nesta classe.
E você vai me ensinar.
Vai me dar uma aula.
Vai me contar o que viu.
O que a rua te ensinou.
E eu vou escutar.
Vou te escutar.
Em silêncio.
Javali terá mais
sete lançamentos
Além de Mulheres míticas em performance, a editora Javali programou uma série de lançamentos de dramaturgia contemporânea para novembro. Serão sete volumes inéditos, além da nova edição de Vaga carne, de Grace Passô. Em ordem de lançamento estão: Conversas com meu pai + Stabat Mater, uma trajetória de Janaina Leite, com textos de Alexandre Dal Farra e Janaina Leite (SP); Moscou para principiantes, texto inédito da atriz e dramaturga Aline Filócomo, integrante da Cia. Hiato, que foi realizado através do edital Proac (SP); Outros, do Grupo Galpão, com dramaturgia de Marcio Abreu, Eduardo Moreira e Paulo André; Tropeço, com três dramaturgias de Anderson Feliciano; Banho de sol, da Zula Cia. de Teatro, com dramaturgia de Talita Braga; Peixes/Peces, de Ana Regis e Projeto Maravilhas, da Plataforma O Beijo, com dramaturgia de Marcos Coletta.
Mulheres Míticas em performance
Felipe Cordeiro e Sara Rojo (orgs.)
320 páginas
https://www.editorajavali.com/
R$40,00