"Afastados de pregação moral, os bastidores do documentário, transformados em texto literário, parecem traçar na angústia de linguagens próprias e impróprias (a indivíduos e grupos) a surra que o país nos dá na cara e na coragem"
Parte da nossa literatura contemporânea tenta compreender o país em que estamos metidos. O novo romance de Michel Laub, Solução de dois estados (Companhia das Letras) é a decupagem de um documentário em produção. E esse livro-filme feito de material decepado apresenta duas vozes que não querem se entender de jeito algum. Dois irmãos em litígio explícito. O negócio é partir para a porrada e a pornografia. Bem-vindos ao Brasil, esse lugar de encruzilhadas que se tornam abismos.
Alexandre e Raquel Tomazzi se revezam diante da câmera da cineasta alemã Brenda Richter. O “miliciano” Alexandre é dono da Império, lucrativa empresa do ramo, digamos, de fé e de fitness. Agrega academias e pastores na periferia de São Paulo. Nos termos do próprio livro, a “princesa” e “vaca gorda” Raquel, artista performática de destaque internacional, se dedica a filmes pornográficos bem realistas e muito conceituais. A narrativa desencadeia-se da agressão física que Raquel sofre de um dos seguidores de Alexandre com um cano de ferro, no palco de teatro requintado e diante de plateia esclarecida.
Família mais infeliz do que as famílias tradicionalmente infelizes. Mortos pai e mãe, desdobra-se fratricídio em vida, via de mão dupla. O leitor ouve argumentos e contra-argumentos selecionados por um autor que pode ou não ser a diretora estrangeira. Há colchetes de silêncios [...] entremeados às falas de entrevistadora e entrevistados. A estrutura vai se compondo de material pré-editado, material bruto, material a inserir.
Se nada está totalmente pronto, somos espectadores em estado de incompletude. De modo quase inevitável, vamos tomando partido de olho no que acreditamos: avançamos, recuamos, avaliamos, reavaliamos. Raquel, Alexandre e, em aproximação mais lenta, também Brenda se expressam para a câmera-página. Michel Laub ainda acrescenta outras poucas cenas e textos à composição da obra.
Sim, é quase como um ensaio antes do filme montado e pronto para ser exibido. Não se sabe, contudo, se a sociedade vai tolerar tamanha exposição da sua privacidade repulsiva, tamanha cisão coletiva. O título do livro é também o do documentário, que ganha a interrogação: Solução de dois estados?. Nos dois casos, ainda que se refira a um conflito quase incontornável no Oriente Médio, o título não é muito atraente, convenhamos, mas o romance merece ser lido pelo que não tem de predeterminado, imperativo, inconteste. Em que arte se trava uma luta justa? Onde o perdão verdadeiro pode se dar?
Tema atual e inquietante
Mais uma vez, o autor de O tribunal da quinta-feira (2016) coloca em ficção temas inquietantes de tão atuais. Há outros escritores brasileiros com essa disposição para entrar no debate sobre identidade-cultura-e-política, e não necessariamente pelo viés de política identitária. Cristovão Tezza, por exemplo. Antes, a “tragédia brasileira” retratada por Sérgio Sant’Anna (1941-2020), inclusive em proximidade formal com o que temos aqui: romance-teatro e também contos que são backstage ou entrevista jornalística.
A mensagem na garrafa: se estivermos dispostos a ouvir, poderemos chegar a ver, sem julgamento curtido em redes sociais. Afastados de pregação moral, os bastidores do documentário, transformados em texto literário, parecem traçar na angústia de linguagens próprias e impróprias (a indivíduos e grupos) a surra que o país nos dá na cara e na coragem. No ir e vir, perguntas e respostas dão corpo às visões de mundo de Alexandre, Raquel e a estrangeira que domina a língua e experimentou a violência brasileira bem de perto.
Bem que a pornografia poderia ficar reservada aos comentários anônimos. Porque a boa literatura chama por mais erotismo da palavra, por favor. Ainda que ela surja do ódio nascido no confisco da poupança da massa já falida, no corpo inadequado aos padrões e perfeito à crueldade infantil expressa em versos de uma cantiga, na casa familiar destroçada de uma vez por todas no direito à herança, na rua da bala perdida que atinge o homem bom.
Em Solução de dois estados, pode-se apenas vislumbrar uma perspectiva a meio caminho entre, à esquerda progressista, manifestações artísticas sustentadas pelo mundo financeiro (não à toa, a instituição bancária se chama “Pontes”) e, à direita conservadora, respostas pragmáticas e lucrativas de cunho religioso. O livro pega a gente pelo cangote, oferece rancor em doses cavalares e nos coloca contra a parede.
Que diabos (e que deuses) estamos fazendo aqui? Nessa tensão do desabafo, na pressão que os entrevistados jogam sobre a documentarista, nessa possibilidade de negociação que a literatura abre, aí reside alguma suavidade. Essa leveza possível pode nos salvar. Não, certamente, no alívio quando constatamos as perversidades alheias com as quais não queremos qualquer identificação. Mas, sim, na transformação íntima proporcionada pela experiência estética literária. Ainda a arte.
*Doutor em estudos literários pela UFMG e autor de A reinvenção do escritor: literatura e mass media (Editora UFMG), Sérgio de Sá é professor na Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB).
"Tento sempre ser o mais diferente possível do que já fiz, mas provavelmente falho porque olhando para trás os livros acabam tendo uma certa unidade, às vezes até temática%u2019"
Entrevista/Michel Laub
“O livro surge da perplexidade”
"Tento sempre ser o mais diferente possível do que já fiz, mas provavelmente falho porque olhando para trás os livros acabam tendo uma certa unidade, às vezes até temática%u2019"
Em vez de uma narrativa mais tradicional em primeira ou terceira pessoa, Solução de dois estados reproduz a decupagem de um documentário. Como chegou a essa estrutura narrativa menos linear e mais fragmentada, que deliberadamente evita descrições e digressões? A intenção foi acentuar a cisão entre os personagens?
A forma é sempre o conteúdo. Este livro surgiu de uma perplexidade minha com a situação brasileira, e ao mesmo tempo de uma consciência: para valer a pena escrever a respeito eu teria que ir além da obviedade do noticiário. O que é dito na história acompanha o raciocínio daqueles personagens, conduzidos por aquelas perguntas daquela entrevistadora, tudo montado para o leitor daquele jeito (eu como autor escolhendo o que entra e o que não entra, o que vai antes e depois etc.). Nesse sentido, a forma também foi o modo de tornar esta história única.
Por que a documentarista, inicialmente apenas observadora das narrativas dos dois irmãos, não é brasileira? O que tentou externar por um olhar estrangeiro?
Por vários motivos. O principal é que eu queria que o livro reproduzisse a perplexidade de quem vê de fora o absurdo da nossa situação, porque aí esse absurdo apareceria de modo menos disfarçado. Também há uma referência velada, ou talvez não tanto, à herança histórica que uma alemã carrega ao entrevistar figuras de um país sob ameaça ou já mergulhado na barbárie. E por fim, tem um lado técnico nesse recurso: ele permite que os personagens sejam didáticos aqui e ali, quando o trecho em questão é obscuro para quem não viveu os anos 1990, por exemplo. Como a entrevistadora é de fora, fica natural nas entrevistas abrir parênteses para explicar quem foi o Ibrahim Eris (presidente do Banco Central no governo Fernando Collor) e coisas assim.
Acredita que Solução de dois estados é o seu romance mais desencantado? O que o moveu a escrever esse livro?
É provável, mas eu não considero que otimismo ou pessimismo se resumem ao tema e à condução de um livro. Existe o otimismo da ação, acho essa uma forma bonita de esperança: acreditar que a ficção ainda é importante, que ela pode oferecer respostas a uma realidade tão desoladora, mesmo que sejam respostas duras e que pouca gente ouça. Nesse sentido, eu sou movido por perplexidade e indignação, mas também pela alegria de acreditar naquilo que faço.
“A minha identidade, o jeito como eu me expresso e devolvo para o mundo aquilo que o mundo me deu.” Esse também é o seu ponto de partida como escritor?
O do escritor e o de qualquer pessoa. Somos feitos do que o mundo enxerga em nós, nossa essência é afetada por isso. No caso da personagem que diz a frase, porque é uma pessoa com um corpo não aceito pela convenção social, e ainda mais por ser artista, isso fica mais evidente.
“O mundo está mais óbvio, o Brasil está mais óbvio, então é preciso falar disso tudo de modo mais óbvio.” Acredita que, no atual momento do país, a obviedade vem goleando a subjetividade? Há como virar esse jogo no segundo tempo ou se trata de um resultado irreversível? Quem são os grandes derrotados com a vitória do óbvio?
No debate público, sim. É esmagador, você não consegue deixar de ser pautado por esse grande esquema de aniquilação da subjetividade – vindo da manipulação política, da tecnologia gerida por corporações que vendem a ilusão de sermos indivíduos com voz própria, quando estamos apenas repetindo clichês alheios. Mas é aí que entra a arte. Ela ainda é o espaço onde se consegue ter algum espaço de reflexão, em que estamos abertos para mudar nossa sensibilidade. Você não vai encontrar isso na política, no moralismo, na publicidade, de certo modo até na religião.
Na relação de agradecimentos, é mencionado o jornalista Bruno Paes Manso, autor do recém-lançado A república das milícias. E há, em seu livro, uma espécie de milícia religiosa, com um viés de empreendedorismo econômico. A inspiração veio da realidade brasileira? O que há de pesquisa e de imaginação na elaboração da Império?
Tem pesquisa e tem imaginação. Há coisas que são baseadas na realidade e há coincidências. Eu comecei a escrever em 2017, muito antes da eleição do Bolsonaro, e terminei em 2020, em plena COVID. O que era um livro futurista virou uma espécie de romance histórico recente. Mas acredito que algumas questões de fundo não dependem dessas mudanças conjunturais. Eu quis falar sobre a possibilidade ou não de perdão no Brasil, por exemplo, e isso é uma pauta que não mudou nos últimos anos – já estava lá em 2017, até bem antes disso.
Raquel tem a convicção de que suas performances forçam “uma realidade escondida a aparecer”. A literatura pode ter a mesma força que sua personagem credita à arte que produz?
No sentido individual, certamente: para quem escreve (sempre), para quem lê (se o livro tocar essa pessoa). Agora, é uma mudança sutil, num nível de sensibilidade. No futuro isso pode até virar ação política coletiva, mas é algo imponderável. Não cabe à ficção, a meu ver, tentar antecipar isso, porque aí fica ruim literariamente.
Na sua trajetória de escritor de ficção, a década atual começou com romances que evocam lembranças familiares (Diário da queda, 2011), a intensidade das emoções no final da adolescência (A maçã envenenada, 2013) e termina com livros sobre as consequências de linchamentos virtuais (O tribunal da quinta-feira, 2016) e divergências irreconciliáveis em uma nação fraturada (Solução de dois estados, 2020). Acredita que os rumos do país também contribuíram para moldar a sua obra?
A realidade sempre contribui. Eu gosto de uma frase do Caio Fernando Abreu, de que escritores são os biógrafos das emoções do seu tempo. De minha forma limitada e particular, acho que é esse o registro que fica daquilo que faço. A realidade dos livros está menos nos fatos eventuais que são narrados, como a dinâmica das redes sociais no Tribunal ou da luta política no Solução, do que no filtro que eu faço disso a partir da minha visão de mundo e da minha sensibilidade.
Para onde irá a sua ficção na próxima década?
Eu nunca sei. Tento sempre ser o mais diferente possível do que já fiz, mas provavelmente falho porque olhando para trás os livros acabam tendo uma certa unidade, às vezes até temática. O Solução tem uma grande diferença de arquitetura, de linguagem mesmo, em relação aos meus livros recentes. Por outro lado, alguns dos temas ali – responsabilidade individual, por exemplo – são recorrentes para mim desde o início da carreira.
O futuro do Brasil é se tornar uma nação de Alexandres e Raquéis?
Sim, mas também uma nação de gente que consegue olhar para eles e seguir um outro caminho. Não um caminho de meio-termo ou algo assim, porque o isentismo hoje em dia é quase sinônimo de conivência com a barbárie, mas algo próprio. A literatura pode ajudar na formação desse caminho próprio. Se eu não acreditasse nisso, não continuaria escrevendo. (Com Carlos Marcelo)
Solução de dois Estados
Michel Laub
Companhia das Letras
248 páginas
R$ 49,90
E-book: R$ 29,90