O tempo entre a noite alta e o amanhecer pode ser muito maior do que indicam os ponteiros do relógio. Pode ser o momento para revisar o passado e refletir sobre dúvidas que há muito intrigam os pensadores, como a existência de Deus. A cena vivenciada na cama dividida pelo curandeiro Inocêncio e a professora dá início à narrativa de O ausente (Relicário), primeiro romance do poeta, pesquisador, ensaísta e professor Edimilson de Almeida Pereira.
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O beijo com a faca em riste: Ariana Harwicz narra relação complicada entre mãe e filhaDelimitação do tempo move O ausente, primeiro romance de Edimilson de Almeida PereiraEm busca da alma perdidaEscritos da casa morta é verdadeiro laboratório de personagensLivro enfoca a modernidade mineira na Semana de Arte de 1922As três narrativas ficcionais foram produzidas simultaneamente e têm em comum a temporalidade como eixo. O tempo aparece como drama humano. Nos três romances, Edimilson se impõe a tarefa de narrar, em um curto espaço temporal, número variado de experiências de personagens. As narrativas internas são interdependentes, embora possam ser lidas separadamente, compondo o eixo principal. “Tudo que fazemos, so- nhamos e realizamos está dentro de uma limitação temporal. Às vezes, não nos preocupamos muito com isso como sujeitos sociais e somos envolvidos pela temporalidade e o máximo que fazemos é emitir alguns comentários de tom desiludido e amargo: ‘Não tenho tempo para nada’, ‘Meu tempo não é suficiente’, ‘Por mais que eu faça, não dá tempo...’”
Em O ausente, o personagem-narrador é Inocêncio, que, da noite até o início da manhã, promove um acerto de contas com o seu passado. “Ele tem uma decisão a tomar quando a manhã emergir. No intervalo de poucas horas, da noite alta até a manhã, ele repassa a vida dele como um todo, parte da infância, as relações com a família, as relações com amigos, com o trabalho, com o conhecimento sagrado.”
Outros dois romances
Edimilson antecipa detalhes dos outros dois romances. Em Um corpo à deriva, dois jovens se encontram em apartamento para tomar, juntos, uma decisão “extremamente dolorosa e difícil”, diz o escritor. “No espaço de poucas horas, do meio ao final da tarde, vão discutir a experiência de vida, o passado, que envolve a história de um país, que não é nomeado como Brasil, país violento e dramático. Nesse curto espaço de tempo, eles recordam a vida afetiva que tiveram, recordam alguns amigos e fatos da história e começam a discutir a importância da linguagem, para que serve a linguagem huma- na, onde ela nos leva e o que ela constrói”, detalha.
Em Front, ambientado em uma comunidade da periferia, sem que seja descrita a localização precisa, as pessoas se predispõem a esperar numa fila para pagar boletos. “Há um personagem nessa fila que, para chegar ao caixa, leva duas, três horas. Enquanto o tempo decorre, ele reflete sobre o mundo em que vive, comenta sobre as pessoas que habitam o bairro onde nasceu, recupera tempo da infância, analisa o que está ocorrendo no mundo para além da comunidade dele. Quando chega quase perto do caixa, há um acontecimento extraordinário que dá sentido a todas as especulações que ele fez.”
Os romances demonstram que, em um curto espaço de tempo, pode-se fazer a revisão de vida de uma pessoa, como da história de um país. “A grande ação desses três romances se desdobra no pensamento. O ato de pensar e refletir é preponderante em todos os personagens, que são profundamente humanizados com contradições e tensões.”
A experiência como professor de literatura portuguesa e literaturas africanas de língua portuguesa na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), como o escritor mesmo define, constrói os andaimes das narrativas. “Nas pesquisas de campo, na área de etnografia e antropologia, muitas vezes para reconstruir narrativas gravadas oralmente com as pessoas, eu acabo empregando algumas técnicas que são da narrativa ficcional para completar a estrutura da narrativa, para dar uma coerência, mas é claro que esses relatos saíram no livro de etnografia e antropologia com um caráter documental, mas o exercício narrativo já tinha comigo desde esse período. Faltava colocar em prática em obras específicas.” A seguir, uma entrevista com o autor.
Em O ausente, o personagem Inocêncio, ao mesmo tempo que fala sobre ele, apresenta também a mulher, Dejanira...
É um jogo interessante que procurei fazer. Inocêncio tem um volume muito grande de discurso. Ele fala o tempo inteiro ou falam sobre ele. Ele tem um volume de discurso dele ou falando sobre ele muito grande, até pelo papel central que exerce na comunidade como rezador e curandeiro. Então, ele é o alvo do discurso. Dejanira fala pontualmente. A força do discurso dela está menos na quantidade, e especificamente na qualidade do discurso que ela estabelece. Fala pouco em termos de quantidade e fala muito em termos de qualidade.
Essa diferença de discursos está relacionada com os lugares que ocupam a professora Dejanira, o saber acadêmico, e Inocêncio, o saber tradicional?
Tanto Inocêncio como Dejanira são figuras populares. Mas o perfil da Dejanira não é da professora acadêmica. São pessoas do meio rural. O que estou colocando em discussão, também, e fruto de minhas pesquisas nessemeio, é mostrar este universo rural de uma forma mais aprofundada, de modo que a complexidade desse ambiente possa ser discutida e revelada pelos próprios perso- nagens. Para fugir de vez da versão estereotipada, caricatural e naturalista que temos das pessoas do meio rural. Trabalhei muitos anos nessa comunidade e sei que ali há um modelo muito complexo e refinado, mas visto de fora de forma estereotipada.
Seria uma forma de valorização do saber tradicional?
É isso, mas é um pouco mais. Quando a gente fala valorização, você está pressupondo que parte de um patamar hierarquizado. Há um conhecimento reconhecido – urbano, acadêmico e científico – que olha para os outros, admitindo que há uma dife- rença qualitativa, então ele valoriza esses outros conhecimentos. Mas não é exatamente isso que o romance discute. O universo cultural do Inocêncio e da Dejanira é relativamente autônomo, como qualquer sistema de saber, com regras e estruturas lógicas próprias. São essas estruturas que os personagens vão revelar sem precisar do saber autorizado para reconhecê-los.
Podemos definir Inocêncio como um filósofo?
Inocêncio é um sujeito de pensamento, que especula a própria vida, o passado. Ele parte da lógica de mundo em que ele vive, por isso não é maior nem menor que Aristóteles ou outros nomes da filosofia clássica, já conso- lidada.
Muitas vezes, a gente a filosofia é vista como o regime do saber acadêmico e, na verdade, pode representar a possibilidade de olhar para o mundo e fazer perguntas, certo?
O primeiro passo do saber filosófico é a dúvida. É o sujeito diante do mundo e ele tem que saber o que é o objeto mundo do que é ele, sujeito. O ato filosófico em si transcende o saber acadêmico. Toda filosofia clássica elaborou essa questão em sistemas, em estruturas lógicas que vieram a dar para nós esse campo filosófico reconhecido, que permeia o saber acadêmico. Mas o ato filosófico em si transcende esse espaço acadêmico. É o que Inocêncio vai discutir. Ele é um sujeito da dúvida, da indagação do que é o mundo.
Inocêncio questiona, em diferentes momentos, a existência de Deus...
Descartes tem toda uma estrutura racional para demonstrar a existência de Deus. Com outro vocabulário, Inocêncio entra no mesmo campo de indagação e deixa essa questão para ser discutida com o leitor. Tem a ver com o longo período de campo que tive em comunidades rurais. Eu não queria usar o material etnográfico que foi para os livros de análises e ensaios. Queria aproveitar esse cenário para gerar narrativa ficcional com a visão de mundo dos muitos personagens que encontrei lá.
Inocêncio e outro personagem masculino, João Vítor, reconhecem certa superioridade de Dejanira e Quitéria, suas companheiras...
As falas das personagens femininas são extremamente articuladas no comportamento e no modo de pensar o mundo. Não são figuras subalternas. Pelo contrário, são autônomas e questionam os valores dos espaços que ocupam de diversas maneiras. Uma maneira mais importante que encontram é o domínio da fala. Elas têm discurso. Gostaria de frisar: o valor do discurso não está na quantidade, mas na qualidade. É o caso da Dejanira. O pouco falar dela tem vo- lume de informação e conteúdo muito grandes. Tanto que vai conduzir o próprio comportamento dele.
• o ausente
• Edimilson de Almeida Pereira
• Relicário Edições
• 124 páginas
• R$ 42,90
• (Pré-venda no site da editora a R$ 36,40)