22 de dezembro de 1849: Fiódor Micháilovich Dostoiévski, de 29 anos, passa pela maior provação de sua vida. Está diante de um pelotão de fuzilamento, ao lado de outros in- telectais. Todos pertencem ao chamado Círculo de Petrachevski e estão condenados por conspiração contra o regime do czar Nicolau I (1796-1855), inclusive por ataques à ser- vidão. Dostoiévski "sente um terror místico e é dominado pelo pensamento de que talvez em cinco minutos esteja indo para outra vida, desconhecida", conforme revelará depois em carta ao irmão mais velho, Mikhail.
O Dostoiévski que sai da Sibéria é um homem marcado por profundas transformações em suas convicções, inclusive espirituais. Nenhum outro grande escritor russo passou por experiência tão traumática. O jovem cristão secular e simpático ao socialismo utópico não é mais o mesmo. Em Omsk, ele conheceu os seres humanos em sua essência, durante a convivência com mais de 200 condenados, a maioria criminosos comuns, ladrões, homicidas, parricistas e portadores de outras patologias da vilania. Como intelectual, Dostoiévski sofreu preconceito, humilhações e perseguição de quem não se julga à sua altura.
“'Quantos tipos e caracteres folclóricos eu levei da prisão...! Quantas
TRECHO DE ESCRITOS DA CASA MORTA
Os três primeiros condenados já estão encapuzados. Mas, quando os rifles são apontados para eles, rufam os tambores e um oficial de campo chega a cavalo com a mensagem do czar suspendendo a pena de morte e transformando-a em trabalhos forçados na longínqua e gelada Sibéria. Dostoiévski, que já sofre crises nervosas, passa, então, depois deste terrível trauma e do degredo, a sofrer pelo menos um ataque de epilepsia por mês durante toda a vida. Como Machado de Assis (1839-1908), maior escritor brasileiro, o maior escritor russo também sofreu muito com a epilepsia.
O pelotão de fuzilamento, entretanto, é apenas um teatro, porque a deportação para a Sibéria e a pena de trabalhos forçados já estão decididas. Para passar a imagem de piedoso, Nicolau I reduz ou perdoa penas propositalmente aumentadas pelos tribunais do regime imperial. São farsas macabras que implantam o terror com fachada de bondade, deixando adversários desesperados, mas acreditando na clemência do regente.
23 de janeiro de 1850: Dostoiévski, com a saúde debilitada, acaba de chegar ao presídio da cidade de Omsk, na Sibéria, a mais de 3 mil quilômetros de São Petersburgo, capital do Império Russo, para cumprir quatro anos de trabalhos forçados. Mesmo com formação de engenheiro, ele não tem ofício de utilidade prática na prisão e é mandado para serviços pesados, cozer tijolos e carregá-los em pilhas para construção, trabalhar no desmanchee de uma velha barca, com a água gelada do Rio Irtích até os joelhos, calcinar alabastro e fazer outros trabalhos sob o insuportável frio de 40 graus negativos, que congela seus pés, como também dirá depois a Mikhail.
É no hospital militar da cidade, durante suas várias internações, que Dostoiévski passa grande parte do tempo e faz anotações no Caderno Siberiano (Sibírskaia tietrád). Tem autorização do médico-chefe, Ivan Ivánovitch Troitski, que permite que leia e escreva, porque o único livro liberado no presídio é a Bíblia. O caderno, em breve, terá quase 500 notas numeradas, escritas entre 1852 e 1854. Contém a rotina de sofrimento, mas também de superação e dignidade do escritor e vai dar origem ao livro Escritos da casa morta, publicado em 1861/62 – e que acaba de chegar ao mercado brasileiro pela Editora 34, encerrando a publicação de toda a ficção do autor no Brasil.
O martírio de Omsk, entretanto, ainda não é tudo. Em 2 de março de 1854, Dostoiévski é alistado como soldado no 7º Batalhão de Linha da Companhia Siberiana do Exército Russo, na pequena Semipalátinsk, nas estepes quirguizes (atual Cazaquistão), perto da fronteira com a China. Após quatro anos de trabalhos forçados em Omsk, no presídio que ele chamou de “inferno”, começa vida nova, obrigado apenas a cumprir suas obrigações de militar.
Humilhação e preconceito
O Dostoiévski que sai da Sibéria é um homem marcado por profundas transformações em suas convicções, inclusive espirituais. Nenhum outro grande escritor russo passou por experiência tão traumática. O jovem cristão secular e simpático ao socialismo utópico não é mais o mesmo. Em Omsk, ele conheceu os seres humanos em sua essência, durante a convivência com mais de 200 condenados, a maioria criminosos comuns, ladrões, homicidas, parricistas e portadores de outras patologias da vilania. Como intelectual, Dostoiévski sofreu preconceito, humilhações e perseguição de quem não se julga à sua altura.
Konstantin Motchulski, um dos seus principais biógrafos, explica no posfácio de Escritos da casa morta: “Em carta a seu irmão mais velho, Mikhail, já tendo deixado a prisão, Dostoiévski escreveu: 'Quantos tipos e caracteres folclóricos eu levei da prisão...! Quantas histórias de andarilhos e ladrões... É o bastante para inúmeros tomos”. Todos esses tipos estão no Caderno Siberiano, com “trechos de diálogos, canções e provérbios ouvidos das conversas dos galés”. Por volta de 1860, já livre, Dostoiésvski começa a redigir o semiautobiográfico Escritos da casa morta e a publicá-lo no jornal Mundo Russo. Logo depois, ele e Mikhail fundam a revista literária O Tempo, que passa a reproduzir capítulos da obra. O livro é, finalmente, impresso em 1862, abrindo nova fase na carreira literária do escritor.
Órfão de mãe e pai assassinado
A Sibéria dividiu em duas a vida do homem cuja vida daria um belo romance, como revela Joseph Frank, em Doistoiévski – Um escritor em seu tempo – A biografia. A vida inteira lutou contra a pobreza, vivendo de adiantamentos de editoras para obras que iria escrever, e com dívidas, inclusive de jogo e empréstimos. E ainda perdeu dois filhos pequenos e sofreu com pro- blemas de saúde, principalmente a epilepsia, que o atormentou até a morte.
Dostoiévski nasceu em Moscou, em 11 de novembro de 1821 (30 de outubro, pelo calendário juliano vigente na Rússia), num hospital para indigentes onde seu pai trabalhava como médico. Em 1837, ainda adolescente, perdeu a mãe, vítima de tuberculose. No ano seguinte, ingressou na Escola de Engenharia Militar de São Petersburgo, para estudos literários. Em 1839, o pai foi assassinado por servos de sua pequena propriedade rural.
Sozinho e sem dinheiro, Dostoiévski abandonou a carreira militar e escreveu o primeiro romance, Gente pobre, em 1846. Depois de ser preso na Sibéria, lançou Escritos da casa morta e nas duas décadas seguintes suas principais obras, incluindo Os demônnios, Crime e castigo, O idiota e Os irmãos Karamázov. Em 1857, Doistoiévski se casou com Maria Dmitrievna e fundou em São Petersburgo, com Mikhail, a revista literária O Tempo, fechada pela censura em 1863. Em 1864, lançou outra revista, A Época, e perdeu a mulher e o irmão. Dois anos depois, conheceu Anna Grigórievna, com quem teve quatro filhos e viveu até fim de sua vida, em 9 de fevereiro de 1881.
“'Quantos tipos e caracteres folclóricos eu levei da prisão...! Quantas
histórias de andarilhos e ladrões... É o bastante para inúmeros tomos”
Trecho de carta de Dostoiévski ao irmão mais velho, Mikhail
» Escritos da casa morta
» Fiódor M. Dostoiévski
» Tradução, apresentação e notas de Paulo Bezerra
» Posfácio de Konstantin Motchulski
» Xilogravuras de Oswaldo Goeldi
» Editora 34
» 408 páginas
» R$ 79
TRECHO DE ESCRITOS DA CASA MORTA
Assassino de criancinhas
“Aquele Gázin era um ser pavoroso. Produzia em todos uma impressão de horror, angustiante. Sempre me pareceu que nada podia haver de mais feroz e monstruoso do que ele. Em Tobolsk, vi o bandido Kámeniev, famoso por suas atrocidades; depois vi o soldado desertor Sokolov, um terrível assassino que aguardava o julgamento na prisão. Mas nenhum deles provocou em mim uma impressão tão repugnante como Gázin. Às vezes, eu tinha a impressão de estar diante de uma aranha enorme, gigantesca, do tamanho de um homem. Ele era tártaro; de uma força monstruosa, era mais forte que todos do presídio; estatura acima da média, compleição hercúlea, cabeça disforme, desproporcionalmente grande; andava corcovado, olhava de esguelha. No presídio, corriam estranhos rumores a seu respeito: sabia-se que vinha do meio militar, mas os presidiários argumentavam entre si, não sei se com ou sem razão, que ele era um fugitivo de Niertchinsk (…) Contavam também que antes ele gostava de esfaquear criancinhas unicamente por prazer: levava a criança para um lugar propício, primeiro a assustava, torturava e, depois de plenamente satisfeito com o pavor e o tremor da pobre e pequena vítima, esfaqueava-a em silêncio, devagarinho, saboreando o prazer.”