Se todas as famílias felizes se parecem entre si, e as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira, como sentenciou Tolstói em Anna Kariênina, só nos resta tentar compreender e, talvez, responder a essa provocação. Entre a felicidade absoluta e a infelicidade completa evocadas pelo escritor russo, é possível pensar em meios termos e contradições: famílias felizes e ao mesmo tempo infelizes. A literatura é espaço privilegiado para sondar com palavras a ferocidade desses afetos. O romance Onde você vai encontrar um outro pai como o meu, de Rossana Campo, delineia de forma contundente a geografia amorosa de uma família em medidas generosas, explorando o relacionamento entre pai e filha.
Incorporando elementos autobiográficos, a narrativa da escritora italiana principia com leveza, ainda que trate do funeral paterno. A comicidade dá a tônica, e nos aconchegamos aos episódios de uma família sulista vivendo no norte da Itália nos anos 1960. Depois de instalados no texto, a vertigem. Campo entra sem dó nesse território, trazendo as peculiaridades da cultura em questão: “Sempre me pareceu uma atitude muito italiana, das famílias e dos indivíduos, a de não querer enxergar as coisas como são, esquivar-se delas, querer eliminá-las, na esperança de que, desviando, não se colocando diante da verdade das coisas, as coisas mudem, se transformem, façam menos mal ou até mesmo desapareçam”. Publicado em 2015 e laureado em 2016 com os prêmios Strega Giovani e Elsa Morante, Onde você vai encontrar um outro pai como o meu vem na sequência de outros 10 livros publicados. Nascida em Gênova em 1963, a escritora estreou na literatura em 1992 com In principio erano le mutande (“No princípio eram as roupas íntimas”), adaptado para o cinema por Anna Negri.
Corajoso, este recente romance de Campo olha para a verdade das coisas e nos arrebata pelo talento da escritora ao dissecar os extremos dos sentimentos – naquele núcleo, se é muito feliz ou muito infeliz. A narradora enfrenta a dor de amar um pai cheio de defeitos, descrevendo a montanha russa emocional da vida de uma família impregnada pela personalidade paterna, incluídas aí generosas doses de álcool, violência, irresponsabilidade e autodestruição. Esses terroni, assim chamados pejorativamente no norte em função da origem meridional, carregam ainda por cima sangue cigano. A um preconceito soma-se outro, provocando a sensação de dupla marginalidade.
Pertencente a uma geração forjada pela pobreza e pela violência do fascismo, Renato di Rocco é um personagem de muitas nuances. Adorável, recomenda à filha nunca ter medo de nada, já que foi concebida em cima de uma mesa de bilhar. O pai que, na infância, busca a filha no acampamento tedioso com freiras, faz rir, traz doces e presentes, e ao fim de uma vida de dissipação ainda consegue deixar uma pequena herança. Renato di Rocco é também um sujeito asqueroso. Bêbado violento, mentiroso contumaz, “uma merda de pai” que bate na mãe e leva os filhos a botecos que fedem a cigarro e urina. Policial militar, não se sujeita a regras e é expulso da corporação. Os atributos de encrenqueiro e desempregado em nada ajudam na relação com gente supostamente normal.
Mas estamos no terreno da ambivalência, e com esse pai a filha se identifica fortemente. Adulta, torna-se escritora, e procura ver sua história pessoal de outro ponto de vista. A mudança de perspectiva se relaciona inteiramente ao seu ofício. Para além da reflexão sobre os contrastes entre amor e ódio pela figura paterna, Campo questiona o lugar da escrita. Aterrorizada, pensa que o dia em que o pai morresse não produziria mais. E fora das palavras não haveria abrigo.
Intrigada por essa possibilidade, procura um psicanalista francês que escrevera ensaios sobre criatividade e loucura em alguns escritores. O famoso especialista, ao ouvir sua queixa de se sentir fora de lugar no mundo, desaconselha o tratamento – encoraja que assuma o desenraizamento como condição existencial, já que aqueles que nascem com certa sensibilidade devem encarar seu destino. No texto, a constante sensação de desajuste experimentada pela narradora vai sendo direcionada para uma libertação pela arte, modo de traçar linhas de fuga.
Há uma passagem do romance relatando a cena de um dever escolar: a pedido da professora, as crianças desenhariam a Lanterna de Gênova depois de visitá-la. Ajudada pelo pai, que só cumpre a primeira parte da tarefa, a menina leva o trabalho à mestra e recebe dura repreensão: a Lanterna pedida era o farol da cidade, célebre monumento portuário, e não uma lamparina qualquer – “meu caderno com a lanterna superbonita só que toda errada”. Sem tentativa de redenção ou tom lacrimejante, a narrativa vai ensaiando possibilidades, onde erros e acertos convivem de perto. Leitor de Hemingway, apreciador de poesia, esse pai desenha e transita pelo espaço do sensível.
A mão do homem tosco, que bate e levanta o copo pela milésima vez, é a mesma que afaga e cria coisas belas. Não há como escolher, indissociáveis que são. Diante desse impasse, a narradora elege a tribo dos inadaptados – às vezes a lanterna possível é a lamparina errada, que, de um jeito torto, ainda ilumina.
TRECHOS
Contamos um ao outro mais episódios ligados ao nosso pai, daí digo: Sabe, se fosse um filme com as músicas do Tom Waits, com o roteiro do Bukowski, a gente ia gostar dessa história. Sim, ele disse, e, como que continuando meu pensamento, acrescenta: Mas em vez disso, era a nossa vida, entende? Claro, era a nossa vida.
O inimigo e o ser que eu sentia ser meu cúmplice e o único extraterrestre com pensamentos parecidos com os meus eram a mesma pessoa. Que confusão desgraçada, sentir-se parecida e amar alguém que foi também o seu torturador. Que desconcertante reconhecer traços do meu pai no meu rosto, a forma do nariz, dos olhos, os braços, as mãos, o jeito de andar. Que merda de esforço, que dor saber que você herdou parte dele nos seus genes, parte do seu caráter difícil, das suas fraquezas e fragilidades.
Onde você vai encontrar um outro pai como o meu
• De Rossana Campo
• Tradução de Cezar Tridapalli
• Ayiné Editora
• R$ 64,90
• 180 páginas