Jornal Estado de Minas

Primeira leitura

A poeta Adriane Garcia apresenta o mito da criação em 'Eva-proto-poeta'


 
Intuição de coruja
Lilith sonha que
Adão
É uma espécie de
Serpente


Barraco
Lilith grita
Adão não ouve

Deus sai de fininho


Maria da Penha
Adão ergue o braço
Contra Lilith
E conspurca o Paraíso
 
 
Ao juiz
Lilith denuncia
Adão

Chama
O nome de Deus

Em vão


Playboy
Adão chorão
Foi pedir ajuda
Ao papai

Perguntar não ofende
Deus aguarda os três anjos
Quer saber tudo
Tim-tim por tim-tim

Mas ele já não sabe 
 

 
SOBRE o livro

(foto: Micaelle Ariel/Divulgação)
 

 

 O mito fundador da cultura ocidental, a criação de Adão à semelhança de Deus e Eva tirada da costela, orientou os papéis de homem e mulher, bem como a ideia de casal, família e a relação entre homem e mulher. A poeta Adriane Garcia, de maneira divertida, reescreve o mito fundante na perspectiva de Eva no livro Eva-proto-poeta (Editora Caos e Letras). 




 
Os versos são escritos à luz de discussões contemporâneas sobre autonomia da mulher, relacionamentos abusivos e relações homoafetivas. Adriane Garcia lança mão da técnica da síntese para trazer com precisão sua perspectiva do mito fundante.
 
No livro, Adão é um playboy chorão que pede ajuda ao pai. Também é alvo do arrependimento de Deus a criação dele.  Traz para a história a figura de Lilith, imagem da mulher insubmissa que foi apagada na tradição judaico-cristã. “À medida que escrevi esse livro, me senti meio que vingada. A história é muito absurda. Vamos considerar que não é uma metáfora, inclusive é usada por muitos como se não fosse. Mesmo não sendo metáfora, as pessoas não percebem os absurdos que há ali. Por exemplo, não perceber que o Adão é um covarde. Ele comeu do fruto, mas bota a culpa nela. O cara não é parceiro nunca. Nasce sem ser parceiro. O cara junto com ela, da espécie dela. Come do fruto, desobedece igualmente. Na hora H, quando perguntado, ele diz foi ela. O cara é um X- 9.” 
 
O discurso de Adão se estende aos dias de hoje, em que a culpa sempre é atribuída à mulher, por exemplo, nos crimes de estupro, quando dizem que a vítima não estava no lugar certo ou que a roupa dela é muito provocativa. “É a roupa que ela vestiu, o lugar que ela frequentou, a bebida, o modo como se comporta, o palavrão que ela fala, a ele só resta ser um bom estu- prador”, diz Adriane. 
 
O mito é repetido até os dias atuais e, culturalmente, faz parte da vida da sociedade ocidental. “É tanto perigoso literalmente como é perigoso como metáfora.” Na narrativa, Lilith e Eva se encontram e fazem um pacto de sororidade. “São duas mulheres, mas podem ser a mesma. Pode ser uma tornando-se a outra. O que separa Eva de Lilith é só a submissão”, provoca Adriane. 




 
A poeta brinca com a questão da sexualidade. “Nisso eu adorei mexer. O mito fundante tem carga muito grande para gerar homofobia. A gente sabe que gera.” Adriane lembra que no mito fundante o casal é hétero: “Amai-vos e reproduzi-vos. Não admite outra coisa. Outra coisa não é normal. Não é divino e nem ordem de Deus. Outra coisa só pode ser do diabo.”
 
Ao falar de Eva como a primeira poeta, Adriane reivindica o direito das mulheres à escrita e  também ao ato de nomear, algo que confere poder. “Adão nomeou as coisas e isso fez de Adão o primeiro poeta. O protopoeta. Engraçado, porque Adão nomeou as coisas e não Eva. Ou por que não nomearam juntos? Por que foi Adão quem deu nome a todas as coisas?”.
 
Eva-proto-poeta
Adriane Garcia
Editora Caos e Letras
R$ 35
O livro pode ser adquirido
no site da editora (caoseletras.com) 

audima