Desde Theodore Roosevelt (1858-1919), quase todos os presidentes dos Estados Unidos deixaram um livro de memórias com a sua versão e relatos dos anos em que, instalados na Casa Branca, comandaram esta que é hoje uma das potências de política externa mais agressiva do mundo. Em Uma terra prometida (Companhia das Letras; A promised land, no original), Barack Obama não quebrou essa tradição.
Mas é justo que se diga que, embora como seus antecessores tenha pinçado os episódios e as vivências em reforço à sua imagem idealizada, estabeleceu um ponto de inflexão pelo estilo intimista como articula nos anos à frente da Presidência o seu cotidiano famliar, a gestão do poder e a explicitação de preocupações com o racismo estrutural, as desigualdades sociais e de gênero e as mudanças climáticas.
Mas é justo que se diga que, embora como seus antecessores tenha pinçado os episódios e as vivências em reforço à sua imagem idealizada, estabeleceu um ponto de inflexão pelo estilo intimista como articula nos anos à frente da Presidência o seu cotidiano famliar, a gestão do poder e a explicitação de preocupações com o racismo estrutural, as desigualdades sociais e de gênero e as mudanças climáticas.
Obama admite a frustração ao constatar frequentemente os reveses de seus esforços para mudar a realidade, deixando em aberto a pergunta, no rol das promessas de igualdade e liberdade dos pais fundadores da nação: “Será que de fato tentamos equiparar a realidade dos Estados Unidos aos seus ideais?”. E em exercício de reflexão, prossegue: “Ou, pelo contrário, estamos decididos, pelo menos na prática, senão nos estatutos, a reservar essas coisas a uns poucos privilegiados?”.
A biografia de Obama traz outro divisor de águas em relação às obras de seus antecessores explicadas pelo contexto em que a publica. Único afrodescendente a alçar a presidência daquele país – foram dois mandatos consecutivos entre 2009 e 2017 –, é a primeira liderança internacional a registrar em detalhe, de um lugar privilegiado, a ascensão do novo populismo de direita em uma nação de longa tradição democrática, que assiste hoje, ao final da presidência de Donald Trump, à polarização mais intensa e ódios mais marcantes, que mantêm vivo o permanente espectro das questões jamais resolvidas pela Guerra da Secessão.
Em várias passagens da obra, Obama detalha a conquista da hegemonia no Partido Republicano desta nova ideologia, que escanteou os “moderados” – antes, em boa medida, parecidos com democratas– consolidando as ideias do Tea Party na nova sigla de Trump, com a exaltação da “xenofobia, anti-intelectualismo, paranoicas teorias conspiratórias e antipatia por pessoas negras e de pele escura”.
Em várias passagens da obra, Obama detalha a conquista da hegemonia no Partido Republicano desta nova ideologia, que escanteou os “moderados” – antes, em boa medida, parecidos com democratas– consolidando as ideias do Tea Party na nova sigla de Trump, com a exaltação da “xenofobia, anti-intelectualismo, paranoicas teorias conspiratórias e antipatia por pessoas negras e de pele escura”.
Obama avalia as consequências para os Estados Unidos das contracorrentes que seguem a empurrar a democracia americana para a “beira do precipício”, assim definida: “uma crise enraizada no embate entre duas visões opostas do que são os Estados Unidos e do que deveriam ser; uma crise que deixou a classe política dividida, enraivecida e desconfiada, e permitiu uma violação de normas institucionais, de freios e contrapesos e do respeito a fatos elementares que tanto os respublicanos como os democratas consideravam inatacáveis no passado”, afirma o autor. A era Trump consolida desafios para a democracia em um novo tempo que, na visão de Obama, não serão superados por um único novo governo
À frente da presidência, Obama lidou com um país dividido – cujo aprofundamento das diferenças foi estimulado na era Trump – que alcançou em um único momento, de forma inequívoca, consenso compartilhado: por ocasião do fim da caçada a Osama Bin Laden, com o extermínio do líder da Al Qaeda, que vivia escondido em casa de classe média alta nos subúrbios de Abbottabad, no Paquistão. No livro, Obama detalha toda a operação, que acompanhou por imagens em tempo real e a catártica comemoração de júbilo popular após o desfecho da operação. “Aquela união de esforços, aquele senso de propósito comum só seriam possíveis quando o objetivo fosse matar um terrorista?”, indaga ele, constatando, por exemplo, que não sentira na noite em que a lei de assistência à saúde foi aprovada – o Obamacare – o mesmo consenso compartilhado.
“Eu me pegava imaginando o que o nosso país poderia ser caso fôssemos capazes de aplicar na educação de nossas crianças ou no fornecimento de abrigo para os sem-teto o mesmo nível de perícia e determinação aplicados na perseguição a Bin Laden; caso pudéssemos aplicar a mesma persistência e recursos para reduzir a pobreza, diminuir os gases que contribuem para o efeito estufa ou garantir acesso a creches decentes para todas as famílias.”
“Eu me pegava imaginando o que o nosso país poderia ser caso fôssemos capazes de aplicar na educação de nossas crianças ou no fornecimento de abrigo para os sem-teto o mesmo nível de perícia e determinação aplicados na perseguição a Bin Laden; caso pudéssemos aplicar a mesma persistência e recursos para reduzir a pobreza, diminuir os gases que contribuem para o efeito estufa ou garantir acesso a creches decentes para todas as famílias.”
Citações ao Brasil
O Brasil é citado duas vezes no livro. Último presidente americano a visitar o país entre 19 e 20 de março de 2011, nessa passagem Obama relata o cenário em que dispara, em uma sala do Palácio do Planalto e por meio de um telefone celular de um assessor, a autorização para a primeira ofensiva militar contra o regime de Muamar Khadafi, na Líbia. Dali, no coração do Planalto – o que é decisão bastante simbólica considerando-se que o Brasil, por sua política externa historicamente pacífica e de negociações – o que se registra foi bruscamente alterado no governo Bolsonaro – se abstivera no voto do Conselho de Segurança sobre a intervenção na Líbia –, Obama sela para o chefe do Estado-Maior, o almirante Mike Mullen, o destino daquele país: “Está autorizado”. Assim detonou seis meses de ataques dos Estados Unidos, o que culminaria com a queda e morte de Khadafi.
“Aquela era a minha primeira visita à América do Sul como presidente e meu primeiro encontro com a presidente recém-eleita Dilma Rousseff. Economista e ex-chefe de gabinete de seu carismático antecessor, Lula da Silva, Rousseff estava interessada, entre outras coisas, em incrementar as relações comerciais com os Esatdos Unidos. Ela e seus ministros receberam calorosamente nossa delegação quando chegamos ao palácio presidencial (...) Durante várias horas conversamos sobre os meios de promover maior cooperação bilateral em matéria de energia, comércio e mudanças climáticas. Mas, com as crescentes especulações em todo o mundo sobre quando e como teriam início os ataques contra a Líbia, ficou difícil ignorar a tensão”, relata Obama.
Em outra passagem sobre o Brasil, Obama faz referência ao Brics – bloco que mais tarde se formaliza integrado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul –, cujos representantes participaram de encontro de cúpula do G20 (grupo de países desenvolvidos e em desenvolvimento), em Londres (2009), e comentários sobre o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Sobre o Brics, uma das apostas da gestão Lula, Obama comenta: “O espírito por trás dessa associação estava claro. Eram todos países grandes e conscientes de sua importância, que, de uma forma ou de outra, tinham emergido de longos períodos de torpor. Já não se contentavam em ser relegados à margem da história, ou em ver seus status reduzido ao de potências regionais. Irritavam-se com o papel desproporcional do Ocidente na gestão da economia global. E, na crise, viam uma oportunidade de começar a virar a mesa”, descreve Obama, considerando simpatizar com o ponto de vista do bloco, que representava pouco mais de 40% da população do planeta.
“Se os Estados Unidos quisessem peservar o sistema global que durante tanto tempo nos servira, fazia sentido dar mais voz a essas potências emergentes no modus operandi – ressaltando, ao mesmo tempo, que precisavam assumir maior responsabilidade pelos custos de sua manutenção”, afirmou, criticando, adiante, o fato de que esses países “não se sentiam na obrigação de custear o sistema como um todo”, pois entendiam ser esse “um luxo que só o próspero e feliz Ocidente tinha condições de bancar”.
“Se os Estados Unidos quisessem peservar o sistema global que durante tanto tempo nos servira, fazia sentido dar mais voz a essas potências emergentes no modus operandi – ressaltando, ao mesmo tempo, que precisavam assumir maior responsabilidade pelos custos de sua manutenção”, afirmou, criticando, adiante, o fato de que esses países “não se sentiam na obrigação de custear o sistema como um todo”, pois entendiam ser esse “um luxo que só o próspero e feliz Ocidente tinha condições de bancar”.
Obama, que sempre demonstrou apreço público por Lula, e à ocasião afirmou, em almoço de líderes do G20, que ele era “o cara”, o “político mais popular do mundo”, reservou palavras ambíguas ao ex-presidente brasileiro em suas memórias. Depois de considerar que, em visita ao Salão Oval (Casa Branca), em março, Lula causara boa impressão, o ex-presidente americano o descreve: “Ex-líder sindical grisalho e cativante, com uma passagem pela prisão por protestar contra o governo militar, e eleito em 2002, tinha iniciado uma série de reformas pragmáticas que fizeram as taxas de crescimento do Brasil dispararem, ampliando sua classe média e assegurando moradia e educação para milhões de cidadãos mais pobres. Constava também que tinha os escrúpulos de um chefão do Tammany Hall, e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões”.
A referência de Obama a Tammany Hall trata da máquina política democrata que por 200 anos, até meados do século passado, dominou Nova York mesclando benevolência aos imigrantes e corrupção. O autor usou a mesma analogia para descrever Vladimir Putin.
A referência de Obama a Tammany Hall trata da máquina política democrata que por 200 anos, até meados do século passado, dominou Nova York mesclando benevolência aos imigrantes e corrupção. O autor usou a mesma analogia para descrever Vladimir Putin.
O valor das memórias
Ao concluir o segundo mandato presidencial, Barack Obama e a ex-primeira-dama Michelle assinaram um contrato de US$ 65 milhões com a Penguin Random House para a publicação de suas memórias. Em 2018, Michelle lançou Minha história, que registra mais de 8 milhões de exemplares vendidos no Canadá e nos EUA. Já o livro de memórias de Obama, apresentado em lançamento simultâneo em todos os países em 17 de novembro, dois meses antes da posse do democrata Joe Biden – levanta a expectativa de que se torne o mais vendido na história de um ex-presidente: nas primeiras 24 horas, foram comprados 800 mil exemplares nos Estados Unidos e no Canadá.
Obama explica no prefácio da obra que cogitou, inicialmente, escrever em um ano um único volume de 500 páginas. Mas o primeiro volume de Uma terra prometida cresceu, alcançou 751 páginas: perspassa a infância, o início da carreira política, a primeira eleição ao senado estadual, seguida da eleição ao senado nacional. Conta a sua vitória histórica em 2008, estressa a situação de emergência em que recebeu o país, com a “economia devorada pela Grande Recessão”, assim como as dificuldades no governo, que teve muitas de suas iniciativas bloqueadas pelo Congresso, dominado por republicanos, a partir de 2010.
O primeiro volume, que cobre os dois primeiros anos de seu primeiro mandato, se encerra com a caçada a Osama Bin Laden, em maio de 2011. Nele, Obama contextualiza as suas decisões como presidente, detalha a sua linha de pensamento, os obstáculos e restrições que enfrentou em cada momento, deixando claro a racionalidade de suas ações, porque governou como governou.
O primeiro volume, que cobre os dois primeiros anos de seu primeiro mandato, se encerra com a caçada a Osama Bin Laden, em maio de 2011. Nele, Obama contextualiza as suas decisões como presidente, detalha a sua linha de pensamento, os obstáculos e restrições que enfrentou em cada momento, deixando claro a racionalidade de suas ações, porque governou como governou.
Muitos dos episódios mais polêmicos do governo Obama não estão nesse volume e possivelmente serão abordados no segundo. Entre estes estão a espionagem da Agência de Segurança Nacional Americana (ANS) – que segundo denúncia de Edward Snowden montou um esquema de espionagem americano contra líderes de estado, entre os quais Dilma Rousseff, que teve o telefone grampeado. O episódio abriu uma crise diplomática entre os países e Dilma, que à época tinha um jantar marcado com Obama na Casa Branca, desmarcou a visita aos EUA, tendo recebido pessoalmente um pedido de desculpas em Brasília de Joe Biden, então vice-presidente. Há outros temas esperados para o segundo volume, como o fortalecimento do invasivo estado de vigilância permanente sobre cidadãos; o uso de drones para atacar no Afeganistão; e a política de imigração.
As promessas da democracia americana, – que sob Trump, assinala Obama, afastaram o país ainda mais de seus ideais fundadores – percorrem longa tradição de esquecimento na experiência americana. “Está cristalizado nos documentos da fundação do país, que proclamavam que todos os homens eram iguais e ao mesmo tempo consideravam um escravo como três quintos de um homem”, afirma. O autor prossegue invocando a luta de desiguais por igualdade com liberdade, que travaram no passado sufragistas e continuam a travar no presente sindicalistas, carregadores de malas, líderes estudantis, imigrantes, ativistas do movimento LBBTQ, entre tantos outros excluídos da igualdade perante a lei e da igualdade de oportunidades.
Reconhecendo a tentação evocada por muitos de colocar fim ao mito da prevalência de tais ideias dos fundantes da América – que, sob a análise histórica do passado e do presente, apontam antes para a sua subordinação à conquista, a um “sistema de castas raciais” e ao “capitalismo ganancioso” –, Obama avisa que não está pronto para desistir dessa possibilidade. “O veredito ainda está em aberto.”
Por isso, o ex-presidente dedica a obra às futuras gerações, nas quais deposita a sua esperança para a mudança.
Trecho
Lula, na visão de Obama
“Ex-líder sindical grisalho e cativante, com uma passagem pela prisão por protestar contra o governo militar, e eleito em 2002, tinha iniciado uma série de reformas pragmáticas que fizeram as taxas de crescimento do Brasil dispararem, ampliando sua classe média e assegurando moradia e educação para milhões de cidadãos mais pobres. Constava também que tinha os escrúpulos de um chefão do Tammany Hall, e circulavam boatos de clientelismo governamental, negócios por baixo do pano e propinas na casa dos bilhões.”
Uma terra prometida
De Barack Obama
Tradução: Berilo Vargas, Cássio de Arantes Leite, Denise Bottmann e Jorio Dauster
Companhia das Letras
764 páginas
R$ 79,90