Apesar da pandemia, da reclusão forçada e das limitações em todos os setores da vida, livros excelentes foram publicados em 2020. Não pude, porém, ler todos eles: muitos ainda estão em minha estante, à espera de atenção. Por outro lado, li vários publicados em anos anteriores, que não incluí aqui, por ter privilegiado apenas as leituras de obras lançadas este ano. Daí ser esta uma lista incompleta. Como todas as listas, aliás.
A alma perdida, de Olga Tokarczuk (foto) e Joanna Concejo (Todavia)
Nem sempre é preciso escrever muito para dizer tudo o que merece ser dito. É o caso dessa brevíssima história fabulada por Olga Tokarczuk – escritora polonesa que ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2018. Em poucas palavras, ela conta a história de um homem apressado que, por dar mais valor ao trabalho do que à própria vida, acabou por deixar sua alma perdida em algum lugar distante. Atravessado de sentidos que se reinventam a cada leitura, o texto mantém um intrínseco diálogo com as magníficas ilustrações da artista Joanna Concejo, também polonesa. Dessa conjunção de palavra e imagem surge um livro impactante, desses que estimulam a imaginação não apenas das crianças, mas também de quem ainda espera resgatar, para este mundo, a delicadeza perdida.
O que ela sussurra, de Noemi Jaffe
(Companhia das Letras)
Como leitora de todos os livros de Noemi Jaffe, não hesito em dizer que este é o ponto de fulgor de sua sólida trajetória no território das palavras. No romance, encontramos não apenas a ficcionalização engenhosa de uma história verídica, mas também uma narrativa construída por quem conhece a fundo os mecanismos da arte de narrar. Trata-se de um monólogo na voz de Nadejda Mandelstam (1899-1980), viúva do poeta russo Óssip Mandelstam (1891-1938), perseguido, preso e assassinado pelo regime stalinista. Acontecimentos históricos se mesclam aos detalhes da vida cotidiana dessa mulher persistente, que, para manter vivos os poemas do marido em meio aos tempos autoritários de censura e perseguição, dedicou-se a sussurrá-los, noite após noite, ao longo de 25 anos. Conseguiu, assim, alojar 300 poemas na memória, até que pudessem, enfim, ser publicados. Dessa forma, pôde também continuar a existir através deles.
Viagem ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre (Editora 34)
O que o isolamento provocado pela Covid-19 tem a ver com uma obra escrita no século 18 por um francês nascido em Chambéry, Savóia, região que pertencia, naquela época , ao reino da Sardenha? Muito. Especialmente por ser o registro irônico e bem-humorado das inquietações vividas pelo autor, um militar de ascendência nobre, durante os 42 dias em que ficou confinado num quarto de quartel em Turim, como punição por ter duelado com um outro oficial. Interessante que, quando entrei nesse livro inclassificável, que burla não apenas o tédio da quarentena, mas também os gêneros literários, tive a sensação de estar dentro de um texto de Machado de Assis, como se o autor tivesse se inspirado no escritor brasileiro. Mas é exatamente o contrário: foi Machado quem tomou Xavier de Maistre como referência para ir mais longe ainda em seus romances, como o Memórias póstumas de Brás Cubas.
Não pararei de gritar, de Carlos de Assumpção
(Companhia das Letras)
Sob o impacto dos recentes casos de crimes racistas no Brasil e no mundo, percorri este livro de Carlos de Assumpção, paulista de 93 anos e uma das grandes vozes vivas da poesia brasileira. Pude constatar o quanto seus poemas vigorosos possuem uma impressionante atualidade. Organizado pelo professor e poeta Alberto Pucheu, o volume reúne 5 livros do autor, publicados entre 1982 e 2017, além de uma seção de inéditos escritos entre 2018 e 2020. Toda a história da diáspora africana, da escravidão, da violência racial e das dolorosas experiências dos negros brasileiros ao longo dos tempos atravessa os poemas, potencializada por uma musicalidade visceral e bem-urdida. Experiência pessoal e história coletiva se entrelaçam nos poemas, moduladas pela oralidade e atravessadas pela dimensão ritualística da linguagem, feitas de repetições e percussões sonoras.
O enigma das ondas, de Rodrigo Garcia Lopes
(Iluminuras)
Escrever poemas nesta hora do mundo é enfrentar o inferno de uma realidade quase absurda. Escrever sobre a hora do mundo é ainda mais que um ato de coragem: requer uma lucidez crítica que não se renda à mera denúncia e indignação, mas aponte vias criativas de se lidar com os tempos infernais que vivemos. Rodrigo Garcia Lopes, neste livro, vai fundo na sua leitura do presente, com elegância e alta voltagem estética, sem qualquer estridência. Seus poemas, atravessados de densidade conceitual e referências instigantes, vêm atestar a maturidade de um poeta (também exímio tradutor) que, se valendo de múltiplos registros – líricos, irônicos, reflexivos, entre outros –, se consolida, com este seu sétimo livro de poesia, como uma das vozes mais influentes do cenário poético brasileiro atual.
Para meu coração num domingo, de Wislawa
Szymborska (Companhia das Letras)
Szymborska é uma poeta surpreendente. Polonesa, ganhou o Prêmio Nobel em 1996 e, desde a primeira tradução de parte de sua poesia no Brasil, nunca deixou de encantar seus leitores brasileiros. Este é o terceiro volume lançado pela Companhia das Letras, em tradução de Regina Przybycien e Gabriel Borowiski. Inclui 85 poemas extraídos de livros publicados entre 1957 e 2012. Ao mesmo tempo prosaica e reflexiva, sua poesia é elaborada em linguagem simples, irônica e inquietante, explorando o cotidiano mais imediato, a morte, os encontros e os afetos. Cada um de seus poemas é único. Se um macaco, uma taça de vinho e um cinzeiro cinza e o sonho terrível de um poeta são motivos poéticos, ela não deixa também de incursionar nas lembranças, nos sonhos (até mesmo o de uma tartaruga) e, como diz, numa lista “de perguntas/para as quais não espero mais respostas”.
O mundo mutilado, de Prisca Agustoni (Quelônio)
Nascida na Suíça italiana, Prisca Agustoni vive no Brasil há quase 20 anos, onde atua como escritora, tradutora e professora de literatura da UFJR. Possui uma prolífica e plurilíngue obra poética. Esta coletânea recém-lançada pela Quelônio foi uma das surpresas que tive como leitora neste triste 2020. Com um pleno domínio dos recursos poéticos da linguagem, a autora trata, com força e delicadeza, das migrações, dos trânsitos entre línguas e territórios, de refúgios e refugiados, de dor e desejo de sobrevivência num mundo mutilado. O que motivou a escrita dos 53 poemas do livro foi, segundo ela, “a tragédia dos barcos cheios de pessoas fugindo do litoral norte-africano tentando entrar na Europa pelas fronteiras marítimas do Mediterrâneo”. Em torno e a partir dessa calamidade coletiva e de algumas das experiências-limite vivenciadas por essas pessoas individualmente, a poeta mostra o que “punge e nos assombra” nisso tudo.
Segredos, de Domenico Starnone (Todavia)
Talvez a minha maior descoberta de 2020 tenha sido a obra do escritor napolitano Domenico Starnone. Comecei com o romance Laços e só deixei o autor quando, depois de passar por Assombrações, li este – Segredos – , lançado recentemente. Como nos anteriores, o romance esmiúça as ambiguidades e paradoxos das relações familiares e pessoais, num jogo narrativo de diferentes vozes e pontos de vista. O cerne de toda a trama é uma troca de segredos irreveláveis entre um renomado professor e uma aluna brilhante, após se envolverem numa tempestuosa relação amorosa, que acaba por se romper. O homem se casa com outra mulher, tem filhos, mas não se livra da sombra sempre presente da ex, nem dos segredos compartilhados entre eles. Tudo é narrado entre ditos e não ditos, entre luzes e sombras, entre o vivido e o imaginado. Um livro que reafirma a maestria de seu autor.
A vida não é útil, de Ailton Krenak
(Companhia das Letras)
No último dos cinco ensaios que compõem este livro fundamental nestes tempos sinistros, Ailton Krenak defende: “nós estamos aqui para fruir a vida. E quanto mais consciência despertarmos sobre a existência, mais intensamente a experimentamos. Sem autoenganação”. Até chegarmos a essa frase, que não deixa de iluminar o título do volume, percorremos as ideias lúcidas, e por vezes poéticas, do líder, pensador e escritor indígena sobre as falsas utilidades que intoxicam a vida humana. Trata-se de um manifesto contra os cifrões, as grandes corporações, as religiões, tecnologias e ideologias que moldam o que se convencionou chamar de humanidade. Como contraponto, trata-se também de uma defesa dos sonhos, da memória ancestral, da sabedoria inerente à natureza, do direito que todos os seres humanos e não humanos têm a uma existência verdadeira.
Entrelinhas, entremontes – versos contemporâneos mineiros, organizado por Vera Casa Nova, Kaio Carmona e Marcelo Dolabela (Quixote %2b Do)
Esta coletânea de poemas, publicada pela Quixote Do e prevista para ser lançada em março deste ano em Belo Horizonte, teve de se recolher por conta da pandemia. Organizada por poetas de intensa atuação no cenário cultural de Minas Gerais, inclui 61 nomes representativos da poesia mineira contemporânea, de diferentes gerações, tendências e estilos. Sua marca é a heterogeneidade: os poemas são atravessados por múltiplas linhas de força e dicções, evidenciando o quanto nosso território (geográfico e imaginário) continua, até hoje, um espaço vivo para o exercício da palavra poética, em suas diferentes possibilidades de expressão. Dessa maneira, o conjunto se dá a ver como uma constelação de vozes, além de um ato de resistência e sobrevivência neste agora insano mundo.
* Escritora, crítica literária e professora de literatura da UFMG/Unicamp, Maria Esther Maciel é autora de livros como Literatura e animalidade (Civilização Brasileira).