Um idoso alado em estado letárgico que aparece num quintal de gente simples. Um navio fantasma que flutua na memória de um homem. Dois irmãos que navegam em cascatas de luz dentro de casa. Duas crianças que buscam formas inusitadas de se livrar de uma governanta autoritária. Uma mulher que atravessa o deserto em busca do túmulo do filho assassinado. E uma anciã que sonha com a própria morte às vésperas do Natal e recebe a visita de um “vendedor de enterros”.
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Orwell sob olhar brasileiro, com adaptação para história em quadrinhosGolpe no preconceito, com a evolução humana em história em quadrinhosGrilos falantes: na obra de Rachel Cusk, vozes familiares narram a vidaAmigos contam verdades e mentiras sobre o 'personagem' GaboSão elas A sesta da terça-feira, Um senhor muito velho com umas asas enormes, A última viagem do navio fantasma, O verão feliz da senhora Forbes, A luz é como a água e Maria dos Prazeres. O mundo imaginário de Gabo inspirado na realidade é ilustrado pela catalã Carme Solé Vendrell, de 76 anos. É a única artista autorizada pelo escritor a ilustrar sua obra.
O realismo mágico de Gabriel García Márquez encanta muitas gerações. E não foi trazido pelo vento. Como ele mesmo disse em sua autobiografia Viver para contar – e como revelam biógrafos –, sua imaginação fértil também foi semeada pelas histórias contadas por seus avós maternos desde muito pequeno no povoado de Aracataca, sua terra natal na Colômbia caribenha.
“A sesta da terça-feira é o meu melhor conto, surgiu da visão de uma mulher e de uma menina vestidas de preto e com um guarda-chuva preto, andando sob um sol ardente num povoado deserto”, disse ele sobre a história que abre Maria dos Prazeres e outros contos, em entrevista ao também escritor Plinio Apuleuyo Mendonza, transformada no livro O cheiro de goiaba (El olor de la guayaba), lançado em 1982 pela editora Record, pouco antes de ganhar o Nobel de Literatura.
O conto retrata exatamente uma mulher e a filha pequena que atravessam um longo deserto até chegar a um povoado, onde vão até a casa paroquial pedir a chave do cemitério para visitar o túmulo do filho assassinado, “um homem muito bom”, mas que havia sido linchado depois de um roubo num momento de fraqueza. Apuleyo havia feito a seguinte pergunta a GGM: “Qual é, no seu caso, o ponto de partida de um livro?”. E ele respondeu: “Uma imagem visual. Em outros escritores, creio, o livro nasce de uma ideia, de um conceito. Eu sempre parto de uma imagem”. Daí a explicação para a criação do seu conto preferido.
IMAGINAÇÃO SEM FANTASIA
Na entrevista, Gabo diz algo inusitado, considerando-se o predomínio de situações extraordinárias e surreais em suas obras: “Não há nos meus romances uma linha que não esteja baseada na realidade”. É o caso da bela Remedios, que sobe ao céu em Cem anos de solidão. “O fato real? Uma senhora cuja neta tinha fugido de madrugada e que para esconder essa fuga decidiu fazer correr o boato de que ela tinha ido para o céu”, conta o escritor.
“Todo romance devia ser uma transcrição poeta da realidade”, avalia Gabo, que surpreende ao revelar sua aversão a fantasias. “A imaginação é apenas um instrumento de elaboração da realidade. Mas a fonte de criação, afinal de contas, é sempre a realidade. E a fantasia, ou seja, a invenção pura e simples, à Walt Disney, sem nenhum pé na realidade, é a coisa mais detestável que pode haver. As crianças também não gostam da fantasia. Do que gostam, naturalmente, é da imaginação. A diferença entre uma e outra é a mesma entre um ser humano e o boneco de um ventríloquo”, pensava o escritor.
O conto que fecha o livro ilustrado é Maria dos Prazeres. Fala da premonição de uma mulher que está convencida de que morrerá às vésperas do Natal, e para tanto encomenda a visita de um agente funerário, que fica impressionado com o cachorrinho dela, que verte lágrimas de emoção. Tem um final surpreendente com uma visita inesperada que poderá revigorar sua desgostosa.
Mas o melhor conto é Um senhor muito velho com umas asas enormes. Mostra a história do surgimento de um velho com duas imensas asas num quintal de uma família de crianças curiosas. A primeira reflexão que o leitor pode fazer é sobre a tolerância da diferença. García Márquez parece instigar essa ideia. Um idoso debilitado com asas parece ser um anjo caído.
A primeira reação dos moradores é a incredulidade, depois a especulação sobre um marinheiro náufrago. E por fim a intolerância, os maus-tratos, um caso que vai parar no Vaticano em busca de solução sobre criatura tão inusitada: “O padre Gonzaga enfrentou a frivolidade da multidão com fórmulas de inspiração doméstica, enquanto esperava um julgamento final sobre a natureza do cativo. Mas o correio de Roma perdera a noção da urgência”, diz trecho do conto. E o estranho homem alado fica ali à mercê da população. Que fim levará? Sem spoiler, embora seja um conto conhecido.
Um avô e muitas histórias
Gabriel García Márquez morreu em 27 de abril de 2014, mas sua obra é perene porque impressiona e também diverte ao falar de amor, amizade, mistério, poder e morte, sempre tendo como chão e céu a conturbada história da América Latina. Entre 1955, quando publicou sua primeira obra – A revoada (inicialmente traduzida no Brasil como O enterro do diabo) – e 2004, quando escreveu a última – Memória de minhas putas tristes, García Márquez também teve intensa atividade jornalística, inclusive na Europa, e produziu suas duas obras máximas – Cem anos de solidão (1967) e O amor nos tempos do cólera (1985), a primeira inspirada em histórias inusitadas de sua família e a segunda na vida de seus próprios pais para relatar a paixão quase impossível de Florentino Ariza e Fermina Daza após meio século de espera.
Para embasar sua “realidade imaginária”, o escritor sempre teve como referência as histórias contadas pelo seu avô materno, o coronel Nicolás Márquez, e pela avó Tranquilina, com quem morou até os 8 anos de idade, quando o velho morreu.
Luísa, futura mãe de GGM, era considerada uma das moças mais bonitas de Aracataca. Era filha do coronel Nicolás Márquez, “um veterano de guerras, penúrias e esplendores de outros tempos, respeitado em toda a região”, conta o escritor Plinio Apuleyo em Cheiro de goiaba. Um dia, apareceu em Aracataca um telegrafista forasteiro chamado Gabriel Eligio García. Sem dinheiro, ele abandonou os estudos de medicina na Universidade de Cartagena e foi parar no povoado, onde se apaixonou por Luísa.
Quando pediu a mão da moça em casamento, o coronel recusou porque ela “não podia se casar com um telegrafista”. Para evitar o assédio, ele enviou Luísa e a mãe para longas viagens para outros povoados. Mas outros telegrafistas foram cúmplices de Eligio e entregavam as mensagens. De tanta insistência, o coronel acabou cedendo e permitiu o casamento.
Mas quando nasceu o pequeno Gabito, em Aracataca, em 1928, Luísa, carregada de remorso por seu casamento quase à revelia dos pais, deixou o recém-nascido na casa de Tranquilina e Nicolás. Foi assim que o futuro escritor cresceu naquela casa grande, único menino em meio a muitas mulheres, entre tias e primas, todas, segundo ele, com “surpreendentes aptidões premonitórias e, às vezes, tão supersticiosas como as índias goajiras que compunham a criadagem da casa”.
Gabo destaca na entrevista a Apuleyo a importância das mulheres na sua vida. “Também elas encaravam o extraordinário como coisa natural. A tia Francisca Simonsea, por exemplo, que era uma mulher forte e infatigável, sentou-se um dia para tecer a sua mortalha. – Por que está fazendo uma mortalha?, perguntou-lhe Gabriel. – Porque vou morrer, menino, respondeu ela. E com efeito, quando terminou sua mortalha, deitou-se na cama e morreu.”
“Zarolho por causa de um glaucoma, com um apetite sólido, uma pança proeminente e uma vigorosa sexualidade que deixara sua semente em dúzias de filhos naturais por toda a região, o coronel era um liberal de princípios. E os muitos passeios pela região por rios, matas e cachoeiras e as muitas histórias contadas dos tempos da guerra pelo avó povoaram para sempre a memória e os livros de Gabo e fomentaram Cem anos de solidão e outras obras.
TRECHO DO CONTO UM SENHOR MUITO
VELHO COM UMAS ASAS ENORMES
“Ao terceiro dia de chuva haviam matado tantos caranguejos dentro da casa que Pelayo teve que atravessar seu pátio alagado para atirá-los ao mar, pois o menino recém-nascido passara a noite com febre e se pensava que era por causa da peste. O mundo estava triste desde terça-feira. O céu e o mar eram uma só coisa cinza, e as areias da praia, que em março fulguravam como poeira de luz, converteram-se num caldo de lodo e mariscos podres. A luz era tão mansa ao meio-dia, quando Pelayo voltava a casa, depois de haver jogado os caranguejos, que lhe deu trabalho ver o que se mexia no fundo do pátio. Teve que se aproximar muito para descobrir que era um velho, que estava caído de boca para baixo no lodaçal e, apesar de seus grandes esforços, não podia levantar-se, porque o impediam suas enormes asas.
Assustado com aquele pesadelo, Pelayo correu em busca de Elisenda, sua mulher, que estava pondo compressas no menino doente, e a levou até o fundo do pátio. Os dois observaram o corpo caído com um calado estupor. Estava vestido como um trapeiro. Restavam-lhe apenas uns fiapos descorados na cabeça pelada e muito poucos dentes, e sua lastimável condição de bisavô ensopado o havia desprovido de toda grandeza. Suas asas de grande galináceo, sujas e meio depenadas, estavam encalhadas no lodaçal. Tanto o observaram, e com tanta atenção, que Pelayo e Elisenda se repuseram logo do assombro e acabaram por achá-lo familiar.
Então, se atreveram a falar-lhe, e ele lhes respondeu em um dialeto incompreensível, mas com uma boa voz de marinheiro. Foi assim que desprezaram o inconveniente das asas e concluíram que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro abatido pelo temporal. Apesar disso, chamaram para vê-lo uma vizinha, que sabia todas as coisas da vida e da morte, e a ela bastou um só olhar para tirá-los do erro. – É um anjo. Não tenho dúvida de que vinha buscar o menino, mas o coitado está tão velho que a chuva o derrubou’. No dia seguinte, todo mundo sabia que em casa de Pelayo tinham aprisionado um anjo de carne e osso.”
Então, se atreveram a falar-lhe, e ele lhes respondeu em um dialeto incompreensível, mas com uma boa voz de marinheiro. Foi assim que desprezaram o inconveniente das asas e concluíram que era um náufrago solitário de algum navio estrangeiro abatido pelo temporal. Apesar disso, chamaram para vê-lo uma vizinha, que sabia todas as coisas da vida e da morte, e a ela bastou um só olhar para tirá-los do erro. – É um anjo. Não tenho dúvida de que vinha buscar o menino, mas o coitado está tão velho que a chuva o derrubou’. No dia seguinte, todo mundo sabia que em casa de Pelayo tinham aprisionado um anjo de carne e osso.”
MARIA DOS PRAZERES E OUTROS CONTOS
• Gabriel García Márquez
• Ilustrações de Carme Solé Vendrell
• Editora Record
• R$ 55,92 (impresso)
• R$ 52,90 (kindle)