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Estado de Minas HISTÓRIA EM QUADRINHOS

Orwell sob olhar brasileiro, com adaptação para história em quadrinhos

As duas principais obras do escritor britânico ganham adaptações para HQ com traços marcantes de artistas nacionais


29/01/2021 04:00 - atualizado 29/01/2021 08:09

(foto: Fido Nesti )
(foto: Fido Nesti )
Mais de sete décadas depois de lançados, dois clássicos da literatura ocidental ainda jogam sombras sobre o mundo por causa de sua atualidade, e agora em novo formato e versões genuinamente brasileiras. São as adaptações para histórias em quadrinhos (HQs) das principais obras do escritor britânico George Orwell (1903-1950): A revolução dos bichos (Animal farm), lançado em 17 de agosto de 1945, e 1984 (1984), de 8 de junho de 1949.

O mundo distópico de 1984 impressiona hoje em dia por causa da ameaça da volta do fascismo, do estímulo ao ódio e à ignorância e da negação da ciência. O mundo imaginário criado por Orwell se chama Oceânia, tem um governo autocrático dominado pelo Grande Irmão (Big Brother), que controla por meio de câmeras e outras ações a vida de toda a população dentro e fora de casa.

O protagonista é o funcionário público Winston Smith, que ousa desafiar o sistema, mas até amar é proibido, ironicamente, pelo Ministério do Amor, por isso ele é preso e torturado. O paradoxo segue com o Ministério da Paz, que estimula a guerra, e o Ministério da Verdade, que prega as verdades subjetivas.
(foto: Fido Nesti)
(foto: Fido Nesti)

A tragédia literária de Orwell descrita em 1984 acaba de ganhar uma versão nacional pelos traços do ilustrador e quadrinista paulista Fido Nesti, de 49 anos, e que desde os 13 ficou impressionado quando leu a obra, exatamente no ano de 1984. “Esse sempre foi um dos meus livros favoritos, nenhuma adaptação havia sido feita no formato de quadrinhos e, infelizmente, sua história encontra muitos paralelos com nossos dias”, disse Fido ao Estado de Minas.

Convidado pela Companhia das Letras para fazer a HQ, Fido deu um mergulho profundo, de 20 meses, na obra lida 35 anos antes e conseguiu um impressionante e convincente resultado. A predominância da cor cinza nos quadrinhos permeada pelo vermelho como um permanente alarme de vigilância e medo traduzem muito bem o que é a obra de Orwell. O céu que não é azul, mas cinzento, e uma Londres com prédios e arquitetura igualmente sombria, monolítica e brutalizada sufoca Winston e os demais personagens e arrebatam o leitor ao longo de 243 páginas.

Fido Nesti reproduz bons diálogos da Novafala da obra original, como teletela, pensamento-crime, duplipensamento (transformar mentira em verdade) e do horror sempre à espreita. “Diga-me, quando é que vão me matar?”, pergunta Winston ao carrasco. E ouve como resposta: “Pode demorar, você é um caso difícil. Mas não perca as esperanças. Mais cedo ou mais tarde, todos se curam”. E o que não pode ser dito é representado nas imagens. Os quadros de tamanho proporcional, em sua maioria cinzentos, também dão uma impressão de rotina e alienação na vida de Winston, bem no contexto da ideia de Orwell.

A caracterização que Fido faz do Grande Irmão, que tudo vê, onipresente e onisciente, como um deus maligno, está ali o tempo todo assombrando com seu indefectível bigode e olhar penetrante, leva a uma analogia direta ao maior genocida da história da humanidade. A vigilância está em todo lugar, patrulha até o pensamento. E 2021 chega a parecer mais sombrio do que 1984, porque não existe apenas um Grande Irmão, são muitos. Eles se manifestam pelas aparentemente amistosas redes sociais. “Existem alguns Grandes e poderosos Irmãos espalhados pelo mundo e aos poucos fomos nos acostumando à sua eterna vigilância e escrutínio”, alerta Fido.
 
1984
• George Orwell
• Adaptação de Fido Nesti
• Companhia das letras
• 223 páginas
• R$ 59,90 (impresso)
• R$ 39,90 (kindle) 

(foto: Renato Parada)
(foto: Renato Parada)

ENTREVISTA/FIDO NESTI

“Existem Grandes Irmãos espalhados pelo mundo”

Por que fazer a HQ de 1984? Seria pela atualidade da obra de George Orwell, mesmo sete décadas depois de publicada? Foi um processo de gestação desde que você leu o livro, em 1984?
Foi um convite do meu editor. Eu já estava trabalhando em outro projeto quando recebi a notícia. Eu não precisei pensar muito para aceitar o desafio: esse sempre foi um dos meus livros favoritos, nenhuma adaptação havia sido feita no formato de quadrinhos e, infelizmente, sua história encontra muitos paralelos com nossos dias. A primeira vez que li a obra foi no ano de 1984, ainda nos finalmentes da ditadura militar. Nunca poderia imaginar, depois de tantas décadas, estar vivendo tamanho retrocesso, e ao mesmo tempo estar revisitando o texto do Orwell dessa maneira.

Como foi o processo de produção da HQ? 
Levou quase dois anos e trabalhei sozinho. Tudo começa com várias leituras, anotações, scripts e pesquisas para ir pensando em cenários, vestimentas e etc. Depois de definir os personagens e roteiros para cada página, começa a etapa do lápis, seguida do nanquim, escaneamento e colorização no computador. Por fim, há o desenvolvimento da fonte e encaixe do texto.

Quem é o Grande Irmão hoje que ameaça a democracia? As redes sociais? Os algoritmos? Google?
Parece que nos transformamos em meros números, dados, parte de uma eterna estatística. Empurrados para consumir isso e aquilo, forçados a ler esta ou aquela notícia, moldados para votar neste ou naquele candidato. Eu acho que existem alguns Grandes e poderosos Irmãos espalhados pelo mundo e aos poucos fomos nos acostumando à sua eterna vigilância e escrutínio.

A humanidade vai conseguir escapar de sua própria criação, a inteligência artificial, ou vai ser absorvida por ela? Seremos no futuro robôs dos algoritmos?
Não consigo imaginar uma saída fácil para isso... A revolução digital nos trouxe inovações surpreendentes e muito bem-vindas, mas é preciso pensar nos riscos da inteligência artificial. Poderiam elas avançar a tal ponto onde os humanos perderiam o seu controle?

As histórias em quadrinhos popularizaram e democratizam o conhecimento? No caso de Geor- ge Orwell, um clássico da literatura mundial. 
Vejo as adaptações como uma forma de atingir um público ainda maior, no caso de obras já consagradas. E em tempos em que a leitura de um livro é fortemente disputada com o que se passa dentro dos celulares e outros meios digitais, acho que é uma boa maneira de apresentar um clássico. Mas considero uma porta de entrada e sempre recomendo que leiam também o original.


QUEM FOI GEORGE ORWELL

Eric Arthur Blair (1903-1950) nasceu na Índia britânica e viveu apenas 46 anos, mas teve vida intensa. Foi integrante da Polícia Imperial Indiana na antiga Birmânia, sob as ordens do Império Britânico, se decepcionou com o autoritarismo, mudou-se para Paris para se dedicar à literatura, mas passou fome, foi embora para Londres, onde teve atividades diversas, inclusive como jornalista e anarquista, se envolveu com classes operárias, que despertaram seu humanismo, e condenou o stalinismo.

Alistou-se para a Guerra Civil Espanhola e acabou baleado. Tentou se alistar também para combater o nazismo na Segunda Guerra Mundial, mas sua saúde não permitiu. Voltou a trabalhar com jornalismo, como correspondente em vários países, até a sua morte por tuberculose, em 21 de janeiro de 1950. Com o pseudônimo George Orwell, escreveu obras importantes sobre os desvarios de um mundo sempre em guerra. As principais são 1984 e A revolução dos bichos.

Revolução impressionista

Uma obra de arte impressionista em quadrinhos. Cada cena, cada quadro é literalmente uma pintura. Essa é a impressão, sem trocadilho, que se tem da adaptação para HQ de A revolução dos bichos, dlo ilustrador e quadrinista gaúcho Odyr Bernardi, de 53 anos. A obra de George Orwell conta a história dos habitantes da Granja Solar, onde os animais são submetidos a maus-tratos pelo proprietário beberrão Jones. Cansados de tanta exploração e insuflados por Major, um porco velho, eles se rebelam para implantar o “animalismo”, um sistema cooperativo e igualitário de poder com o lema “Quatro pernas bom, duas pernas ruim”.

Mas o poder corrompe e o que era para ser uma democracia logo também se transforma em ditadura, quando os porcos, liderados pelo cachaço Napoleão, considerados mais inteligentes, começam a usufruir de privilégios e adotam um regime de opressão tendo os cães dizimadores de humanos e outros bichos que resistem ao novo sistema de privilégios.

Odyr faz uma adaptação em tinta acrílica que literalmente enche os olhos em cada página dessa distopia rural. Parece pintura do impressionismo – o movimento que surgiu na pintura francesa na segunda metade do século 19, que rompeu com o academicismo e o realismo com efeitos de luz e movimento, eliminação de contornos e percepção muito subjetiva. É como se cada cena tivesse vida própria e se encerrasse em sua própria imagem e em seu próprio diálogo.

Assim como 1984, essa obra de Orwell também segue atualíssima, tantas décadas depois de lançada. “O ressurgimento do fascismo foi só uma coincidência. Mas os temas do livro são atemporais, como demonstra o fato de o livro ser um sucesso há 70 e tantos anos”, afirmou Odyr ao Estado de Minas. Coincidência ou não, o horror da ditadura está sempre à espreita com o neofascismo e o poder, inúmeros são os exemplos históricos, realmente tende a corromper.

A revolução dos bichos
• George Orwell
• Adaptação de Odyr
• Companhia das letras
• 175 páginas
• R$ 49,90 (impresso)
• R$ 34,94 (kindle)

(foto: Odyr Bernardi)
(foto: Odyr Bernardi)

ENTREVISTA/ODYR

“Temas do livro são atemporais”

Como surgiu a ideia de transformar A revolução dos bichos em HQ? Pela atualidade do tema, como a ameaça de ressurgimento do fascismo?
Foi uma iniciativa da própria Companhia das Letras, que tem os direitos do George Orwell no Brasil. O ressurgimento do fascismo foi só uma coincidência. Mas os temas do livro são atemporais, como demonstra o fato de o livro ser um sucesso há 70 e tantos anos.

Seu trabalho vai além de uma HQ. Cada página parece uma obra de arte. Como foi esse processo de produção com tinta acrílica? Em quanto tempo produziu as 175 páginas?
HQs pintadas não chegam a ser uma novidade desde que os métodos de impressão se sofisticaram. De uma certa maneira, não é mais difícil nem mais fácil que com o tradicional nanquim. Qualquer técnica que você use, o desenho e a narrativa têm que se defender e funcionar. Talvez uma vantagem da pintura é trazer algo da realidade do mundo, a textura, as cores, a luz de uma forma mais literal que a síntese do desenho. Levei um pouco menos que um ano.

Você tinha em mente pinturas impressionistas quando fez A revolução dos bichos ou foi uma manifestação do seu inconsciente? 
Eu certamente aprecio os impressionistas e acho que meu trabalho tem algo do sentido original da palavra: alguém que não trabalha em um registro de representação realista, mas tenta criar uma impressão. Meu favorito seria (Claude) Monet.

As HQs popularizaram e democratizam o conhecimento? No caso, um clássico da literatura mundial.
Sim, existe toda uma tendência de adaptação dos clássicos, os quadrinhos são uma forma de acesso mais aberta, que têm atrativos mais imediatos para leitores mais jovens ou relutantes. Nunca esgotam ou substituem o original, mas idealmente somam e trazem algo de novo, além de levar talvez o leitor até a obra original.

O poder corrompe? Afinal, os bichos fizeram uma revolução para se livrar de uma tirania e foram vítimas de outra.
Sim, infelizmente, a história e os jornais nos mostram que sim.


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