Sérgio Karam
Especial para o Estado de Minas
Lembro-me de que li com grande prazer o romance La habitación alemana, da argentina Carla Maliandi, lançado em 2017 pela Editorial Mardulce, de Buenos Aires. Lembro-me também de que imediatamente pensei: “Como eu queria traduzir este livro!”. Imaginava como ficariam determinadas frases em português, como poderia solucionar alguns dos problemas que sempre aparecem na hora de traduzir um texto, qualquer texto. Eu tinha certeza de que aquele era um excelente romance, e comecei a sugerir a publicação para alguns amigos editores.
Eis que surge o Nathan Magalhães, da Editora Moinhos, de Belo Horizonte, que também já tinha ouvido falar do livro, e um belo dia me oferece a tradução. E assim foi como, em meio a essa maldita pandemia, surgiu em português O quarto alemão, traduzido em Belo Horizonte num tempo bastante curto, arrastado que fui por essa narrativa tão ágil e tão bonita, conduzida magistralmente pela Carla Maliandi. A entrevista que segue foi feita por WhatsApp, com as respostas enviadas por áudio pela autora, o que me deu ainda o prazer de traduzir um pouco mais das suas palavras.
Você escreveu muitos textos para teatro. Como foi escrever um romance? Foi um processo muito diferente?
Escrevi umas sete ou oito peças de teatro que já foram montadas e outras que ainda não. O processo de escrever para teatro e de escrever narrativa se deu para mim de maneira bastante natural. Quando comecei a escrever O quarto alemão não sabia muito bem que forma teria o texto, mas o próprio texto me demonstrou que aquela não era uma obra de teatro, mas um romance, o primeiro que escrevi. Com relação às diferenças e às coincidências entre um e outro tipo de escrita, creio que escrever para teatro faz com que a gente tenha uma unidade de espaço e de tempo, o que também é interessante para se pensar em relação à narrativa. E, por outro lado, permite a você pensar nas vozes, na materialidade das vozes dos personagens com bastante clareza.
Não há como deixar de pensar que O quarto alemão é um romance autobiográfico. As lembranças que possivelmente serviram de base ao romance dificultaram ou ajudaram na hora de criar os personagens?
Claro que este é um romance que trabalha com várias questões autobiográficas, ainda que não seja um romance estritamente autobiográfico. Trabalho com várias lembranças de minha vida pessoal, mas também com coisas totalmente imaginadas. Acho que as lembranças e a imaginação são coisas muito parecidas, que quando imaginamos algo realizamos uma operação parecida à que fazemos quando recordamos, e que nós que escrevemos ficção estamos bastante acostumados a este tipo de operação mental, de tornar vivas as imagens. Mas é claro que há muitas lembranças de coisas que vivi que me foram úteis para escrever o romance.
Que percepção você tem da relação entre as literaturas argentina e brasileira? Você costuma ler autores brasileiros contemporâneos?
Minha relação com a literatura brasileira contemporânea não é muito forte, gostaria que fosse mais, que estivesse mais vinculada a ela. Tomara que quando a pandemia termine a gente possa viajar ou, de alguma maneira, estar mais vinculada, ainda que não viaje. Conheci alguns autores, contemporâneos meus, como Paloma Vidal e Julián Fuks, li seus livros e os dois me pareceram muito interessantes. Sei que os dois nasceram na Argentina e cresceram no Brasil, e acabei conhecendo os dois em Buenos Aires. Me parece que agora tenho uma dívida de leitura pendente em relação aos novos romances e à nova narrativa que está sendo produzida no Brasil.
Seu romance já foi traduzido para o alemão, o inglês e o francês, o que o faz circular na Europa. Quais são suas expectativas em relação ao fato de ele agora também estar disponível numa tradução brasileira?
O Brasil é um dos países mais bonitos que conheço e gostaria de conhecê-lo muito mais, e quando soube que meu romance ia ser traduzido aí é claro que fiquei muito feliz. Com as outras traduções também, mas com o Brasil foi algo muito particular por causa de um interesse e uma proximidade muito maiores em relação aos leitores. Tomara que possamos fazer algum intercâmbio e que o livro possa ser lido aí o máximo possível, e que gostem dele. Não saberia muito mais o que esperar além disso.
Qual o seu gênero favorito de leitura: narrativa, poesia, dramaturgia?
Embora eu venha da dramaturgia, sempre li muitos romances e acho que o romance dá um outro tipo de liberdade muito interessante como escritora, mas como leitora não tenho um gênero favorito. A poesia é um gênero ao qual sempre trato de voltar, como leitora. Para mim não existe um gênero favorito, eu gosto é de encontrar em meu trabalho e em minhas leituras as intrusões de uma coisa na outra, ver como a narrativa aparece no teatro e vice-versa. Nunca me ocorreu preferir um gênero ao outro em termos de leitura.
Como escritora, quais são os seus projetos imediatos? Você está escrevendo um novo romance?
Neste momento, estou terminando um novo romance que comecei a escrever há quase quatro anos, quando entreguei O quarto alemão. Acho que é um romance bem diferente deste, embora conserve algo do ritmo narrativo, e ele tem me dado muito trabalho. Além disso, também estou terminando uma obra de teatro e juntando e corrigindo uns contos que deverão ser publicados este ano junto com o novo romance, que ainda não tem título, mas que logo terá.
O quarto alemão
• Carla Maliandi
• Tradução de Sérgio Karam
• Editora Moinhos
• 140 páginas
• R$ 50
• Pode ser comprado pelo site editoramoinhos.com.br
Trecho
“Um exílio feliz, um exílio do qual não se quer voltar, não é um exílio. E, no entanto, voltou a Buenos Aires como quem volta para casa e nunca mais pisou em Heidelberg, tampouco eu, até agora, quando já se passaram trinta anos e já sou mais velha do que ela era quando olhava por estas mesmas janelas. E eu, o que tenho que fazer? Voltar a Buenos Aires, encerrar estas férias impulsivas e luxuosas, retomar o trabalho, alugar um apartamento barato e ter o meu filho. Filho de quem?, penso. Meu, claro. Umas nuvens cinzentas tapam o sol. Ponho minha jaqueta e procuro no bolso umas moedas para deixar sobre a mesa. Não, ainda não vou voltar, não ainda, penso, e suspiro aliviada.”
*Sérgio Karam é tradutor e doutorando em estudos de literatura na UFRGS
Deixa o passado, mas não acede a um futuro nítido, mesmo com um bebê na barriga. Lida, nesse meio tempo, com uma cidade que redescobre, com gente de culturas diversas, incluindo o suicídio de uma nova amiga japonesa, quartos e pertences impessoais e alheios, lares alheios e a incipiência de amores ambíguos e não declarados. Visita castelos alemães, sem saber ao certo se terá para onde voltar, sequer um quarto alugado. Não tem muito dinheiro, não faz questão de erigir um futuro próximo e tem medo de avançar ou de recuar. Fala entrelínguas, comunicando-se ora em seu castelhano rioplatense, ora em um alemão que recobra dos tempos de criança. Sente parcas saudades de casa, mas nem chega a se esforçar para voltar ao seio familiar. Sequer a família sabe de sua gravidez, que ela vive sem grandes romantismos, mas também sem relutância.
A narrativa não causa grandes sobressaltos e nem apresenta viradas emocionantes, mas é suficientemente intensa para que nos sintamos acompanhantes eventuais dessa mulher em trânsito e cheia de uma coragem incômoda. Como ter um filho sem pai, com estranhos, num não-lugar? Há mais elementos nessa história, mas que ficarão para os leitores e leitoras mais curiosos. Vez ou outra, certo clima de suspense é construído, em especial em relação a algumas personagens. E o final, sim, pode causar aflição ou alguma vertigem, se imaginamos a cena e seus sons, seus rangidos, que logo nos levarão às últimas linhas, que dão a este romance uma poética característica circular: começamos e terminamos a ver estrelas.
Romance promove uma viagem, também psicológica, da Argentina à Alemanha
Ana Elisa Ribeiro
Especial para o EM
O quarto alemão é o instigante título do primeiro romance da escritora, dramaturga e diretora argentina Carla Maliandi, traduzido no Brasil por Sérgio Karam para a editora cearense-mineira Moinhos, que opera em Belo Horizonte há vários anos e tem construído um catálogo relevante de obras latino-americanas contemporâneas. Na Argentina, o livro saiu em 2017 pela pequena Mardulce e, em seguida, teve traduções ao inglês, francês e alemão. Não causa estranhamento que tenha interessado a tanta gente. Trata-se de uma viagem psicológica e literal, em primeira pessoa, de uma jovem mulher, que foge de seus problemas em Buenos Aires e busca seu passado e seu futuro na pequena cidade de Heidelberg, na Alemanha.
Nas primeiras páginas, já sabemos que viajaremos no tempoespaço com uma mulher portenha que se separa, trai o quase ex-marido e pretende pensar na vida, ou justamente não pensar, pegando um avião para o interior da Alemanha, onde vive, por um breve período, em uma pensão de estudantes universitários. Nessa pequena e encantadora cidade, uma das poucas poupadas dos bombardeios da Segunda Grande Guerra, ela retoma lembranças de infância, por ter ali vivido com os pais e alguns amigos exilados durante a ditadura argentina. Refúgio perfeito, a salvo até mesmo das guerras?
Na pensão onde se hospeda, fingindo-se de estudante, conhece pessoas estranhas, de vários países, faz algumas amizades superficiais e encontra um conterrâneo argentino, da região de Tucumán, que é quem, afinal, a acompanhará nessa pequena saga em busca de si e de um futuro que não chega a nascer. A protagonista descobre-se grávida em terra estranha, de um filho cujo pai ela mesma tem dúvidas sobre quem seja. Está junto de pessoas que não conhece, em uma hospedagem provisória e transitória, com amigos recentes e conexões frouxas com uma vida que ainda não tem.
Deixa o passado, mas não acede a um futuro nítido, mesmo com um bebê na barriga. Lida, nesse meio tempo, com uma cidade que redescobre, com gente de culturas diversas, incluindo o suicídio de uma nova amiga japonesa, quartos e pertences impessoais e alheios, lares alheios e a incipiência de amores ambíguos e não declarados. Visita castelos alemães, sem saber ao certo se terá para onde voltar, sequer um quarto alugado. Não tem muito dinheiro, não faz questão de erigir um futuro próximo e tem medo de avançar ou de recuar. Fala entrelínguas, comunicando-se ora em seu castelhano rioplatense, ora em um alemão que recobra dos tempos de criança. Sente parcas saudades de casa, mas nem chega a se esforçar para voltar ao seio familiar. Sequer a família sabe de sua gravidez, que ela vive sem grandes romantismos, mas também sem relutância.
A narrativa não causa grandes sobressaltos e nem apresenta viradas emocionantes, mas é suficientemente intensa para que nos sintamos acompanhantes eventuais dessa mulher em trânsito e cheia de uma coragem incômoda. Como ter um filho sem pai, com estranhos, num não-lugar? Há mais elementos nessa história, mas que ficarão para os leitores e leitoras mais curiosos. Vez ou outra, certo clima de suspense é construído, em especial em relação a algumas personagens. E o final, sim, pode causar aflição ou alguma vertigem, se imaginamos a cena e seus sons, seus rangidos, que logo nos levarão às últimas linhas, que dão a este romance uma poética característica circular: começamos e terminamos a ver estrelas.
Ana Elisa Ribeiro é professora do CEFET-MG e escritora