“A morte é limpa./ Cruel mas limpa.” Os versos que abrem o poema Restauradora dizem muito de Henriqueta Lisboa (1901-1985). A morte se apresenta como tema central na paisagem clara de sua literatura. Organizada pelos professores e ensaístas Reinaldo Marques e Wander Melo Miranda para celebrar os 120 anos de nascimento da escritora, a Obra completa da poeta mineira aparece em três estonteantes volumes: Poesia, Prosa e Poesia traduzida. É lançamento para soltar foguetes e ter na estante, sem receio de exageros.
O trabalho de compilação de toda a obra começou em 1989, com a chegada do arquivo da escritora ao Acervo de Escritores Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais. De lá pra cá, a Editora UFMG publicou, em 2001, Henriqueta Lisboa: poesia traduzida e, em 2003, os organizadores foram convidados por Abigail Lisboa de Oliveira Carvalho, sobrinha e responsável pelo espólio, a cuidar da edição da obra completa. Com a morte de Abigail, em 2006, o trabalho foi interrompido.
Leia Mais
Nasci para cantarModernismo contemporâneoJosé Falero conquista crítica e público com ''Os supridores''Cantos de incontáveis manhãs em nova obra de Simone Andrade NevesSituação dos privilegiados no Brasil é como no Antigo Regime, diz GiannettiCosmopolita mineira
Reinaldo Marques a aproxima da tradição dos escritores críticos, sempre em esforço permanente de atualização teórica. “A avaliação do papel dela e da importância da obra nunca foi devidamente feita. Com seu perfil recatado, fez relevante trabalho de mediação cultural, principalmente como tradutora e articulando uma rede de escritoras latinoamericanas. Quer dizer, Henriqueta ficou presa entre as montanhas e, ao mesmo tempo, aberta para o mundo.”
Versos curtos, prosa de grande sensibilidade teórico-crítica. “Delicadeza é a palavra que resume tudo”, afirma Melo Miranda. Nas leituras que faz de Guimarães Rosa, por exemplo, salta aos olhos a personalidade ímpar do pensamento desta “simbolista moderna”, se alguma eventual definição lhe couber. Na personagem Miguilim, ela nota a persistência da infância “pela intensidade com que se projetam os estados de alma do autor, pela animação de suas imagens, sutileza de sugestões, justeza de expressão”.
O sutil e o justo que lhe eram próprios, inclusive na tradução. Para Marques, o trabalho intelectual “extremamente profícuo”de uma “simples e dedicada professora mineira”desvenda uma “leitora e tradutora refinada de poesia”. Traduziu poemas da amiga Gabriela Mistral, do italiano Dante Alighieri e de muitos outros. Nas línguas espanhola e italiana, caminhou com sua tímida desenvoltura, tão fiel ao original quanto precisa na aposta por uma linguagem límpida.
Os principais diálogos literários ocorrem entre o simbolismo de Alphonsus de Guimaraens e o modernismo de Mário de Andrade. Foi muito próxima de Cecília Meireles. Os poetas hispano-americanos e os clássicos lhe dão o restante do tapete formador de uma poesia difícil de classificar, de encaixar. “A princípio, pode parecer comum”, diz Wander Melo Miranda. “Mas não. Ela tem uma sensibilidade muito grande, feita de insights que levam a uma poesia única, refinada, em que se destacam o tema da morte e a relação com a natureza.”
Os versos de Sofrimento, do livro Flor da morte (1949), mostram a dor provocada pela morte. Os sentidos permanecem no desaparecimento do físico, do que é palpável: o corpo, o instrumento, a alavanca, a obra. Resta a correspondência do que se dá a sentir: o espírito, a música, o impulso, o remate. A estrela desaparece para dar lugar à luz. Apesar de muito quando comparado ao pouco “que se perdeu”, nada do que fica serve para aplacar a falta. A pedra de sal, por princípio e fim, se desfaz no mar da existência.
O poema tem a capacidade de vislumbrar, em síntese expressiva, o que é a literatura de Henriqueta Lisboa. O imortal (por isso, maravilhoso) resiste e insiste em meio ao incompreensível silêncio deixado pelo que antes era carne. A poesia preenche esse meio, esse lugar. De pouco adianta, porque o ser humano e a natureza, entremeados por sua fragilidade, estão fadados ao fracasso. “Sombra se desdobra/ em sombra/ a cada vencido/ passo”, escreve em Perspectiva.
A morte poética em ar, fogo, terra e água transforma-se num olhar bastante didático nos textos de reflexão sobre obras e autores. O volume da Prosa é, de fato, o surpreendente que desfaz a tristeza anterior. A professora e crítica literária Henriqueta, elegantes cabelos curtos à moda antiga, era organizada e atualizada. Suas aulas escritas de literatura brasileira e hispano-americana têm esse delicioso prazer do exercício cultural dado por genuíno amor à literatura.
E não é disso que estamos precisando? Não a leitura raivosa do que um texto poderia ter sido, do que um texto deveria ter dito. Não o olhar exclusivamente sociológico sobre a ficção literária. Encontrar ou reencontrar Henriqueta Lisboa é deixar-se vacinar contra os sabichões políticos que pretendem saber tudo desde sempre, os que cercam a literatura de preconceitos fingindo que não. Aqui o mistério é mais profundo e ambíguo, mais língua e arrepio.
Diante desta obra completa e correta, o leitor se torna capaz de levar aquela estátua na Savassi para um passeio noturno de mãos dadas com o que naturalmente somos e, em breve, deixamos de ser. Porque a arte é assim: “Confusão extrema/ de êxtases, sarcasmos,/ e ranger de dentes”. E vem com a simplicidade dada na superfície, para que o leitor possa compreender o incerto. “Pago caro o orgulho/ de querer perfeita/ minha vida efêmera.”
HENRIQUETA LISBOA: OBRA COMPLETA. Três volumes: Poesia, Prosa e Poesia traduzida (Editora Peirópolis), R$ 360. Ebook: R$ 33 (cada volume). editorapeiropolis.com.br
SOFRIMENTO
No oceano integra-se (bem pouco)
uma pedra de sal.
Ficou o espírito,
mais livre que o corpo.
A música,
muito além do instrumento.
Da alavanca,
sua razão de ser: o impulso.
Ficou o selo, o remate
da obra.
A luz que sobrevive à estrela
e é sua coroa.
O maravilhoso. O imortal.
O que se perdeu foi pouco.
Mas era o que eu mais amava.
A FACE LÍVIDA
Não a face dos mortos.
Nem a face
dos que não coram
aos açoites da vida.
Porém a face
lívida
dos que resistem
pelo espanto.
Não a face da madrugada
na exaustão
dos soluços.
Mas a face do lago
sem reflexos
quando as águas entranha.
Não a face da estátua
fria de lua e zéfiro.
Mas a face do círio
que se consome
lívida
no ardor.
Tradução de um soneto de Dante Alighieri
Tão discreta e gentil se me afigura
ao saudar, quando passa, a minha amada,
que a língua não consegue dizer nada
e a fitá-la, o olhar não se aventura.
Ela se vai sentindo-se louvada
envolta de modéstia nobre e pura.
Parece que do céu essa criatura
para atestar milagre foi baixada.
Ao que a contempla infunde tal prazer,
pelos olhos transmite tal dulçor,
que só quem prova pode compreender.
E assim, parece, o seu semblante inspira
um delicado espírito de amor
que vai dizendo ao coração: suspira.
Sobre a poesia de Cecília Meireles
“O que distingue, particularmente, a poesia de Cecília é a luminosa simplicidade com que ela se utiliza do mistério, em cuja atmosfera respira. Habituada ao mistério, fonte de riqueza artística, não assume atitudes estranhas quando a ele se refere. Mostra-se original porque é fundamentalmente original, sem preciosismo. Valoriza as palavras quotidianas, para que elas digam o indizível. Com um número restrito de palavras, realiza o milagre. Sem desdenhar da graça do verso, a que empresta um ritmo todo seu, é surpreendente de precisão. A sobriedade de atitudes, a dignidade dos silêncios repentinos, o desapego da matéria inerente a essa poesia, lembram, por afinidade, o ascetismo oriental. Poema dos poemas desvendou uma intensa vocação mística à semelhança dos sacerdotes budistas. A ternura impregnada de pudor que se nota neste livro tecido de símbolos foi-se concentrando cada vez mais. A experiência da vida tornou maior, em Cecília, aquele inato inconformismo. À própria rebeldia opôs, no entanto, uma serenidade lúcida. O horror à vulgaridade auxiliou-a nessa intrépida resistência a todas as solicitações do tempo. A sua resposta à vida, em desafio aos dias que correm, de míseros interesses, é a cidadela em que recolhe os seres sofredores, os pequeninos doentes, e aqueles mendigos estoicos de sua notável ‘estirpe’. É a sua mensagem lírica.”
Doutor em Estudos Literários pela UFMG e autor de A reinvenção do escritor (Editora UFMG), Sérgio de Sá é professor na Universidade de Brasília (UnB).
Doutor em Estudos Literários pela UFMG e autor de A reinvenção do escritor (Editora UFMG), Sérgio de Sá é professor na Universidade de Brasília (UnB).