Jornal Estado de Minas

POETISA

Silêncios de Emily Dickinson, em edição que procura ser fiel aos originais

Foi uma sensação de déjà vu que levou o pesquisador brasileiro Adalberto Müller até Emily Dickinson (1830-1886). Em 2013, enquanto passava um ano na Universidade de Yale para pesquisar a obra do cineasta Orson Welles, Müller foi visitar a casa onde morou uma das poetas mais misteriosas e conhecidas da literatura americana.



O sentimento de familiaridade com o universo de Dickinson se instalou e o pesquisador começou a traduzir alguns poemas. Dois anos depois, apresentava à Emily Dickinson Society um projeto para traduzir a obra completa da autora. O resultado está num primeiro volume bilíngue de 884 páginas publicado pela editora UnB, em parceria com a editora Unicamp.

Dickinson, segundo Müller, seria a única autora que nunca publicou um livro e, por isso, editar a obra completa foi um desafio. Pouco se sabe sobre como a poeta gostaria que os versos fossem apresentados e, por isso, foi preciso optar por uma organização particular. Dickinson reunia seus escritos em fascículos. Morta em maio de 1886, ela chegou a publicar 10 poemas em jornais e revistas, mas nunca foi além dos periódicos. “É como se toda a obra dela fosse um grande manuscrito à espera de um editor. Ao longo de mais de 100 anos, várias edições foram propostas e todas elas rasgavam os manuscritos da Emily Dickinson”, explica Müller.

Foi graças à pesquisa de Cristianne Miller, que assina o prefácio de “Poesia completa – Volume I: Os fascículos”, que Müller decidiu ser o mais fiel possível aos originais da poeta. “O que a Cristianne Miller fez foi recompor os manuscritos na ordem em que ela tinha deixado, porque não se sabe como ela editaria isso. Aí que entram os fascículos.



Muita gente defende que ela fazia pré-editando os livros. Ela queria muito ser publicada e mostrou os poemas para as grandes editoras. Não aconteceu porque ela era ilegível para o mundo contemporâneo dela. As pessoas não só não entendiam como não aceitavam”, conta Müller, que é ex-professor da Universidade de Brasília (UnB) e hoje dá aulas na Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro.

Ritmo e elipses

Uma visita à casa de Dickinson despertou em Adalberto Müller a vontade de traduzir a obra (foto: Dennis Vandal)

Para o tradutor, o maior desafio da obra de Dickinson está na compreensão dos versos. A escrita ra- dical, a experimentação, o ritmo, as elipses e uma certa instabilidade podem deixar os leitores com o pé atrás, embora, na maioria das vezes, esses sejam também os grandes atrativos da obra da americana. “Até hoje leio os poemas e não tenho certeza do que estou lendo. Depois de ter traduzido tudo, não tenho certeza. Ela cria uma zona de indeterminação semântica que tem a ver com o modo como ela vai criando elipses, esses vazios de significação que geram uma espécie de um abismo”, explica Müller. “E me interessou muito pensar em como posso traduzir esses vazios, como fazer uma tradução que não seja uma explicação do poema, mas que também crie esses vazios.”

O Brasil e o paraíso

Traduzir os silêncios da poesia de Dickinson, nos EuA, foi um dos desafios para Adalberto Müller (foto: Manuel Müller/reprodução)

Entre os poemas traduzidos estão quatro sobre o Brasil. Curiosamente, o país apareceu algumas vezes na obra da poeta, sempre ligado à ideia de paraíso. Todos foram traduzidos e publicados em compilações, mas, na maioria das vezes, apareciam separados. “Já existia uma certa produção crítica que associava o Brasil a uma ideia de paraíso na obra da Emily Dickinson”, avisa Müller. “O que fiz foi conectar esses poemas: tentei mostrar que existe uma certa ordem e a ideia de que o Brasil aparece sempre como uma coisa inalcançável, inatingível.”





Emily Dickinson nasceu em Amherst (Massachussets), em 1830, num tempo em que mulheres não tinham a liberdade para escrever. Contemporânea das irmãs Brontë, cujos romances entraram para o cânone da literatura ocidental, fazia parte de um grupo de mulheres que desafiava a convenção social. Ao contrário das Brontë, que chegaram a publicar seus romances em vida e com pseudônimos masculinos, Dickinson não conseguiu ver seus livros publicados, mas se tornou um ícone da poesia ame- ricana.

Dona de uma ironia muito moderna, que nada tem de risível e aposta na insegurança, no não dito, nos silêncios, ela integra uma linhagem de poetas que se sustentam na economia. Os versos curtos, com poemas de duas ou quatro linhas, intrigam e plantam interrogações. “Emily Dickinson é como uma jardineira, ela vai cortar as coisas, vai criar um jardim que vai chegar ao bonsai, com poemas de um verso, dois versos”, explica Adalberto Müller, que já tem o segundo volume da obra completa pronto para ser lançado.

“Fascículo quinze”

Me entreguei para Ele -
E O tomei, em troca 
Solene contrato da Vida
Ratifiquei, na hora 

Pode que o Dote O desaponte -
Eu mesma, parco valor
Que a Comprador suspeita,
A Posse Diária - de Amor

Deprecia a Visão -
Mas até que o Mercante adquira -
Favas - Ilhas de Especiarias -
Do Cargueiro subtil - mentira -

Pelo menos - é Mútuo - o Risco -
Ou - Lucro equivalente -
Doce Conta da Vida - Pendurar à noite - 
E ser de Dia - Insolvente -

“Fascículo onze”

Noites Loucas - Noites Loucas!
Contigo estaria
Em noites loucas assim
A nossa luxúria!

Os ventos - inúteis - 
A um Coração no cais –
Nunca mais ter Bússola - 
Mapas nunca mais!

Remando no Éden 
O Mar - ali!
Ah se eu atracasse - à noite - 
Em ti!

”Poesia completa – Emily Dickinson: Volume I: Os fascículos”
Emily Dickinson
Tradução de Adalberto Müller Editora UnB e editora Unicamp
888 páginas
R$ 160




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