Os versos da poeta carioca Ana Cristina Cesar (1942-1983) enunciam caminhos, principalmente, para as mulheres que buscam na palavra uma forma de reinvenção do mundo. Dois livros organizados pela pesquisadora Heloísa Buarque de Hollanda, com a diferença de quase cinco décadas entre eles, mostram a poesia como um campo de partilha do sensível.
A tarefa de dar a ver a si e ao outro, portanto, além de estética se torna política se tomarmos as reflexões do filósofo francês Jacques Rancière. As antologias foram lançadas nessa quinta-feira (18/2): a reedição de “26 poetas hoje”, que completa 45 anos, e “As 29 poetas hoje”, como parte da cena da poesia contemporânea.
A tarefa de dar a ver a si e ao outro, portanto, além de estética se torna política se tomarmos as reflexões do filósofo francês Jacques Rancière. As antologias foram lançadas nessa quinta-feira (18/2): a reedição de “26 poetas hoje”, que completa 45 anos, e “As 29 poetas hoje”, como parte da cena da poesia contemporânea.
Os dois livros, inclusive, nascem desse entendimento de Heloísa, que busca entender a política a partir de pequenas revoluções. Foi o que fez com que ela buscasse 26 poetas na década de 1970, da chamada geração mimeógrafo ou geração marginal. É essa busca que a guia no século 21, quando os feminismos propõem mudanças na estrutura das sociedades capitalistas.
O elo entre as antologias é Ana Cristina Cesar, uma “jovem cânone da poesia de mulheres”. Heloísa é guiada pela forma como a obra da poeta reverbera na produção contemporânea. A pesquisadora oferece entrevistas com as jovens, que revelam como foi o encontro com a obra de Ana Cristina.
As convidadas para “As 29 poetas hoje” trazem testemunho afetuoso com a obra da carioca, principalmente pelo livro “A teus pés”, uma porta de entrada para muitas no universo de poesias feitas por mulheres. Em trecho da introdução, Marília Garcia diz sobre Ana Cristina: “Não cria uma escrita para ser falada, mas uma fala para ser escrita”. Heloísa também deixa clara a homenagem que presta: “Este livro é um só poema longo, com todas as digressões permitidas no narrar de uma breve, mas intensa história de amor.”
Com a participação de Chacal e Cacaso (veja matéria ao lado), a antologia “26 poetas hoje” foi publicada em 1976 com os escritos de poetas à margem do circuito literário, não publicados por grandes editoras. Eles produziam os livros de forma artesanal, e eles mesmos tratavam da comercialização em bares, portas de cinemas. Na antologia “As 29 poetas hoje”, Heloísa joga luz sobre essa poesia feita por jovens poetas que, muitas vezes, falam os versos em saraus na periferia e bancam produções independentes, como Mel Duarte, Luiza Romão e Jarid Arraes.
Na antologia de 1970, Heloísa inclui cinco mulheres – Zulmira Ribeiro Tavares, Vera Pedrosa, Ana Cristina Cesar, Isabel Câmara, Leila Miccolis. Na obra de 2021, elas são a totalidade das vozes: 29 poetas. Heloísa, que não esconde o ativismo, conta ao leitor sua motivação para a antologia: ela sai em busca de poesia de mulheres, sobretudo das jovens afetadas pela quarta onda feminista.
A pesquisadora deixa claro o pressuposto de que há diferenças de poesias feitas por mulheres e por homens. “Enfim, realiza-se o desejo de Ana Cristina Cesar de ‘não silenciar sobre temas de mulher’ e o que a poeta Angélica Freitas, em “Um útero é do tamanho de um punho”, propõe sobre a escrita da mulher e de seu corpo”.
A reedição de “26 poetas hoje” traz as introduções de 1976 e 1998, além de uma nota à presente edição que reflete sobre o termo “poesia marginal”. A denominação vem para descrever um movimento de autores e autoras que fugiam às definições da literatura dominante. “Eram também textos que traduziam um cotidiano próximo à experiência social dos poetas e se faziam notar pelo alto grau de oralidade, comunicabilidade, humor e ironia.” Mas a própria Heloísa evoca Chacal para fazer uma crítica ao uso do adjetivo marginal.
“26 POETAS HOJE”
Ana Cristina Cesar
flores do mais
devagar escreva
uma primeira letra
escrava
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais
mais
Waly Sailormoon
pickwick tea
(cenas da vida teresopolitana, petropolitana, friburguense, itaipavense)
A mãe comenta o ‘Inferno de Dante’.
A moça quinze anos lê o roman ‘La Charteuse’ de Parma.
Fala de Balzac aussi como servindo para descrições de paisagens e ambientes de baile. Narra as aventuras pelo impossível de Candide et Zadig. Thomas Mann na estante. Michelet écolier.
Quand le maître parle j’écoute/ le sac qui pend à mon
épaule dit que je suis un bon garçon.
Chacal
papo de índio
veio uns ômi di saia preta
cheiu di caixinha e pó branco
qui êles disserum qui chamava açucri
aí êles falaram e nós fechamu a cara
depois êles arrepitirum e nós fechamu o corpo
aí êles insistiram e nós comemu êles.
“29 POETAS HOJE”
Adelaide Ivánova
o marido
de repente do riso fez-se
Humboldt de jeans e descalço
como eu gosto
e das bocas unidas fez-se
porra nenhuma porque não houve
bocas unidas
e das mãos espalmadas
fez-se um high five
fez-se do marido próximo
um amante fez-se do amante
um marido esperante
e não foi de repente:
o marido se casa.
Luiza Romão
dia 1. nome completo
eu queria escrever a palavra br*+^%
a palavra br* ^% queria escrever eu
palavra eu br* ^% escrever queria
brasil
eu queria escrever a palavra brasil
aquela em nome da qual
tanto homem se faz bicho
tanto bandido general
aquele em nome de quem
a borracha vira bala
a perversidade qualidade de bem
aquela empunhado em canto
atestada em docs
que esconde pranto
mãe do dops
eu queria escrever a palavra brasil
mas a caneta
num ato de legítima revolta
feito quem se cansa
de narrar sempre a mesma trajetória
me disse “para
e volta
pro começo da frase
do livro
da história
volta pra cabral e as cruzes lusitanas
e se pergunte
da onde vem esse nome?”
palavra-mercadoria
brasil
pau-brasil
o pau-branco hegemônico
enfiado a torto e a direto
suposto direito
de violar mulheres
o pau-a-pique
o pau-de-arara
o pau-de-araque
o pau-de-sebo
o pau-de-selfie
o pau-de-fogo
o pau-de-fita
o pau
face e orgulho nacional
a colonização começou pelo útero
matas virgens
virgens mortas
a colonização foi um estupro
pedro ejaculando-se
dom precoce
deodoro metendo a espada
entre as pernas
de uma princesa babel
costa e silva gemendo cinco vezes
ai ai ai ai ai
getúlio juscelino geisel
collor jânio sarney
a decisão parte da cabeça
do membro ereto
de quem é a favor da redução
mas vê vida num feto
é o pau-brasil
multiplicado trinta e três vezes
e enterrado numa só garota
olho pra caneta e tenho certeza
não escreverei mais o nome desse país
enquanto estupro for prática cotidiana
e o modelo de mulher
a mãe gentil
”26 poetas hoje”
• Org. Heloisa Buarque de Hollanda
• Companhia das Letras
• 280 páginas
• R$ 39,90
”As 29 poetas hoje”
• Org. Heloisa Buarque de Hollanda
• Companhia das Letras
• 264 páginas
• R$ 69,90