Então, é isso que sobra do poeta? Essa massa compacta de celulose, tinta e sinais gráficos? Pesando exatos 558 gramas, distribuídos em 456 páginas? O livro “Cacaso – Poesia completa” (Companhia das Letras) reúne 43 anos de vida de Antonio Carlos de Brito. Porque começa-se a escrever quando se nasce.
“Dentro de mim
“O LUGAR DA
Mineiro de Uberaba, Cacaso morou um tempo no interior de São Paulo. Aos 11 anos, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde estudou filosofia. Nas décadas de 1960 e 1970, lecionou teoria da literatura e literatura brasileira na PUC-Rio. Colaborou regularmente em revistas e jornais, como Movimento, Opinião, sempre defendendo e teorizando sobre o cenário poético dos seus contemporâneos, da chamada geração mimeógrafo, no que se convencionou também de chamar poesia marginal. É um dos integrantes da antologia “26 poetas hoje”, organizada por Heloisa Buarque de Holanda.
Estreou na poesia em 1967, com o livro “A palavra cerzida”, prefaciado por José Guilherme Merquior. Em 1974, lança “Grupo Escolar”, pela coleção Frenesi, composta também dos livros “Passatempo”, de Francisco Alvim, “Corações veteranos”, de Roberto Schwarz, “Em busca do sete-estrelo”, de Geraldo Carneiro, e “Motor”, de João Carlos Pádua. Cacaso se une, então, a outros poetas, como Eudoro Augusto, Carlos Saldanha e Chacal, para formar a coleção Vida de Artista, pela qual lançou “Segunda classe” (em parceria com Luiz Olavo Fontes) e “Beijo na boca”, ambos em 1975. Depois vieram “Na corda bamba” (1978), “Mar de mineiro” (1982) e “Beijo na boca e outros poemas” (1985), primeira antologia poética do autor.
Sem dúvida, Cacaso foi uma das vozes mais combativas e criativas daqueles anos de chumbo, dando visibilidade ao fenômeno poesia marginal, em que militavam poetas como Francisco Alvim, Ana Cristina Cesar, Chacal, Charles e Paulo Leminski, entre muitos outros. No campo da música, muitos amigos/parceiros: Edu Lobo, Djavan, Tom Jobim, Toquinho, Olívia Byington, Sueli Costa e mais uma penca de nomes. Morreu em 1987, em consequência de um infarto do miocárdio.
Cacaso foi um intelectual, no melhor sentido da palavra: professor, poeta, letrista, crítico, ensaísta, agitador cultural, pensador. Ao reunir os livros publicados pelo autor e adicionar poemas inéditos, “Cacaso – Poesia completa” adota o mesmo procedimento que ocorreu com Paulo Leminski e Waly Salomão. Agrupar a produção dispersa em pequenos livros toscamente mimeografados ou xerocados, com edições caseiras, toscas, limitadíssimas, folhas soltas, panfletos. Os livros independentes passavam de mão em mão, mas num círculo muito restrito. Além, obviamente, da qualidade literária que carregam, são sucesso também pela grande curiosidade que geram num público, principalmente jovem, muito ligado às redes sociais, que divulga continuamente essa poesia dita marginal.
Na edição da Companhia das Letras, além dos seis livros que publicou, encontramos poemas esparsos, alguns anteriores ao seu primeiro, “A palavra cerzida”, publicado aos 23 anos de idade. Os depoimentos na fortuna crítica do poeta trazem deliciosas histórias: Roberto Schwarz, Heloisa Buarque de Hollanda e Vilma Arêas compartilham conosco as vivências com o poeta. Como define outro mineiro, Chico Alvim, “Cacaso tem o gênio brasileiro da fala macia, sensual e maliciosa. É da família de (Manuel) Bandeira, cuja linguagem é sem artifícios.”
Cacaso foi um agregador, uma personalidade extremamente sociável. Principal teórico da poesia marginal. Sua poesia, na fase mais recente, a partir de “Grupo Escolar”, revela uma ginga, certa malícia, um sentimento bem brasileiro, interiorano, ressabiado, irônico, espertamente matuto. Vivendo a poesia, com espontaneidade e um tom coloquial. Tudo isso ele soube também trazer para o universo das muitas letras que compôs. Basta ler (ou escutar) os versos de “Lero lero”, parceria com Edu Lobo.
Nos anos 1970, Cacaso e outros poetas escreveram letras para canções da MPB, visando atingir um público maior do que o consumidor de literatura e, claro, garantir uma fonte de renda com direitos autorais. Poesia pra tocar no rádio. No caso do nosso poeta, ele queria deixar o magistério para se dedicar de corpo e alma à vida de letrista, no que foi muito bem-sucedido. Talvez se mirasse no exemplo de Vinícius de Moraes, que idolatrava. Pena que muitas vezes as rádios citam apenas o cantor, e não o parceiro que escreveu as letras.
Cacaso ficou conhecido no meio literário como pai de uma verdadeira iluminação. Criou o conceito de que os poetas contemporâneos seus, da poesia marginal, estavam, na verdade, de uma forma ou de outra, escrevendo um grande poemão, um extenso, longo e vasto poema coletivo. E, no fundo, estavam. Mais uma vez, acertou em cheio.
O clima na época era de total informalidade, cansados que todos estavam das amarras dos manifestos ideológicos e da sisudez das academias de letras. Poesia de jovem pra jovem, tirando o terno e a gravata, tirando o poeta da torre de marfim e colocando-o na rua do mundo. Romper sim, mas romper dentro da tradição, seguindo os passos dos modernistas da primeira fase, em que imperava o poema-piada, agora reescrito. Redescobrir tudo, mas com uma visão bem mais ácida de um Brasil onde não havia liberdade de expressão, tempos da ditadura militar.
O que fica do poeta? Livros, poemas, filhos, letras de música, boas lembranças, experiências estéticas. É o que está no livro “Cacaso – Poesia completa”. Recomendo demais.
”Cacaso – poesia completa”
• Cacaso
• Companhia das Letras
• 456 páginas
• R$ 71
• E-book: R$ 39,90
*Nicolas Behr é poeta, autor dos livros “Poesília” (2002) e “Laranja seleta” (2007)
“Dentro de mim
mora um anjo”
(parceria com Sueli Costa)
Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim
Dentro de mim mora um anjo
Que tem a boca pintada
Que tem as unhas pintadas
Que tem as asas pintadas
Que passa horas a fio
No espelho do toucador
Dentro de mim mora um anjo
Que me sufoca de amor
Dentro de mim mora um anjo
Montado sobre um cavalo
Que ele sangra de espora
Ele é meu lado de dentro
Eu sou seu lado de fora
Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim
Dentro de mim mora um anjo
Que arrasta suas medalhas
E que batuca pandeiro
Que me prendeu em seus laços
Mas que é meu prisioneiro
Acho que é colombina
Acho que é bailarina
Acho que é brasileiro
Quem me vê assim cantando
Não sabe nada de mim
• • •
Minha terra tem palmeiras
onde canta o tico-tico.
Enquanto isso o sabiá
vive comendo o meu fubá.
Ficou moderno o Brasil
ficou moderno o milagre:
a água já não vira vinho,
vira direto vinagre.
“O LUGAR DA
TRANSGRESSÃO”
Encontrei um sapo cochilando dentro de
Minha botina. Nunca me meti em botina
De sapo. Que liberdades são essas?
“Lero-lero”
(parceria com Edu Lobo)
Sou brasileiro
de estatura mediana
gosto muito de fulana
mas sicrana é quem me quer
porque no amor
quem perde quase sempre ganha
veja só que coisa estranha
saia dessa se puder
Eu sou poeta
e não nego minha raça
faço verso por pirraça
e também por precisão
de pé quebrado
verso branco rima rica
negaceio dou a dica
tenho a minha solução
Não guardo mágoa
não blasfemo não pondero
não tolero lero-lero
devo nada pra ninguém
sou esforçado
minha vida levo a muque
do batente pro batuque
faço como me convém
“Falando sério”
Outro amor? Não caio mais