“'Tu acha mesmo que a gente não trabalha mais do que o dono desta rede de supermercado? Esse cara nem sequer trabalha, Marques. Mas, mesmo que ele trabalhasse, não ia poder trabalhar tanto, a ponto de merecer o mar de dinheiro que ele tem, enquanto a gente trabalha e trabalha só pra ganhar a quantidade de dinheiro exata pra não morrer de fome e continuar trabalhando e trabalhando."
"O direito de abrir a boca e dizer que alguma coisa te pertence, ou seja, o tal do direito à propriedade privada, esse direito devia andar de mão dada com o merecimento, e merecimento é sinônimo de trabalho. Merecimento é rosto suado e mão calejada. Não existe outro tipo de merecimento. O fiel da balança mais justo é o trabalho. E a balança mais justa mostra pra quem quiser ver que o dono dessa rede de supermercado tá ganhando bem mais dinheiro do que merece, enquanto os funcionário, incluindo eu e tu, tamo ganhando bem menos dinheiro do que a gente merece'”
"O direito de abrir a boca e dizer que alguma coisa te pertence, ou seja, o tal do direito à propriedade privada, esse direito devia andar de mão dada com o merecimento, e merecimento é sinônimo de trabalho. Merecimento é rosto suado e mão calejada. Não existe outro tipo de merecimento. O fiel da balança mais justo é o trabalho. E a balança mais justa mostra pra quem quiser ver que o dono dessa rede de supermercado tá ganhando bem mais dinheiro do que merece, enquanto os funcionário, incluindo eu e tu, tamo ganhando bem menos dinheiro do que a gente merece'”
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MARX
Longe de fazer apologia ao tráfico, Falero constrói uma narrativa ágil, folhetinesca, de cunho filosófico e sociológico, divertida e repleta de ironia e críticas sociais, para tratar da desigualdade que massacra as classes pobres no Brasil. A grande sacada da obra é introduzir o pensamento de Karl Marx de maneira não acadêmica e popular no cotidiano de Pedro, que é leitor do pensador alemão. Embora possam parecer anacrônicas, suas impressões a respeito do marxismo são bem atuais. Anacrônico, como mostram os personagens, é achar que o trabalhador precisa aceitar o seu destino e ser eternamente pobre assalariado.
Mas tudo isso não bastaria para arrebatar os leitores. O grande diferencial de “Os supridores”, que garante o realismo da aventura perigosa de Pedro e Marques, é a dupla linguagem da obra: a formal, que permeia a trama, e a coloquial ou oral, que inclui erros intencionais do português falado, empregada nos diálogos dos personagens.
A ficção realista de “Os supridores” pode parecer um corpo estranho na elitista literatura brasileira e até chocar o leitor desavisado com sua gíria “pau no cu”, mas Falero vai ao ponto. “São brancas, a maioria homens, heterossexuais, de classe média alta, as pessoas que produzem literatura no Brasil. Quando o povo brasileiro pega aquilo pra ler, não se enxerga ali em nada”, disse ele ao Estado de Minas.
José Falero é o pseudônimo de José Carlos da Silva Júnior, criado na Lomba do Pinheiro, periferia de Porto Alegre. Autodidata e agora jovem talento literário, ele apresenta ao Brasil o Sul sem clichê “europeu”. Nos contos de “Vila Sapo”, seu primeiro livro, Falero já tratou do país real em facetas. Agora, dá outro tapa na cara da elite com sua nova obra. Sem moralismos, fala da dura realidade na periferia, de preconceito, marginalidade, ignorância e pobreza. “Uma coisa que queria que aparecesse no livro é associar a violência urbana às injustiças sociais. Muita gente nega isso, diz que é uma falácia. E não é”, afirma o escritor.
Falero, com sua narrativa forte e arrebatadora, engrossa a lista dos autores contemporâneos que escracham um país racista, machista, sufocado por desigualdades diversas, como já o fazem também “Torto arado”, de Itamar Vieria Júnior; “Marrom e amarelo”, de Paulo Scott; e “O avesso da pele”, de Jeferson Tenório. Não há como ficar indiferente ao Brasil real? Tá ligado?
”OS SUPRIDORES”
• José Falero
• Editora Todavia
• 302 páginas
• R$ 46,99 (impresso)
• R$ 25,11 (e-book)
TRECHO DO LIVRO
“Acho que o cara que mais influenciou o meu pensamento foi um filósofo alemão. O nome dele era Marx. Inclusive, todo esse lance que a gente conversa, os nego chama isso de marxismo, por causa dele, tá ligado? Ele foi o primeiro a ver o mundo do ponto de vista que te mostro quando a gente conversa: o ponto de vista que nos interessa, o ponto de vista que favorece o trabalhador, e não o explorador do trabalho.
– O nome do cara era Marques, que nem o meu?
– Não. Era Marx, com xis.
– Hum... Tá, mas se esse bagulho que a gente conversa não é novidade, por que ninguém nunca botou em prática?
– Já tentaram. Mas não funcionou.
– Não funcionou?
– Não funcionou.
– Mas como assim. Não funcionou por quê?
Pedro riu.
– Não funcionou porque ainda é uma ideia elevada demais pro espírito da maioria das pessoas no mundo. Não funcionou porque é uma ideia que surgiu antes da hora. Não funcionou porque ninguém quer que funcione, mano. Os rico não quer que o mundo seja justo, mas os pobre também não quer. Pode acreditar: nem as pessoa que mais sofre neste mundo de injustiça, nem elas gosta da ideia dum mundo justo quando tu explica pra elas como ia ser um mundo justo. Sabe por quê? É porque num mundo justo, justo de verdade, ninguém ia conseguir ficar rico. Ia ser impossível enriquecer. (...) Num mundo justo, o padrão de vida das pessoa ia depender do quanto elas trabalha. Existe um limite até onde a gente consegue fazer as coisa sozinho. Esse limite é a nossa capacidade máxima de trabalho, e varia um pouco de pessoa para pessoa. Mas nunca, Marques, nunca a capacidade máxima de uma pessoa vai ser suficiente para que essa pessoa consiga acumular riqueza. Não tem como. Tendeu? Só com o seu trabalho, tu não vai ficar rico nunca. A única forma de tu acumular riqueza é aproveitando algum mecanismo social, legal ou ilegal, pra te adornar de dinheiro mais do que a sua capacidade máxima de trabalho diz que tu merece.”
ENTREVISTA
JOSÉ FALERO
“A linguagem como ferramenta de dominação”
Você teve alguma influência literária?
Comecei a ler muito tarde. Com 20 anos, por aí. Minha família não lia, meus amigos não liam. O livro não era uma realidade. Eu associava a leitura de livros com obrigação. Pra mim, não fazia sentido uma pessoa ler por vontade própria. Minha mãe sempre lia, mas eram livros espíritas. Eu achava que a pessoa só lia quando fosse obrigada pelo colégio, pela faculdade, ou quando estivesse numa busca espiritual, digamos assim. Era o caso da minha mãe, ela só lia livros espíritas. E aí minha irmã foi para a universidade, começou a ler muito. E quando ela vinha nos visitar, dizia que eu tinha quer ler livros. “Não, mas eu não gosto de ler”, eu dizia. Eu gostava de revista em quadrinhos, de videogame, de filmes. E argumentava isso, o filme tem imagem, tem som. A história em quadrinhos traz ilustrações, com o videogame posso controlar os personagens. Todas essas três plataformas também contam uma história e têm mais interatividade, por que vou gostar de um livro?
O que abriu as suas portas para os livros, então?
Minha irmã um dia falou: “Não vou mais tentar te convencer a ler”. Mas ela disse uma coisa que me pegou: “Você tem que entender que sua opinião sobre livros não importa porque nunca leu um livro inteiro. Depois de ler um livro inteiro, fala comigo”. Aí, eu queria provar que ela estava enganada. Arranjei um livro emprestado, o primeiro livro que eu li chamava “Besta fera”, sobre lobisomem. Comecei a ler. Claro, eu podia mentir, podia dizer pra ela que li o livro inteiro e não gostei. Mas eu queria levar o livro do início ao fim e dizer pra ela que não gostei. Mas acabei adorando. E depois daquele primeiro livro não parei mais de ler. Foi assim que as portas foram abertas para mim. Não foi um autor específico.
Os seus livros, “Vila Sapo” e “Os supridores”, arrebatam o leitor pela linguagem coloquial e contextualizada na pe- riferia. Com essa temática de gírias, palavrões, você pensou que poderia ter resistências?
Quando decidi que queria escrever, fui estudar as ferramentas da produção de texto. Eu achava: como vou escrever se não sei usar as ferramentas? É como um carpinteiro que não sabe usar um martelo. Cheguei a pensar que seria desagradável, porque detestava português, era o que mais detestava no colégio. Só que quando fui estudar por conta própria, acabei me apaixonando pela gramática. E durante muito tempo escrevi de uma maneira tradicional, que é uma questão de classe. Escrevia reproduzindo uma linguagem que não é a linguagem da minha classe, a norma dita culta. Conversei com várias pessoas que escreviam e algumas defendiam que pelo menos nos diálogos a linguagem tinha que ser mais informal. Algumas foram mais radicais e diziam que até mesmo na narrativa a linguagem deveria ser mais informal. Eu defendia a norma dita culta. E essas pessoas nunca tinham argumento pra me convencer do contrário. Isso mudou porque um dia eu conversei com um cara que me dava aula numa universidade. E a gente conversou uma madrugada inteira sobre linguística. E ele tinha argumentos muito bons.
Quais argumentos?
Ele me mostrou como a linguagem é uma questão de classe. Uma coisa que tá muito em pauta hoje na academia é que não existe o certo e o errado. Existem as formas diferentes de falar. Existe a forma como eu falo na minha quebrada, é uma forma de falar deslegitimada pela estrutura social preconceituosa. Enfiam goela abaixo das pessoas uma forma de falar que não é forma delas falarem no seu cotidiano. Foi a primeira vez que entendi a linguagem como ferramenta de dominação, que associei linguística com sociologia. Comecei a perceber que o modo que eu escrevia era uma violência com o modo como eu mesmo falo. Comecei a pensar: quero experimenar isso, escrever da forma como me expresso, como meus parentes se expressam, como meus vizinhos se expressam. “Vila Sapo” foi o resultado dessa experimentação. “Os supridores” já estava pronto com aquela minha escrita antiga. Estava pronto, mas eu não consegui publicar. E esse mesmo trabalho que fiz no “Vila Sapo”, voltei e fiz em “Os supridores”. E em “Os supridores” fiz outra experiência ainda, mantive essa língua culta, formal, na narrativa em terceira pessoa. E usei a linguagem informal nos diálogos.
Você enfrentou resistência de editoras por causa do tema e da linguagem do livro?
Muita resistência para publicar. “Os supridores” tentei publicar por vários meses, entrei em contato com várias editoras. Nunca me responderam. Escrevi uma segunda versão, reescrevi o livro e tentei publicar de novo. E nenhuma editora. E teve ainda a terceira versão, a dos diálogos (linguagem coloquial) e essa sim foi publicada. Mas acho que não tem a ver com a temática das drogas, de palavras. É mais uma questão assim: se a gente for analisar a sociedade brasileira hoje, tem uma série de pautas que as pessoas estão debatendo, que não se debatia 20 anos atrás. E o que trouxe essas pautas? Foi a partir do momento em que se empregaram políticas públicas, por exemplo, as cotas para pessoas negras, de baixa renda, de periferia entrarem para a universidade. E são essas pessoas que, dentro do mundo acadêmico, geraram debates de que já se falava desde os anos 60, mas da maneira como é hoje é mais recente, o racismo estrutural, o machismo estrutural, a importância de a gente entender que a periferia não pode ser estigmatizada da forma como é diariamente nos jornais. Não é um lugar só de violência, é onde as pessoas produzem cultura.
O rap e o funk sofrem preconceito de parte do público, por serem considerados arte “menor” por causa do português errado, dos palavrões. O rap influenciou sua literatura?
Muito. O rap e o samba influenciaram muito a minha li- teratura. Essas coisas são vistas como menores pela mesma razão até certo tempo, até o início do século 20. Tu era preso se fosse preto e pego com um cavaquinho, um pandeiro na mão. Tem gente que pesquisa isso e chegou à conclusão de que a palavra malandro, a origem era essa, a rapaziada que se escondia para tocar, para fazer samba. Este é o país em que a gente vive. A gente não tá curado, digamos assim, desse elemento estruturante da nossa sociedade que é o racismo. Sobre a linguagem, a gente sabe como se construíram as periferias nos grandes centros urbanos do Brasil. Quando aconteceu a abolição da escravidão, abolição que nunca se efetivou, as pessoas foram abandonadas à própria sorte pelo Estado. Fodam-se. Virem-se. Deem o seu jeito. O Estado brasileiro, então, traz europeus para remunerar, porque não se propunha a remunerar pessoas pretas pelo trabalho. Então, incentiva que venham italianos, alemães, paga a viagem dessas pessoas, dá terras, dá incentivo econômico. O Estado brasileiro inclusive indenizou os proprietários de escravizados. Essas pessoas (ex-escravos) é que vão construir as periferias do Brasil, conviver à margem da sociedade. E essas pessoas nessas periferias desenvolvem uma maneira de falar bastante peculiar. Se tem uma coisa que tá se democratizando no Brasil é a pobreza e a miséria. Hoje em dia, uma pessoa pode ser branca e nascer pobre na periferia de uma grande cidade. Mas o jeito de essa pessoa falar vai ser fortemente influenciado pelo jeito que as pessoas pretas falavam desde os primórdios das construções dessas periferias. Um pequeno exemplo: o lance de concordar com o plural. Ao invés de eu dizer “nós chegamos naquele lugar, nós chegou lá”. Esse modo de falar. O que acontece? Várias etnias foram trazidas à força pra cá, foram sequestradas. O idioma deles tinha uma característica bastante inteligente. Que é a seguinte: se uma partícula tá no plural, as outras não precisam estar porque é redundante. É simples. Então, se eu digo nós, não preciso dizer estamos, não preciso reforçar isso no verbo. Quando digo nós, já sei que são vários. Eles tinham esse modo de falar lá. Quando chegam aqui e são obrigados a falar português, eles até aprendem, mas incorporam essas detalhes do jeito que eles falavam lá.
Existe discriminação na linguagem também?
A gente tem uma linguagem fortemente influenciada por essas pessoas, e assim como o rap, assim como o samba, essa linguagem é discriminada não por outro motivo que não a questão racial. É criminalizada porque é coisa de preto. Esse é o problema, porque é coisa de preto. O Brasil é um país onde quanto mais coisas tu tiver que associem à cultura das pessoas pretas, mais vai ser discriminado. A linguagem da música que escuto. Quanto mais elementos tiver que te liguem à cultura africana, pior vai ser enxergado pela nossa sociedade.
A literatura ainda ocupa pouco esse espaço da periferia?
Passa exatamente por essa cultura. A população brasileira lê pouco. Recentemente, fizeram levantamento. Num país de 200 milhões de habitantes, 93 milhões não leram um único livro nos últimos três anos. O que explica isso? Quando tu pega um livro, ele é produzido por uma classe muito específica de pessoas. Isso também já foi mapeado. São brancas, a maioria homens, heterossexuais, de classe média alta, as pessoas que produzem literatura no Brasil. Quando o povo brasileiro pega aquilo pra ler, não se enxerga ali em nada. Nem na linguagem, nem na forma como é escrito, nem nos eventos que acontecem com os personagens. O personagem pensa assim: cara, tô meio triste. Vou viajar para Paris e ver o que acontece. E lá se desenvolve a trama. Isso é a realidade de quem no Brasil? A realidade do brasileiro é a seguinte: ele quer um trampo e não tem passagem para ir lá fazer a entrevista, tem que pedir pro vizinho. Essa é a realidade do povo brasileiro, ônibus lotado para ir trabalhar, outro filho nascendo e não tem dinheiro para comprar o leite, fraldas. Então, essa realidade não é vista nem na forma nem no conteúdo da literatura brasileira de uma maneira geral. A literatura demonstra esse preconceito de raça e de classe mais do que a música, por exemplo. Mas é mais do que isso.
Na música também é assim?
A gente vive num país onde nasceu Cartola, e o rei da música é o Roberto Carlos. É um absurdo. É inconcebível. Todo mundo sabe no Brasil o que foi a Jovem Guarda, pelo menos já ouviu falar. Mas quando tu pergunta o que é o Cacique de Ramos ninguém sabe o que é. Cacique de Ramos é de onde saiu Zeca Pagodinho, Almir Guineto, Jorge Aragão. Eles inventavam instrumentos lá. E lógico que isso é invisibilizado. Tem muitos exemplos. O próprio samba e a forma como ele foi historicamente tratado no Brasil. As pessoas chegavam a ser presas. E aí surge a bossa-nova. O que é a bossa-nova? Mantém o ritmo do samba, tira tudo que pode associar aos pretos, tira toda a percussão que remetia aos terreiros de umbanda, tira o pandeiro, o rebolo, o tantã, o cavaquinho. E deixa um violão, bota uma flautinha e mantém o ritmo de samba mais branco. É isso que o Brasil vai exportar, mais até do que o samba. É um absurdo, não é uma coisa restrita à literatura
No Sudeste, a gente tem uma imagem do Sul de país europeu, de gente de olho azul. E seu livro mostra exatamente outra realidade, a da periferia, da pobreza.
Morei em Campo Grande, e uma menina bastante racista que conheci lá me disse uma frase assim: “Uma vez, eu fui lá pra tua terra e foi a maior decepção, porque disseram que era só gente bonita, e quando cheguei lá tinha um tanto de preto”. É exportada de Porto Alegre uma ideia fantasiosa, mentirosa. Mesmo quem mora lá tem essa falsa imagem. Quando lancei meu primeiro livro, “Vila Sapo”, foi bem aceito, vendeu bem. Mas muita gente de classe média alta leu o livro e ficou tão surpresa como as pessoas de fora de Porto Alegre. Vieram falar comigo, eu achava que isso era só no Rio, em São Paulo. As pessoas não conhecem a cidade onde vivem.
Existem outros autores que mostram essa realidade?
Tem o Jeferson Tenório , que veio do Rio, mas viveu um tempo numa comunidade de Porto Alegre. Ele traz um pouco dessa questão. Tem Paulo Scott, com “Marrom e amarelo”, que mostra essa Porto Alegre fora do Centro. Não é comum a literatura gaúcha retratar esses espaços. Não quero me esquecer de falar do pessoal do Slam. Muitas vezes, o pessoal do mundo literário torce o nariz, não considera aquilo literatura. Esse pessoal, quando torce o nariz para o Slam, tem um pouco de recalque, porque o Slam consegue fazer tudo que o pessoal da literatura sempre quis, que é mover a massa. Nesses eventos há uma massa de gente.
Uma surpresa de “Os supridores” é a aula sobre Karl Marx que Pedro, o protagonista, dá para o amigo Marques, sobre a exploração do trabalho. Como foi essa ideia de introduzir Marx no livro?
Gosto de pensar a escrita como filosofia aplicada. Quando sento para escrever, o que acaba indo para o papel são as ideias sobre as quais filosofo com frequência. Quando escrevi “Os supridores”, essas ideias do marxismo estavam borbulhando na minha cabeça. Eu tinha começado a ter contato com ideias marxistas e ao mesmo tempo estava trabalhando num supermercado. Então, imagina um cara que tá compreendendo coisas como a mais-valia e é explorado num supermercado. Isso foi refletido no livro. Muita gente tem falado em traduzir o marxismo para uma linguagem mais simples. A minha ideia foi exatamente essa, foi de maneira espontânea. O marxismo de uma perspectiva acadêmica e mais formal eu não entendo assim. Me esforcei para compreender o marxismo exatamente como Pedro compreende. Uma coisa que queria que aparecesse no livro é associar a violência urbana às injustiças sociais. Era uma coisa que queria que ficasse clara no livro. Muita gente nega isso, diz que é uma falácia. E não é. Como diz na letra dos Racionais: “Muitas vezes não tem jeito, a solução é roubar”.
A injustiça social e a falta de oportunidade de trabalho empurram os jovens para a criminalidade, como ocorreu com Pedro e Marques em “Os supridores?”
Não resta dúvida disso. Pra começo de conversa, a criminalidade não tá só nas periferias O que mais tem é empresário que sonega imposto, gente de grande empresa, que não precisa e comete crime. É muito difícil justificar uma pessoa que tem uma megraempresa e sonega impostos. A única coisa que explica isso é a ganância. Agora, quando tu tem uma casa de um cômodo, quando chove, chove dentro de casa, molha tua cama, uma cama só. Quando a tua casa se equilibra na beira do barranco, quando seus filhos nascem e se criam ali sem perspectiva nenhuma, de nada, sem lazer, sem direito a estudo digno, a caminhar 10, 20 quilômetros para ir à escola. Quando a tua realidade é essa, a relação com a criminalidade vai ser outra. Gosto muito do Racionais, porque tudo o que penso eles já entenderam antes do que eu e sempre têm uma resposta: “Me digam que é feliz quem não se desespera vendo seu filho que nasceu no berço da miséria”. É justamente disso que se trata. (PN)