Jornal Estado de Minas

Decifrando Clarice



Regina Beatriz Silva Simões*
Especial para o EM
 
 
Frequentemente, escutamos o nome de Clarice Lispector associado à tristeza ou à depressão, sem que isso desmereça, naturalmente, o valor literário e poético de sua obra. Chama-me inicialmente a atenção o título que Luiz Lopes dá à sua obra: “Clarice Lispector: formas da alegria” (Quixote%2bDo). Curiosa, aventuro-me à leitura e nela descubro preciosidades por todo o caminho. 





Especialista em teoria literária e literatura comparada e pesquisador dos grupos Atlas e Mulheres na Edição, Luiz Lopes é leitor assíduo de Clarice Lispector – produziu um trabalho valioso, repleto de minúcias: uma pesquisa robusta, muito bem-elaborada. O autor esparrama sensibilidade pelo texto e apresenta ao leitor uma escritora ainda mais bonita: uma Clarice com alegrias plurais. As articulações com a obra de Nietzsche tornam o trabalho de Luiz ainda mais intenso. Os vários pensadores e comentadores que perpassam o livro abrem um leque para se repensar a escrita de Clarice. Na abertura, encontramos a biógrafa da escritora, Nádia Battella Gotlib. Com propriedade, Nádia apresenta o livro e o autor com a seriedade e a gentileza que lhe são peculiares. 
 
 
 
 
Na primeira epígrafe escolhida pelo autor, ressoa o laço forte de Clarice com a vida. “A tragédia de viver existe sim e nós a sentimos. Mas isso não impede que tenhamos uma profunda alegria com essa mesma vida.” Onde há vida, há alegria. E ela não vem sozinha. O novelo de sentimentos que Clarice apresenta em seus textos vai aos poucos se expandindo na escrita de Luiz. 

Interessa-me, pela psicanálise, os sussurros, silêncios, os semiditos, os hiatos – o que está além e aquém da linguagem – que a obra de Clarice traz em abundância. O autor se atenta aos detalhes. Experimentei, ao terminar a leitura, o desejo de reler cada conto, cada romance da escritora, atenta àquilo que o autor destacou. Luiz lança luz à obra de Clarice Lispector.





Um dos pilares do pensamento de Nietzsche, “o desejo de criar como um instrumento eficiente para se encarar a própria tragédia e a tragédia do mundo” remete-me a reflexões fundamentais que dizem respeito à teoria e à prática psicanalítica.

A escrita nos interessa por ser uma modalidade de refazer o laço social. O ato de escrever testemunha o hiato que existe entre cada um e o outro. A escrita escancara o desassossego ou a emoção do escritor.  Não seria essa uma saída possível diante das dificuldades da vida? Ou, dizendo na linguagem psicanalítica, diante do confronto com a castração?

Freud apostou na linguagem como diferencial para a escuta clínica e Lacan priorizou a inserção na linguagem como marca da constituição do sujeito, fazendo valer os significantes. No texto sobre Dostoievski e o parricídio, Freud (1927/1928), disse: “Diante do problema do artista criador, a análise, ai de nós, tem que depor suas armas”. Lacan, em seu seminário sobre James Joyce (1975/76), demonstrou que a arte pode funcionar para o escritor como um sustentáculo, possibilitando uma saída para seu adoecimento. Ambos, Freud e Lacan, sustentam que a arte é uma possibilidade de lidar com o conflito.

Articulando a arte literária com o processo analítico, afirmo que a análise se dá a partir da apresentação de um relato de uma história. Relato que não é cronológico, mas que se baseia na lógica do inconsciente, assim como a escrita. O processo analítico é o testemunho de uma experiência singular, com ritmo e alternâncias próprios. É a história tecida com seus cruzamentos, seus furos, seu estilo único.





Dessa maneira, ler Clarice é, sobretudo, entrar no vasto universo de enigmas, no mundo de interpretações plurais; é mergulhar no inusitado, no inquietante, na perplexidade e na alegria. É tornar o cotidiano sofisticado e colossal. Clarice fez uma literatura revolucionária e original à medida que mesclou o cotidiano pacato de uma dona de casa de classe média, por exemplo, com as reinvindicações feministas de sua contemporaneidade.

A psicanálise e a literatura caminham de mãos dadas, pois ambas transitam pelo inapreensível, pela ausência de sentido, pelo impossível de tudo dizer, pelas ressignificações. O inconsciente, objeto de trabalho dos psicanalistas, se manifesta justamente pela falência da linguagem: vazios, reticências, furos, restos – chamados de objeto a – que permitem a construção de um sentido novo para aquilo que escapa ao sentido: o indizível.

Clarice nos apresentou uma obra inesgotável, inquietante, provocadora. Sua história pessoal é marcada por riqueza intelectual, profusa em angústias, afetos, questionamentos, silêncios e alegrias. Ela nos trouxe um modo de escrever especial, com uma ampla variedade de estilos.





Dois momentos do livro, que agora chega ao público, interessaram-me de maneira especial: o capítulo reservado à “solidão” e outro dedicado ao tema “estranho”, ambos caros à psicanálise. 

O estranho, tema ao qual Freud (1919) se debruçou com propriedade, diz respeito àquilo que é único, particular, refúgio e subjetividade. Freud rastreou os significados atribuídos à palavra unheimlich e privilegiou a definição do filósofo Friedrich Schelling: “Unheimlich é o nome de tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, em estado latente, mas veio à luz” (p. 282). A mola propulsora do texto freudiano diz respeito ao ponto em que o literário faz limite com o inconsciente, apontando aí uma certa equivalência. Para a psicanálise, o estranho é o exílio estrutural de cada sujeito. Freud usa o termo “êxtimo” para nomear o que é estranho e familiar ao mesmo tempo: o indissociável em cada sujeito. 

Sobre a solidão, minha aposta como psicanalista é numa relação promissora, na qual a experiência de estar só produza uma vivência que não comporte necessariamente o mal-estar. A solidão está relacionada com o encontro daquilo que há de mais íntimo em cada sujeito. Solitário, o sujeito se descola do outro como forma de sustentação e cria sua própria rede protetora, pois somos irremediavelmente faltosos. Nas palavras de Luiz Lopes, encontrei uma frase referente ao personagem Martin (do romance “A maçã no escuro”) que bem ilustra minha posição: “A solidão e o silêncio são formas de se colocar de modo revigorante nesse mundo”, pois é possível extrair dessa parceria a criatividade latente em cada um de nós.





A literatura oferta ao sujeito a possibilidade de se expressar, pois faz parte do trabalho do escritor dar uma morada ao desconhecido, ao nada, esbarrando no impossível de tudo dizer.

Luiz Lopes, com seu livro, lança luz a uma Clarice que transitou pela vida e pela literatura, pulverizando alegrias e suavidade, mesmo que mescladas a tantos outros sentimentos. Clarice Lispector fisga o leitor por ser multifacetada e instigante; Luiz captura o leitor por iluminar detalhes e nuances numa obra complexa e apaixonante.

Destaco, entre tantas, algumas preciosidades que o autor oferta ao leitor:

“Parece que Clarice, como todo escritor, é aquela que recolhe os farrapos, exuma vestígios e os utiliza e reinventa, fazendo com que eles recebam novas configurações, não os inventariando.”

Sobre a personagem GH (do romance “A paixão segundo G.H.”), Luiz diz: “Encostar a boca na matéria da vida faz com que GH entenda que a vida não pode ser vivida a partir de uma redenção, mas apenas pela coragem que mostra que a finalidade da existência está nela mesma”.





“Para suportar a vida (...) é preciso aprender com os artistas a encarar a existência como um modo particular de abrir os olhos e receber a luz.”

Clarice dialoga com alegrias. Pela arte, ela reinventou a vida. Luiz Lopes oferece aos seus leitores um trabalho rico para os que admiram e reverenciam Clarice e favorece, com sua produção literária, os pesquisadores que se aventuram à instigante tarefa de repensar uma de nossas maiores escritoras. 


*Regina Beatriz Silva Simões é psicanalista,  autora de livros na área psicanalítica, entre eles “Que não se esmaguem com palavras as entrelinhas” (editora Quixote Do), em parceria com Gilda Vaz

Luiz Lopes, com seu livro, lança luz a uma Clarice que transitou pela vida e pela literatura, pulverizando alegrias e suavidade, mesmo que mescladas a tantos outros sentimentos. Clarice Lispector fisga o leitor por ser multifacetada e instigante; Luiz captura o leitor por iluminar detalhes e nuances numa obra complexa e apaixonante


Sobre o autor do livro

Luiz Lopes é especializado em teoria literária e literatura comparada, professor do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (Cefet-MG). Tem vários capítulos e artigos publicados em revistas da área de letras que, quase sempre, versam sobre a obra de Clarice Lispector. É pesquisador dos grupos Atlas e Mulheres na Edição. “Clarice Lispector: formas da alegria” é seu primeiro livro publicado pela Quixote Do.
 
 

» ”clarice Lispector: Formas da Alegria”
» Luiz Lopes
» Quixote Do
» 424 páginas
» R$ 41,93

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