Jornal Estado de Minas

CONTOS

Escritor e jornalista mineiro André Nigri lança 'Com a corda no pescoço'

“Esses contos me surpreenderam pela sua precisa linguagem, narrativa e diálogos impecáveis, além da riqueza da sua imaginação. Pontuar o “Com a corda no pescoço” com o enforcamento de Tiradentes foi um golpe de mestre. O prazer da leitura foi grande, um prazer, eu diria, até sofisticado Adorei, entre outras coisas, os choques amorosos, as paixões, uma certa morbidez. Tudo convincente e aliciante e com um fino senso de humor”

Essas palavras do carioca Sérgio Sant'Anna (1941-2020), um dos maiores contistas brasileiros e o primeiro leitor de “Com a corda no pescoço”, já dão o tom do segundo livro do escritor e jornalista mineiro André Nigri. E não é para menos. São quatro histórias curtas em apenas 126 páginas, mas de grandeza e beleza narrativa. “Com a corda no pescoço”, “Na ponta dos pé”, “Se não fosse a lua” e “O tocador de triângulo” são curtos, concisos e surpreendem o leitor com deslocamentos temporais, , protagonizados por casais de classe média sufocados por sentimentos conturbados, com destaque para a visão feminina. O fio condutor é a traição. E como disse Sérgio Sant'Aanna, André Nigri teve a boa sacada de associar o tema do primeiro conto a Tiradentes, o maior símbolo da traição no Brasil”.





A primeira história fala de Helena, casada com um homem obstinado com o maior mártir brasileiro, que tem vida conjugal entediante e se entrega a um colega. O segundo trata da professora de balé Francesca, “uma loba das estepes” às voltas com um fantasma afetivo e que descobre nova paixão voraz. O terceiro fala da jornalista Mariana, que acumula casamentos e o assédio do chefe. E o último de Maria, que deixa o marido em casa e parte para uma viagem imprevisível com um homem incerto.

Traição e fidelidade, entrega e arrependimento, liberdade e dependência. As sedutoras armadilhas amorosas dos contos atraem o leitor para um turbilhão de afetos. O transbordamento revela revela identidades. Afinal, o amor incontido faz cair a máscara, literalmente desnuda, fragiliza o eu. “A paixão nos desmascara e o que frequentemente vemos por trás das máscaras é a nossa vulnerabilidade. A paixão também esvazia nossa subjetividade, nos torna presas indefesas, e desfaz a ilusão de que temos controle sobre nossas vidas”, disse André Nigri ao Estado de Minas.

E uma característica marcante das obras de Nigri é o humor fino, com “certa morbidez”, como disse Sant'Anna. Como neste trecho do primeiro conto: “– Você não para de olhar o relógio. – Combinei de assistir um filme com meu marido. – No cinema? – Claro que não. A gente nunca vai ao cinema juntos. Em casa. – Bem, então ele não é tão obcecado quanto você deu a entender. – É um filme sobre holocausto. Um documentário sobre o holocausto.



Você consegue imaginar algo mais romântico do que assistir a um filme sobre milhões de pessoas sendo exterminadas ao lado de seu marido na cama? Você acha que depois de duas horas vendo esse horror a gente desliga a TV e vai trepar?”

André Nigri ressalta ao EM a importância do humor: “Roberto Bolaño lamentava que a literatura latino-americana ressentia-se da falta de humor num ensaio que traduzido livremente se chama 'O humor ficou atrás da porta'. Em 'Com a corda no pescoço', fiz questão de que o humor prevalecesse, mesmo e principalmente nas situações mais dolorosas.

Bolaño dizia que em nosso continente subdesenvolvido, o humor foi sacrificado em nome de um romantismo nauseabundo e em nome de textos pedagógicos, e, em vários casos, de textos de denúncia, que 'reagem mal com o passar do tempo'". “Estou totalmente de acordo com ele, embora, claro, haja boas e eventualmente maravilhosas exceções, como Manuel Antônio de Almeida, Machado de Assis, Oswaldo de Andrade, Sérgio Sant'Anna e alguns outros”, completa.

ENTREVISTA / ANDRÉ NIGRI Escritor


“A traição permanece sacralizada”

O primeiro atrativo de “Com a corda no pescoço” é a bela capa com as máscaras, que remete ao termo de Heine, maskenfreiheit (liberdade conferida pela máscara). A paixão desmascara?

A capa me surpreendeu. Marcelo Girard é um designer veterano do mercado editorial, além de artista plástico. Quando ele me mandou essa imagem (detalhe de um óleo), não havia quarentena – foi no final de 2019. Eu tinha três opções de epígrafes, mas quando a imagem chegou, não tive dúvidas e coloquei os versos do Heine. Freud responderia que a relação sexual envolve sempre quatro pessoas (risos). Kundera diria que é no sexo que revelamos o mais próximo da nossa verdade.





Nos jogos eróticos a fantasia está presente e as máscaras são itens indispensáveis. Então, a paixão nos desmascara e o que frequentemente vemos por trás das máscaras é a nossa vulnerabilidade. A paixão também esvazia nossa subjetividade, nos torna presas indefesas, e desfaz a ilusão de que temos controle sobre nossas vidas.

Outro grande atrativo dos seus livros são as referências literárias. Como uma metalinguagem, é essencial a literatura falar de literatura, isto é, personagens cultos que citam outros personagens e escritores? É uma forma de enriquecer a narrativa e atrair mais leitores?

Não acho que seja essencial. Por exemplo, a tetralogia Coelho de John Updike, uma das obras que mais amo, examina a vida de um homem comum, inculto, da classe média branca americana, um Babbit. Ali não cabe qualquer citação literária, bem como o Philip Roth em “A Pastoral Americana”. 

Agora, no meu caso, as pessoas com quem convivo e convivi desde o início da juventude pertencem a esse pequeno universo de leitores da boa literatura. Acho que você deve escrever sobre aquilo que experimenta. Certa vez, perguntaram ao Roth por que ele “falava tão mal” dos judeus e ele respondeu porque sempre conviveu com eles quando criança e adolescente e acrescentava: Por que vocês não perguntam para o Mario Puzo por que ele fala "tão mal” dos italianos?

Uma questão emblemática no primeiro conto de “Com a corda no pescoço” é a associação de traição com o mártir da Independência do Brasil. Qual a natureza da traição, por que traímos? A corda no pescoço seria a monogamia? A fidelidade? A necessidade de trair? 

Nasci em 1968, no “verão do amor”, na década da utopia e de sua brevidade. Claro que não vivi isso, mas quando me tornei adulto nos anos 80, testemunhei o refluxo dessa liberdade, com a aids e o retorno do conservadorismo, e neste século, o conservadorismo transformou-se no pesadelo da intolerância e do fundamentalismo, que vem de toda parte, diga-se, não apenas das religiões. A traição sempre foi o principal inimigo dos regimes totalitários.





Mesmo hoje, sobretudo, as mulheres – ao menos em parte do mundo – podem dispor do seu corpo sem serem condenadas à fogueira, a traição permanece sacralizada. Paradoxalmente, até mais do que antes. Fala-se em traição digital, por exemplo. Talvez não sejamos tão livres quanto imaginamos. A fidelidade permanece como valor absoluto. No conto “Se não fosse a Lua”, há uma ruptura disso, ou ao menos um respiro. Não à toa, é o único conto onde os protagonistas são jovens, ou estão se despedindo da juventude.

As protagonistas do livro são mulheres, mas os narradores são homens, digamos, “legais”, não são canalhas. Por que essas figuras masculinas para narrar universos femininos? A insatisfação feminina é inerente ao “mau” comportamento masculino?

Não sei se são legais. Penso neles como testemunhas impotentes diante das situações, dos conflitos amorosos. Impotentes e silenciosas. Eu queria muito “ouvir” a voz das mulheres. Acho o discurso feminino fascinante, louco, desvairado, imprevisível e absolutamente sedutor. Rascunhei um conto na primeira pessoa, mas não funcionou. Às vezes, funciona. “Elizabeth Costello”, do Coetzee, é uma novela admirável na voz em primeira pessoa de uma mulher.

A solução que encontrei foi escutá-las, como se estivesse de mãos amarradas, à exceção do terceiro conto. Acho que os conflitos amorosos sempre existiram e estão na fundação da literatura: foi por causa da disputa por uma mulher que a Guerra de Troia foi deflagrada dando início à literatura no Ocidente. Insatisfação haverá sempre, mesmo entre duas pessoas do mesmo sexo. Paz, só a dos cemitérios, se você me permite o clichê.





(foto: Editora Reformatorio/Divulgação)

TRECHO DO CONTO “O TOCADOR DE TRIÂNGULO”

“Não há nada que eu deteste mais que a tirania. Lutei a vida toda contra a prepotência dos homens Primeiro contra meu pai, o marido sedicioso, o manipulador frio para o qual minha mãe e eu não passávamos de fantoches, o enganador que escondia sua frustração atrás da arrogância autoritária. Depois meu padrasto, o mestre da farsa, o misógino mendaz, traiçoeiro, perverso, o carrasco cuja sagacidade conseguiu colocar a mãe contra a própria filha.

Então, veio aquele traste com quem fiquei casada por cinco anos, cinco anos desdenhosos, nos quais tudo o que ele fazia era fumar maconha na frente do teclado o dia inteiro e exigindo na hora que lhe desse na telha eu trepasse com ele. 'Você não faria isso com o Keith Jarrett?', ele me perguntava, e eu, a idiota, a tonta, achando que me unira ao Chopin do final do século 20, cedia. Então, no meio da madrugada, eu o ouvia esmurrar as teclas do piano e rasgar o que passara o dia todo escrevendo. E o escroto ainda botava a culpa em mim. 'Um gênio não pode se preocupar com outra coisa senão com sua arte', o filho da puta me dizia só porque eu lhe pedia para ir ao banco pagar uma conta. Eu trabalhando igual a uma desgraçada para sustentar uma fraude.

Quatro anos de escravidão! Quatro aninhos jogados fora no auge da minha beleza, e nesses quatro anos envelheci 20 anos. Enquanto passava o dia numa merda de emprego, posando de funcionária-modelo, o maconheiro fodia com as piranhas, que acreditavam estar diante do cara que ia revolucionar a música! Depois foi a vez do portuguesinho de merda, o alfacinha venenoso e covarde, incapaz de matar uma barata.

E agora, depois de mandar o débil mental para a puta que o pariu, e conseguir um novo emprego para ganhar cinco vezes mais, quando tudo parecia finalmente entrar nos eixos e eu finalmente ganhar minha alforria, me aparece outro ditadorzinho para me assediar. Se eu tivesse uma arma juro que descarregaria um ente inteiro no meio do pau mole e do saco muxibento desse velho nojento. Ah, pelo amor de Deus, Filipe, o que é que faço”.




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