Jornal Estado de Minas

ROMANCE

Cormac McCarthy reinventa o western no livro 'Meridiano de sangue'

Poeira nos olhos, areia nos dentes, cheiro e gosto de morte: “Meridiano de sangue” é a obra-prima que canta, até as raias do indizível, o morticínio que caracteriza o desvario humano. Quinto romance de Cormac McCarthy (nascido em 1933), sucedeu ao primeiro grande livro do autor, “Suttree”, antecedeu a célebre “Trilogia da fronteira” (“Todos os belos cavalos”, “A travessia” — seu melhor livro, a meu ver — e “Cidades da planície”) e marcou sua descida, por assim dizer, da região dos Apalaches para o conflagrado Sudoeste norte-americano.



O livro, traduzido por Cássio de Arantes Leite, acaba de ser relançado pela Alfaguara em bela edição (a anterior, com o título “Meridiano sangrento — O anoitecer vermelho no oeste”, saiu pela Nova Fronteira em 1991).

“Meridiano” é, em parte, inspirado em eventos reais. Em meados do século 19, seu protagonista anônimo, referido apenas como “kid” na maior parte do livro, junta-se à gangue de caçadores de escalpos liderada por John Joel Glanton. No bando, destaca-se o juiz Holden, um dos personagens mais aterradores (re)criados pela literatura ocidental: “Um sujeito enorme vestindo um impermeável de oleado entrara na tenda e removera o chapéu. Era calvo como uma rocha e não tinha traço de barba e nenhuma sobrancelha acima dos olhos, tampouco cílios. Ultrapassava os dois metros e dez de altura e continuou fumando seu charuto até mesmo ali naquela tenda nômade de Deus”. Em sua primeira aparição, Holden adentra a capela improvisada apenas para difamar o pregador, dizer que ele é o diabo e instigar o populacho contra o infeliz. É uma de suas muitas travessuras, por assim dizer. Fogo, caos e morte caminham com ele na “noite que é eterna e sem nome”.

Quando de seu lançamento, em 1985, “Meridiano” foi encarado por alguns como uma espécie de renovador do western. Gênero norte-americano por excelência, seja na literatura, seja no cinema (não obstante as investidas de cunho pós-modernista e paródico de gênios europeus como Sergio Leone), a verdade é que o western já havia passado por diversas renovações desde meados do século 20 pelas mãos de cineastas como Nicholas Ray, Sam Peckinpah e George Roy Hill, e de escritores como Oakley Hall, cujo “Warlock” (1958) foi finalista do Pulitzer, e Charles Portis, autor do excelente “Bravura indômita” (1968, também lançado no Brasil pela Alfaguara).



E aqui cabe um parêntese sobre o trabalho de McCarthy com o cinema e a televisão: “Onde os velhos não têm vez”, roteiro depois novelizado pelo próprio escritor, rendeu a obra-prima de Joel e Ethan Coen; “A estrada” foi adaptado por John Hillcoat; “O conselheiro do crime”, um roteiro original, talvez seja um dos filmes mais subestimados da década passada, de Ridley Scott; e, na TV, a série “Visions” trouxe um episódio assinado por McCarthy em 1977 (“The gardener’s son”) e a HBO produziu uma adaptação da peça “The sunset limited” por Tommy Lee Jones. Aliás, essa peça teve uma boa montagem brasileira ali por 2012, dirigida por Fábio Assunção.

Voltando aos livros e westerns, não custa lembrar que o mesmo ano de 1985 trouxe o premiado “Lonesome Dove”, de Larry McMurtry, que pode ser encontrado pelos sebos com o título “Pra lá do fim do mundo” (editora Best Seller, tradução de Jacyr Pasternak). Ou seja, quando McCarthy lançou “Meridiano”, o gênero já estava calejado de intervenções heterodoxas e reimaginações de todos os tipos, mas é claro que nada disso diminui o impacto e a originalidade da investida.

A extrema violência de suas páginas, amplificada pela sintaxe particularíssima do autor, é inserida em um contexto no qual dançam, entrelaçados, os ecos de um helenismo há muito corrompido, as vozes de outros gigantes da literatura e a luz baça de um gnosticismo enviesado. São como os galhos da árvore esturricada que aparece a certa altura — “Era uma árvore solitária queimando no deserto”; “Quando o sol surgiu, ele jazia adormecido sob o esqueleto fumegante de galhos enegrecidos”.



Na aridez desse espaço, em tal ambiente narrativo, o mal desce como “uma praga de granizo saída de um céu imaculado” e a catábase me parece externa ao livro, na medida em que é operada pelo leitor no ato de palmilhar suas páginas: os personagens vagueiam, e nós descemos até eles, “cada um percorrendo o caminho pelo qual o outro viera, perseguindo, como cabe a todo viajante, inversões sem fim das jornadas de outros homens”.


Representação da violência

No consórcio com tais “ânimas”, a brutalidade nos arranha e por vezes quase arranca os olhos com sua gratuidade absoluta. Os desinteligentes que procuram por elementos que “justifiquem” as passagens violentas darão com os burros n’água, para variar. Em McCarthy, encontramos aquelas “tão extravagantemente crudelíssimas espécies de matanças” a que Vico se refere na “Ciência nova”, referindo-se à “Ilíada”, de Homero.

A representação da violência é algo tão virtuosístico que, de fato, a lembrança do poema homérico está longe de ser gratuita. A ira de Aquiles inaugura a literatura ocidental em meio à guerra e com um rio de sangue (pergunte ao Escamandro). À certa altura de “Meridiano”, o juiz Holden faz sua célebre digressão sobre a guerra como “a forma mais legítima de divinação”, “o jogo supremo” e “um forçar da unidade da existência”. “A guerra é Deus”, ele arremata. Nadamos no mesmo rio de águas rubras, embora a margem da qual saímos já quase não esteja visível.



Ao consórcio supracitado, soma-se a conversa com a tradição (ou com o que resta dela). Há inúmeras citações e paralelos no texto de McCarthy, e muitos deles apontam para aquelas “inversões sem fim” e travessias. É nesse espírito que o velho menonita que admoesta os personagens ainda no começo do romance (“Cruzem aquele rio com seu exército de flibusteiros e não vão cruzar de volta”) remete ao “profeta” que Herman Melville recriou em “Moby Dick” (“De qualquer modo, já está combinado e determinado; imagino que alguns marinheiros tenham que ir com ele; de uns e de outros, que Deus tenha piedade!”).

Aludi às raias do indizível no primeiro parágrafo. De fato, o sentido da descida mccarthyana é na direção da fumaça e dos fantasmas: em seu desfecho, a violência final é tão aterradora que não pode ser descrita, é um além ou aquém do verbo, um aceno decisivo, apocalíptico. Ali estão os “últimos de verdade”, e um deles, apesar de todas as viagens e aventuras, ainda não parece preparado para o abraço do nada, para a dança derradeira. Mas, por outro lado, quem está, não é mesmo?

*André de Leones é autor do romance “Eufrates” (José Olympio), entre outros

Trecho

“Ele se levantou e virou na direção da cidade e suas luzes. Poças de maré brilhantes como cadinhos de fundição entre as rochas escuras onde caranguejos fosforescentes escalavam de volta. Ao passar pelo capim da praia, ele olhou para trás. O cavalo não se movera. A luz de um navio piscou entre as vagas. O potro recostava no cavalo com a cabeça baixa e o cavalo tinha os olhos fixos ao longe, onde o entendimento humano não alcança, onde as estrelas se afogam e as baleias carregam suas vastas almas pelo oceano negro absoluto.”

Livros de Cormac McCarthy traduzidos no Brasil

“Todos os belos cavalos” (1992)
“A travessia” (1994)
“Cidades da planície” (1998)
“Onde os velhos não têm vez” (2005)
“A estrada” (2006)

Meridiano de sangue
Cormac McCarthy
Tradução de Cássio Arantes Leite
352 páginas
R$ 69,90