Jornal Estado de Minas

GUIMARÃES ROSA

Luiz Carlos de Assis Rocha lança roteiro para ajudar travessia das veredas

Está entre as obras mais reverenciadas da literatura brasileira. Integra a lista dos melhores do mundo. Mas ainda mais espantoso do que a genialidade da escrita e a universalidade das dores existenciais que transbordam de Riobaldo, jagunço do grande sertão dos “gerais”, é o fato de serem poucos aqueles que se atreveram a ler, do início ao fim, “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa. A constatação é de Luiz Carlos de Assis Rocha, professor de linguística da UFMG, doutor na linguagem rosiana, fundador, ao lado da esposa, Maria Esther, da Sociedade dos Amigos de Guimarães Rosa (Sagro).





A genial obra de Guimarães Rosa – que faz da escrita a profissão de fé, atira-se sobre o “ileso gume do vocábulo pouco visto e menos ainda ouvido”, em cada palavra identificando “canto e plumagem” – é mesmo difícil de ser lida, assimilada, compreendida. Nunca por inteiro, mas em partes, revela-se nas releituras. Afinal, ao estilo do autor, que em Riobaldo desafia o caráter ambíguo da existência – esse estado entre o nascimento e a morte – em permanente “por fazer” sem nunca “estar pronto”, em cujo percurso é que se constrói algum sentido: “o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. 

Para atravessar a floresta de malabarismos linguísticos de Guimarães Rosa – e já que o que a vida “quer da gente é coragem” –, Luiz Carlos de Assis Rocha escreveu “Para ler Grande sertão: veredas” (Páginas Editora). É um bem- elaborado roteiro, construído após décadas de estudo minucioso de palavras e expressões da obra, que ajudam a mergulhar nesse romance oralizado, verdadeiro estímulo contra a resistência à leitura difícil. 

Superada a hesitação, contudo, o sertão se impõe. Ele é a expressão da natureza ambígua das circunstâncias de vida do ser humano e de Riobaldo –  em constante tensão entre o ser e o não ser: a sua paixão por Diadorim –  homem ou mulher? – a presença de Deus ou será do diabo? Permanentemente à beira do abismo – já que “viver é perigoso” –, Riobaldo, o jagunço-sertanejo, busca certezas na incerteza da existência. Essa procura, afinal, integra o rol das inquietudes humanas. São tais as tensões entre o nascer e o morrer – características da travessia – permeada pela “nonada” – coisas insignificantes, ninharias – ou será a travessia fustigada pelo “nada”, enquanto a busca do possível; e o “não”, a delimitação desse possível? 

Publicado originalmente em 1956, “Grande sertão: veredas” revolucionou a literatura brasileira e continua instigando renovadas interpretações dessa obra, que atribui ao sertão dos “gerais” – que compreende o Norte de Minas, o Sul da Bahia e ainda o Leste de Goiás –, a sua dimensão universal, em mergulho profundo na alma humana e na experiência da vida, retratada pelo amor, pelo sofrimento, pela força, pela violência e pela alegria. “O texto começa com um travessão, com a fala de Riobaldo, conclui-se que todo o livro é um monólogo, dirigido a um interlocutor, possivelmente Guimarães Rosa.



Como ponto de partida para a leitura, temos de considerar algo óbvio: Guimarães Rosa é um falante normal da língua portuguesa. Essa intuição linguística do falante permite a ele uma ampla liberdade no uso do idioma, levando-o a se utilizar de certos recursos que geralmente não se encontram em um falante comum”, explica Luiz Carlos de Assis Rocha. 

Diferentemente da afoita conclusão de alguns, a linguagem de Guimarães Rosa não é uma cópia da fala do sertão (os “gerais”), afirma Assis Rocha. “A língua falada dos gerais superpõe-se à língua comum, com uma marcante influência na construção desse espaço linguístico, com palavras, expressões, frases feitas, provérbios, sempre perpassados pelo filtro original da criação rosiana”, considera o estudioso. Ao mesmo tempo, apesar do discurso fortemente marcado pela língua falada, trata-se de um texto escrito. “Aí é que reside a magia do artista: de tal forma que enfeitiça o leitor, que este não percebe que as regras da língua escrita são fortemente preservadas”, avalia o professor.

É assim que as flexões nominais de gênero e número, as flexões verbais – pessoa, número, tempo e modo –, a colocação dos membros na oração, a concordância nominal e verbal, as regências, enfim, as categorias gramaticais são empregadas, em sua maioria, de acordo com os parâmetros da língua escrita”, aponta o autor. 





Ao mesmo tempo, Guimarães Rosa utiliza variados recursos estilísticos relacionados a estratos distintos da língua – fonética, morfologia, sintaxe, discurso, poética, semântica. É o caso, por exemplo, da original adjetivação de Guimarães Rosa, que muitas vezes dificulta, segundo o professor, estabelecer o elo entre o substantivo e o adjetivo, mas que alcançam um efeito linguístico único. E exemplifica, em citação das reflexões de Riobaldo, sobre o seu amor por Diadorim: “... eu olhava para os braços dele – tão bonitos braços alvos (...)”. Ou adiante, em outra passagem: “(...) e concebia por ele (Diadorim) a vexável afeição que me estragava”. 

É com esse apoio, portanto, que o leitor interessado poderá encarar o desafio, para depois compartilhá-lo com outros apreciadores da literatura. Pois, afinal, como diria o compadre Quelemém, “um homem fora de projetos”, ao seu interlocutor: “Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho....”

ENTREVISTA

Luiz Carlos de Assis Rocha 

‘‘é aconselhável que quem queira ler tenha uma orientação, porque realmente é difícil’’

O que torna a obra de Guimarães Rosa tão importante na literatura brasileira e mundial? 
Guimarães Rosa publicou vários livros, mas os mais importantes são “Grande Sertão: veredas” e “Corpo de baile”. Ele se serve do ambiente do sertão brasileiro, se serve do interior, principalmente de Minas Gerais, para descrever a natureza, a paisagem, os rios, as lagoas, as florestas, os animais e as plantas. Mas o mais importante na obra dele é o fato de escrever sobre o ser humano.



O personagem principal, Riobaldo, é um homem que retrata as suas aventuras e desventuras na vida, e ao narrar as suas andanças pelo sertão, vai falando sobre a vida, a morte, o interior das pessoas, o destino do homem, sobre Deus, o diabo, e traça um quadro muito profundo sobre o amor que tem por Diadorim.

Como o senhor percebeu que, apesar de muito cultuado e louvado, poucos leram “Grande sertão: veredas”?
Guimarães Rosa é autor muito admirado, há peças teatrais, séries, artigos. Fala-se muito em Guimarães Rosa, mas na verdade, muitas pessoas não leram “Grande sertão: veredas” do princípio ao fim. Nos cursos que ministro sobre o autor, sempre fazia um levantamento. Muitas pessoas confessavam que nunca tinham conseguido ler. Então, temos dois grandes grupos: aqueles que começaram a ler e não terminaram, e aqueles que nunca leram.

Fiquei preocupado com isso e queria encontrar um meio para que esse grande escritor fosse lido. Talvez aconteça com ele o que ocorreu com Euclides da Cunha. Um livro muito louvado, mas pouco lido. Comecei a pensar o que eu poderia fazer para que as pessoas consigam atravessar essa floresta que é a linguagem de Guimarães Rosa. Cheguei à conclusão de que seria interessante escrever o livro para auxiliar as pessoas. 





Ao longo de todo o relato de Riobaldo, Diadorim se apresenta como um jagunço do bando dele, por quem nutre grande atração e amor. Somente depois da morte de Diadorim, Riobaldo percebe que se trata de uma mulher, portanto, mais uma ambiguidade na obra. Seria uma forma mais palatável utilizada por Guimarães Rosa para abordar a homossexualidade no início do século passado?
A relação entre Riobaldo e Diadorim é um dos pontos altos da obra. Guimarães Rosa a descreve com muita intensidade. Acho que Riobaldo, apesar de se envolver muito com Diadorim, não trata da questão da sexualidade explicitamente. Ele simplesmente gosta muito, se sente atraído por Diadorim, e ele mesmo não compreende essa atração. Várias vezes censura a si mesmo, estranha muito o fato de estar atraído por um homem.

Quando li o “Grande sertão: veredas”, não desconfiei de que se tratava de uma mulher. Mas sendo a obra literária, a interpretação pode variar de pessoa para pessoa. Particularmente, acho que o livro passa longe de discutir a questão da homossexualidade. Não acho que foi a intenção do Guimarães. 

“Grande sertão: veredas” aborda fatos verídicos ou há passagens ficcionais?
O ambiente em que ocorrem os acontecimentos, o sertão, a parte Norte de Minas, cita cidades, regiões, rios, lagoas, regiões que existem, podem ser comprovados. Mas a história, a trama é ficção. É pura ficção. Ele inventa a história do Riobaldo, o fato de ele fazer parte de um bando, o fato de ele querer vingar a morte de um chefe, o fato de encontrar com vários colegas e o que aconteceu com Diadorim. 





Euclides da Cunha, em “Os sertões”, tem um tempo histórico bem definido – entre 1896 e 1897 – período entre a queda da monarquia e a instalação do governo republicano no Brasil. E é ali, no sertão baiano, “insulado no país que não o conhece”, que se passa a história da fundação do arraial de Canudos por Antônio Conselheiro e o genocídio da guerra de Canudos, aberta pela jovem República contra os sertanejos. Qual é o tempo histórico de “Grande sertão: veredas”? 
Nessa obra de Guimarães Rosa não há preocupação com o momento histórico. Dificilmente cita um fato histórico. Por acaso, cita a passagem de Luís Carlos Prestes pelo sertão, que deve ter sido por volta de 1926, 27, 28, por aí. Cita uma só vez a capital de Minas. A obra cita algumas cidades do interior de Minas – Curvelo, Sete Lagoas, Montes Claros, Januária, mas com relação à história política, praticamente nada. É uma obra que está mais ligada à questão da terra do que à questão temporal. Assim como Euclides da Cunha em “Os sertões”, há outros romances que podem ser vinculados a momentos históricos. Outro grande livro brasileiro, “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, ligado à seca do Nordeste. Em “Grande sertão: veredas”, e vemos também em “Corpo de baile”, os fatos, a história se passam mais ou menos no início do século 20. Alguns estudiosos entendem que entre 1910 e 1920. Mas a obra percorre um grande espaço de tempo. 

Quais são os recursos estilísticos mais empregados por Guimarães Rosa?
Guimarães Rosa não seria Guimarães Rosa se não tivesse usado o tipo de linguagem que usou. Para descrever esse mundo luxuriante, maravilhoso do grande sertão, é preciso linguagem luxuriante, uma linguagem própria, específica. Por isso, não vou dizer que inventou uma língua, mas usou como base a língua do sertão de Minas e trabalhou muito em cima dessa linguagem, criando um estilo muito diferente. Usou muitas palavras que já existiam na língua portuguesa e eram pouco conhecidas.

Também criou palavras, os neologismos, pelos sufixos, prefixos, composição de palavras. Além disso, Guimarães Rosa usa muito de outros meios. Por exemplo, como “Grande sertão: veredas” é um romance oralizado, sabemos que Riobaldo está na varanda de uma fazenda já aposentado e recebe a visita de um senhor, para quem começa a contar as aventuras pelas quais passou, os problemas pelos quais passou, e todas as preocupações filosóficas e humanísticas que tinha. Então ele usa muitos efeitos fonéticos, como o que chamamos de aliteração, a repetição de sons idênticos ou parecidos. Um outro fenômeno, a onomatopeia, a reprodução de sons que existem na vida, de animais que se deslocam de lugar, da água do rio, de vento.




E usa outros recursos. Toma a frase normal da língua portuguesa e inverte a posição dos termos da oração; usa frases que nem são frases da língua portuguesa. Os autores costumam dizer que a grande invenção de Guimarães Rosa foi a sintaxe, a estruturação das frases, como a semântica, que estuda a significação das palavras. Ele coloca em seu livro várias palavras com sentidos aproximados e sentidos diferentes. E o leitor custa a entender a significação. Em várias passagens a leitura se torna realmente árida. Por isso é aconselhável que quem queira ler tenha uma orientação, porque realmente é difícil. 

“Para Ler Grande Sertão: Veredas”
Luiz Carlos de Assis Rocha
Páginas Editora
383 páginas
R$ 44,90
R$ 139

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