A poesia brasileira do século 20 inclui dois mineiros na sua linha de frente: Drummond e Murilo Mendes – muito estudados e já traduzidos em vários idiomas. São poetas incontornáveis, de leitura fundamental para o conhecimento da melhor poesia produzida entre nós.
Numa faixa intermediária – marcos de referência – situam-se os também mineiros Emílio Moura e Henriqueta Lisboa; e poetas de menor destaque, mas com dicção e personalidade próprias, como Abgar Renault, Dantas Mota e Bueno de Rivera. Todos eles surgem num espaço demarcado, que vai do modernismo à chamada Geração de 45 (ou seja, antes do período aberto pelas vanguardas dos anos 1950/1960).
Seguem aqui algumas notas sobre Emílio, Henriqueta, Abgar, Dantas e Bueno – mais especificamente, sobre certos livros deles que chamam a atenção pela singularidade e criatividade. Uma forma de relembrá-los e, talvez, despertar nos possíveis leitores o interesse em conhecer suas obras, um tanto esquecidas hoje.
Poesia secreta
Descobri, em meio a volumes empoeirados, um velho e belo livro, quase um livro-objeto, de aparência próxima a uma plaquete, folhas soltas em papel ingres – abrigadas, delicamente, entre capas cinza claro, cartonadas, com o nome do autor e o título impresso em tinta verde: Emílio Moura – “O instante e o eterno”. Na margem de baixo, a pequena imagem de um hipocampo (um cavalo-marinho). Logo depois, a editora e a data: Edições Hipocampo, 1953.
Segue o texto do colofão: “Composto a mão, este é o décimo nono livro das “Edições Hipocampo” e acabou de imprimir-se a 1 de novembro de 1953, em Niterói. Tiraram-se cento e dezesseis exemplares em papel ingres, autenticados pelo autor: de 1 a 100 para os subscritores, de I a X para o poeta, de A a F para os editores Geir Campos e Thiago de Mello. A ilustração (fora do texto) é de Farnese”.
A rara edição permite o reencontro com a poesia do lírico modernista (quase um tardo-simbolista), de voz solitária e verbo sutil; interrogações e sensações poéticas evanescentes. Poesia límpida de Emílio (1902-1971); também substancial e abstrata – bem definida nas palavras certeiras de Drummond: “Em Emílio Moura, profissional da interrogação, a poesia se elabora no eterno debruçar-se sobre as alheias e próprias superfícies. Ele nada sabe de sua condição, nem de onde vem, nem para onde vai”.
“O instante e o eterno” nos apresenta uma poesia quase secreta que, embora não fosse anacrônica e passadista, situava-se, de alguma maneira “fora de seu tempo”. Emílio usou formas fixas e também o verso livre, mas não se voltou para o humor nem praticou o chamado poema-piada; a ironia (ou autoironia) crítica e o mero coloquial – marcas do modernismo. Antes, seu tom é elevado e “grave”; uma poética metafísica. Como no soneto de título shakespeariano “To be or not to be”, com ressonâncias de Fernando Pessoa:
“Desejo de sentir que ora não penso,
ou que penso e o que penso é não vivido.
A alma retrai-se; o espírito, suspenso,
detém-se: é fio irreal interrompido”.
Emílio Moura: um poeta único; nem grande, nem pequeno – com sua medida e peso próprio. Indiferente a modas e movimentos, construiu uma obra sóbria e sombria (veja-se o seu “Itinerário poético”, da Ed. UFMG, lançado em 2002).
Percorrer as páginas soltas desse livro de Emílio – que merece ser reeditado em fac-símile – é redescobrir uma voz e uma dicção refinadas: um poeta do instante e do eterno.
Reverberações
Em 1976, Henriqueta Lisboa (1901-1985) lançou um pequeno livro, em edição bastante simples (na certa, custeada pela própria autora e impressa na Gráfica da Editora São Vicente, em Belo Horizonte). Trata-se de “Reverberações”, uma série de pequenos poemas, de apenas quatro versos (ou linhas), que difere em muito do restante de sua obra.
Henriqueta (que também foi ensaísta e tradutora de Dante, Gabriela Mistral, Ungaretti e Jorge Guillén, entre outros poetas) criou um padrão formal nesse livro: células poéticas desenvolvidas a partir de substantivos escolhidos e colhidos no dicionário, seguindo a ordem linear das letras do mesmo, indo do A até o Z. Dessa maneira ela compõe breves conjuntos de poemas – reverberações sonoro-semânticas.
E o que são reverberações? A própria poeta inscreveu no pórtico de seu livro os significados dos vocábulos reverberação, reverberar e revérbero, segundo o “Novo dicionário Aurélio”. Logo abaixo, há uma epígrafe do poeta futurista russo Khlébnikov (1885-1922) com considerações sobre a palavra – que para ele possuía “uma vida dupla”: ora estava em função poética (cristal sonoro), ora em mera função comunicativa, a serviço da razão.
Reverberações são reflexos (de som, luz ou calor), propagações e incidências; no caso desse livro de Henriqueta, reverberações de palavras umas nas outras, resultando em imagens poéticas. Um exemplo:
FULGOR
Olhos cintilantes
de alerta
ao fascínio
da descoberta
Henriqueta cria poemas brevíssimos, brilhos verbais sobre a página que vão compondo uma sequência poética; uma cadeia ou entrelaçamento de imagens que, afinal, resultam num quase poema longo composto de fragmentos luminosos. A leitura pode ser feita de maneira convencional ou linear, ou mesmo ao sabor do acaso, com o leitor pulando as páginas inteiramente à vontade, indo adiante e voltando, aliás, como muita gente gosta de ler livros de poesia. Cada fragmento é uma surpresa, um flash poético.
“Reverberações” merecia uma reedição em separado (embora integre a edição das poesias completas de Henriqueta, editada pela Livraria Duas Cidades, em 1985, e, mais recentemente, tenha sido incluído no primeiro volume das “Obras completas”, lançada pela editora Peirópolis). Trata-se de um livro diferente na trajetória dessa poeta moderna, mas que manteve sempre em sua obra um acento neossimbolista – tanto no conteúdo, quanto na forma. Esse livro é um diamante raro, ainda a ser devidamente lapidado pelos estudiosos e críticos. Traz uma poesia translúcida e minimalista. Versos (ou linhas) que levitam: “voar de leves/neblinas claras/nas vacâncias/da madrugada”.
Sofotulafai
O leitor deve estar se perguntando o que quer dizer essa palavra aí no intertítulo. Com toda razão. Ela é estranha e longa. “Sofotulafai” é o título de um livro-poema do poeta e tradutor Abgar Renault (1901-1995) – trata-se do nome de uma cidade da Ásia. Ou seja, desde o título o volume já se coloca sob o signo do estranhamento.
Segundo o colofão, o livro foi escrito em 17, 18, 26 e 27 de agosto de 1951, mas só foi publicado em 1972, numa edição da Imprensa da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Dessa edição foram tirados, em papel Chambril, 40kg, 400 exemplares, fora do comércio, assinados pelo autor. A bonita e elegante publicação (hoje, uma raridade bibliográfica) é toda ilustrada por criativos desenhos/grafismos concebidos pelo artista plástico Márcio Sampaio.
Identificado como um autor da geração modernista, Abgar Renault nunca se encaixou de fato nela. Foi um poeta que sempre manteve uma individualidade marcante e uma originalidade peculiar. Profundo conhecedor do idioma e da arte poética, Abgar foi um exímio sonetista, um raro artesão do verso e das formas fixas (sua obra poética foi editada pela Record, em 1990).
Em “Sofotulafai” surpreendeu todos ao conceber um poema longo que consegue unir tradição e experimentalismo a um só tempo. Segundo Drummond, “Sofotulafai” é um “estranho, extraordinário poema de sabor clássico/vanguardista”. Abgar utiliza uma grafia antiga com letras dobradas e palavras sem acento (mysteriosas; nocturnas; colloquios etc.), mas incorpora elementos sonoros e visuais (chega até o caligrama, à maneira de Apollinaire), mistura o português com outras línguas (o francês e o inglês), funde e inventa vocábulos – enfim, torce e contorce as palavras. Aliás, estas são o leitmotiv do longo texto poético de Abgar.
Seu tema é a própria palavra, a vida e o mundo refletidos no objeto livro. Inclusive, há até um diálogo entre livros, em meio a outros objetos, numa biblioteca-escritório. Leia-se, por exemplo, este trecho (com a sua peculiar e anacrônica grafia, ausência de certos acentos e letras dobradas):
Conversam livros frívolos e sabios,
jorram sentenças de invisíveis labios:
- “Há quatros annos cheguei e adormeci;
não me tocou, jamais me tocará.
Para que fui comprado ainda não sei...”
- “Pois eu já fui aberto muitas vezes,
lido e relido, e sei que sou amado”.
Substantivos e verbos volteiam nas páginas, vogais e consoantes unem-se e separam-se no espaço branco, dando forma a um poema babélico, uma “instalação” verbal entre capas onde “os homens vivem, morrem por signais;/tudo tem seu signal, ou raso ou fundo”. Até que o mundo acabe e silencie, como proclamam os versos finais de Abgar neste provocante e criativo “Sofotulafai” – digno de ser reeditado, é claro, em fac-símile, com os tipos e imagens originais que o caracterizam como um livro único, extraordinário como observou Drummond.
O poeta de Aiuruoca
“Este é o País das Gerais./Não veio das estradas do Sul,/Nem se formou no Setentrião./Quando Maçaranduva se engravidou,/Entre rosas e flores nas rochas,/O peito da terra empolou,/E rios subiram e não desceram./Desde então, o País das Gerais,/Que era manso e tranquilo/Como um leito, se tornou severo/E duro como um cepo” – verbo & voz de Dantas Mota (1913-1974), o poeta de Aiuruoca, pequena cidade do sul de Minas: o nome é de origem tupi – Ajuruoka: ajuru (papagaio), oka (casa); ou seja, “casa de papagaio”.
Desconhecido e esquecido, Dantas é autor, entre outros, dos livros “Elegias do País das Gerais” (de onde foram retirados os versos acima) e “Primeira Epístola de Jm. Jzé da Sva. Xer., o Tiradentes – aos ladrões ricos”. O poeta foi advogado muito atuante em todo o Sul de Minas e no Vale do Paraíba; viveu sempre em Aiuruoca, mas mantinha contato com escritores no Rio, em São Paulo e Belo Horizonte – sua obra completa saiu pela Ed. José Olympio, em 1988.
Dantas criou um estilo único: versos longos e derramados – influenciados pelos versículos bíblicos, com um “ritmo lento e severo”, segundo Drummond –, que escorrem como as águas barrentas do Rio São Francisco, forte presença na sua obra. Trata-se de uma poesia irregular, com seus altos e baixos; um tanto estranha, rústica e telúrica, com conteúdo social (não meramente ideológico).
Biografemas: Dantas curtia muito um papo, regado a pinga e acompanhado por cigarros de palha (contava sobre suas andanças de advogado, a cavalo, no entorno de Aiuruoca). Embora fosse uma figura culta – leitor de autores sofisticados da literatura universal –, tinha o jeito simples do homem da roça, inclusive na maneira de falar (era uma espécie de “caipira” de sabedoria).
Além de Drummond, a poesia de Dantas chamou a atenção de, entre outros, Mário de Andrade, Sérgio Milliet e Affonso Ávila, que escreveram sobre ela. Sua linguagem impura, que incorpora lodo e limo, pede ainda estudo e avaliação crítica. É desafiante e difícil para o leitor – dura como um cepo.
Pasto de pedra
Bueno de Rivera (1911-1982) é um poeta pouco falado e lembrado, pouco lido (assim como Abgar Renault e Dantas Mota); sua obra é pequena – publicou apenas três livros. Bueno estreou em 1944 com o volume “Mundo submerso”, integrando a chamada Geração de 45, que se contrapunha à modernista, retomando formas mais tradicionais (o soneto e a elegia, por exemplo) e alguns elementos, principalmente no plano semântico, do simbolismo.
Pouco tempo depois da publicação do seu primeiro livro, Bueno lançou “Luz do pântano” (1948), mantendo a dicção e tom poético (inclusive, uma tendência surrealista). Ficou em silêncio por uns 20 anos e, surpreendentemente, reapareceu em 1971 com o volume “Pasto de pedra”, no qual renovou sua poesia. O poeta deu um salto criativo, atualizou sua produção, sob o impacto das vanguardas dos anos 1950/60; também se voltou referencialmente para Minas Gerais, seguindo a trilha aberta por Drummond e por Guimarães Rosa (este, na prosa), consolidada por Affonso Ávila no seu “Código de Minas”, de 1969, do qual sofreu, seguramente, alguma influência.
“Pasto de pedra” foi uma boa surpresa; na época de seu lançamento, chamou a atenção da crítica e dos poetas mais jovens. Com forte acento telúrico (temas e motivos mineiros como o barroco e a Inconfidência – ou ainda, elementos da pecuária e da mineração), o livro deixava transparecer o desejo de renovação da linguagem buscado por Bueno.
Há um cuidado evidente com a organização formal dos poemas – a procura de uma arquitetura própria do verso – e a utilização consciente e premeditada de recursos como a aliteração, a paronomásia, enfim, o gosto pelos jogos (e mesmo invenções) de palavra; há também a exploração do ritmo, da musicalidade e até mesmo da visualidade (por ex., no poema “Felipe e os cavalos”, onde o galope dos cavalos arrastando Felipe dos Santos é traduzido pelas palavras espacializadas na página).
Nesse livro, a poesia de Bueno ganha em síntese e objetividade, o verso é descarnado e depurado (muitas vezes é “não verso” – a simples palavra isolada com seu potencial semântico-sonoro): “Talha/corta/sulca/vinca/finca/fende/entalha/bate bate/rebate/toc-toc” (no poema “Aleijadinho: martírio e solidão”). Ou ainda: “Árvore/sapo/lobo/grilo/rola/brejo/rio/quem foi Lourenço?” (“O fantasma do Caraça”).
Publicado em 1971, numa edição bastante simples da Imprensa Oficial de Minas Gerais, “Pasto de pedra” merece uma reedição cuidada, à altura da poesia que abriga em suas páginas. Trata-se de um livro singular na trajetória de Bueno de Rivera, poeta que mostrou à época capacidade de renovação e artesania verbal. A poesia de Bueno ainda navega “no mar de Minas/mar sem porto/polimorfo”. As novas gerações precisam conhecê-la.
*Carlos Ávila é poeta e jornalista. Autor de “Bissexto sentido”, “Área de risco” e “Poesia pensada”, entre outros. Ex-editor do Suplemento Literário de Minas Gerais.