Jornal Estado de Minas

SAGA DOS JUDEUS

Lira Neto: 'O conhecimento é feito de pontos de interrogação'

A cidade de Nova York, nos Estados Unidos, é considerada uma das mais cosmopolitas do mundo. Ela é formada por cinco distritos situados no encontro entre o Rio Hudson e o Oceano Atlântico. São eles Manhattan, Staten Island, Queens, Brooklyn e Bronx. Historicamente reconhecida como um reduto do partido Democrata e de perfil progressista, Nova York é tecnológica, moderna e agitada.



Dita tendências da moda, da arte e da educação, além de oferecer entretenimento para todas as idades. E, claro, tem seus problemas, como toda megalópole. Mas será que sempre foi assim? Como foi que tudo começou? Quem estava entre os primeiros habitantes da região?

Nova York teve entre seus primeiros moradores, que desembarcaram na cidade ainda no século 17, um grupo de judeus refugiados, primeiramente da Inquisição imposta pela Igreja Católica em Portugal e, depois, da guerra entre luso-brasileiros e holandeses na Região Nordeste do Brasil, mais precisamente em Pernambuco. Hoje conhecida como Capital do Mundo, a Big Apple, então, serviu de abrigo para homens, mulheres e crianças, alguns doentes, muitos com fome e desesperados, que fugiam da violência e da intolerância, assim como seus antepassados fizeram durante toda a sua existência.

É a história dessas pessoas, que passaram a vida sendo perseguidas por causa da própria religião e que chegaram a Nova Amsterdã, colônia holandesa na costa oriental da América do Norte, em 1654, que inspirou o escritor e jornalista Lira Neto, um dos mais importantes biógrafos brasileiros da atualidade, a publicar o livro “Arrancados da terra”, que chegou às livrarias em fevereiro deste ano. O autor de “Padre Cícero” (2009) e da trilogia “Getúlio” (2012-2014), entre outros, conta que, inicialmente, queria fazer a biografia do holandês de origem alemã Maurício de Nassau, mas que, ao aprofundar sua pesquisa, se encantou pela história paralela dos sefarditas que chegaram ao Recife via Amsterdã.

Lira Neto, então, mergulha de cabeça na saga dos judeus que lutavam pela sobrevivência em Portugal, onde já se ‘matava em nome de Deus’, e descobre-se, ele mesmo, um descendente dos cristãos-novos (nome dado aos judeus convertidos forçadamente ao cristianismo), e que eram perseguidos pela Inquisição ibérica. O autor conta no livro que, durante uma viagem de trabalho a Nova York, em 2013, visitou o histórico cemitério da St. James Place e a sinagoga Shearith Israel – nome da congregação mais antiga de Manhattan – e se convenceu de uma vez por todas a mudar o foco do seu projeto.





“Arrancados da terra”, como o nome sugere, é uma homenagem aos ‘desterrados, retirantes, refugiados, apátridas, proscritos, exilados, imigrantes, degredados, foragidos, expatriados, fugitivos e desenraizados do mundo’. O motivo? Garimpa peças de um quebra-cabeça difícil de ser montado devido ao longo tempo em que os fatos ocorreram. Afinal, são histórias de sangue, violência, escravidão, fé, esperança, antissemitismo e morte, entre 1492 e 1664, difíceis de ser reconstituídas e, também por isso, ainda instigantes.

Para resgatar uma história de séculos atrás, Lira Neto precisava encontrar informações de pessoas que passaram a vida se escondendo e tentando apagar vestígios. Desse modo, fez pesquisas na biblioteca de Nova York, visitou os arquivos da Torre do Tombo, em Lisboa, consultou acervos na Holanda, e foi, assim, ligando alguns pontos, encontrando vínculos, para que o leitor pudesse se situar no tempo. Até que, enfim, definiu o primeiro fio condutor da narrativa: o judeu Gaspar Rodrigues Nunes, que posteriormente passaria a ser identificado como Joseph ben Israel.

Esse homem foi um dos condenados, torturados e presos pela prática do judaísmo em Portugal. Em determinado momento, ele consegue fugir para Amsterdã, cidade com grande tolerância religiosa para os padrões da época, considerada, então, o ‘centro econômico do mundo’, onde a saga do êxodo sefardita tem sequência com outros personagens, até a chegada dos cristãos-novos a Pernambuco. Ou seja, o livro acaba sendo uma espécie de ‘biografia coletiva’ ao retratar séculos de luta do povo judeu por sobrevivência. Um exercício minucioso de investigação, atento aos detalhes e mistérios que ficaram sem resposta durante muito tempo.





A narrativa tem prosseguimento em Recife, a Jerusalém dos Trópicos, invadida pelos holandeses em 1630. Muitos judeus migraram da Holanda para o Nordeste brasileiro com a intenção de produzir açúcar, importante artigo que movimentava as redes de comércio transatlântico da época. Mas, para isso, os sefarditas também sequestravam negros africanos para o trabalho escravo durante o período colonial no Brasil. Com o passar do tempo, os refugiados da Península Ibérica começam a sofrer discriminação por parte da maioria católica da região e dos sacerdotes calvinistas holandeses que vinham ao país, o que os obriga a fugir novamente.

Interessante destacar que, em seu pós-escrito, o biógrafo cearense Lira Neto afirma que a chegada dos judeus a Manhattan, em setembro de 1654, é referendada pela maioria dos historiadores brasileiros e estadunidenses. Porém, do ponto de vista documental, reconhece que o episódio ‘se sustenta mais em inferências circunstanciais do que em evidências históricas’. E conclui: ‘Estabeleceu-se, assim, o que hoje pode ser considerado um dos principais mitos de origem da fundação de Nova York’. O escritor não escolhe o lado dos que consideram o evento uma ‘mera contrafação histórica’ nem dos que o assumem como ‘verdade irrefutável’. Desse modo, atiça a curiosidade dos que gostam de uma boa história. Confira, a seguir, uma entrevista com o autor.


Qual foi a parte mais difícil da pesquisa?
Alguns personagens do livro são pessoas que, devido à condição de fugitivos, levaram a vida tentando apagar e silenciar os vestígios da própria existência. Isso é um elemento complicador do ponto de vista documental. Muito do que sabe desses indivíduos deve-se ao que consta em inquéritos eclesiásticos e judiciais movidos contra eles.



O que tornou necessário seguir a lição de Walter Benjamin, de ‘escovar a história a contrapelo’, ou como disse Carlo Ginzburg, de ‘fazer surgir vozes incontroladas’, ou seja, ler os documentos contra a intenção com os quais eles foram produzidos. Além disso, as fontes primárias eram velhos manuscritos do século 17, o que impôs desafios de leitura paleográfica e a consulta a dicionários de época, pois os sentidos das palavras nem sempre permaneceram os mesmos de lá até aqui.

Quais as descobertas que mais o deixaram realizado durante este trabalho?
Outro desafio foi identificar personagens arquetípicos, cujas trajetórias individuais servissem para iluminar aspectos mais gerais e coletivos. É o caso do português Gaspar Rodrigues, o cristão-novo apresentado ao leitor nos primeiros capítulos do livro. O processo religioso movido contra ele e a esposa, Filipa, é bastante significativo dos métodos utilizados pelos inquisidores, o que incluía delações premiadas, tormentos psicológicos e tortura física.

O filho de Gaspar, Menasseh ben Israel, crescido na Holanda, oferece uma linha de continuidade à narrativa, que se desdobra sobre a questão dos refugiados judeus, desenvolvida na segunda parte do livro. Reconstituir histórias de vidas tão paradigmáticas foi uma tarefa cercada de dificuldades, mistérios e lacunas documentais, por isso mesmo desafiadora e fascinante.





Onde podemos encontrar no Brasil atual traços da cultura e do comportamento dos judeus sefarditas?
Quando Portugal retomou dos holandeses as chamadas ‘capitanias do açúcar’, restaram aos judeus que viviam no Brasil duas alternativas. A primeira delas era partir. A outra, refugiar-se sertão adentro, ocultando os traços mais exteriores do judaísmo. Com o passar das gerações, os usos e costumes judaicos diluíram-se na cultura popular nordestina. Incorporaram-se, por exemplo, a certas tradições fúnebres, como a lavagem de defuntos, sepultamentos em terra limpa, pedras postas sobre o túmulo, águas derramadas do pote de barro no caso de morte de algum morador.

Há resquícios também na prática sertaneja de não varrer o lixo em direção à porta da rua e no modo rural de abater galinhas, degolando-as ainda vivas, com um único golpe, o que talvez guarde relação com os princípios das leis alimentares prescritas pelos livros sagrados dos judeus. Mas o sentido original de tais reminiscências perdeu-se na noite dos tempos.      

 Quais as diferenças e os desafios de se fazer uma espécie de ‘biografia coletiva’, em que a vida de vários personagens ajuda a contar a história? Foi muito diferente do trabalho que você realizou para escrever “Getúlio” ou “Padre Cícero”, por exemplo? Você vê semelhanças com “Uma história do samba”?
Uma biografia, qualquer que seja ela, nunca é uma narrativa em torno de um único protagonista. Ao biografar alguém, biografa-se toda uma época, na medida em que ninguém existe à parte das circunstâncias do tempo e do espaço. Nesse sentido, toda biografia é, de algum modo, coletiva. Mas quando isso é feito de forma mais estrutural, como no caso de “Arrancados da terra”, que envolve diferentes cenários geográficos e mesmo marcos temporais distintos, com os mais variados protagonistas, a empreitada se reveste naturalmente de maiores dificuldades. É preciso fazer com que os fios individuais e as várias subtramas se entrelacem numa trama maior, de forma coesa e coerente. Nesse aspecto, recupera-se o significado original do termo ‘texto’, entendido como ‘tecido’, ‘tessitura’.      

No livro, você afirma que, inicialmente, pensava em fazer a biografia de Maurício de Nassau. Como foi mudar o foco do trabalho? O que mais pesou para essa decisão? Pretende voltar ao ‘projeto Maurício’?
Sim, no início do processo de pesquisa, havia a intenção de escrever uma biografia de Maurício de Nassau. Mas o mergulho na vasta bibliografia e no manancial de documentos acabou por revelar-me a minha própria ascendência relacionada aos cristãos-novos que fugiram de Portugal após as perseguições da Inquisição.  Essa descoberta pessoal mudou os rumos do trabalho. Engavetei de vez o ‘projeto Nassau’ — não pretendo voltar a ele, uma vez que me vi envolvido por uma história mais ampla e mais arrebatadora.  

Como o Lira Neto, descendente dos cristãos-novos, observa o Brasil atual? É um bom lugar para se refugiar, para escapar da intolerância? Por quê?
Infelizmente, o Brasil é hoje um dos terrenos menos propícios ao exercício da tolerância e do respeito às diferenças e às minorias. Em plena propagação exponencial da pandemia, assiste-se a uma escalada do preconceito e dos discursos de ódio, fenômeno fomentado e incentivado pela autoridade máxima da República, atualmente exercida por um ser humano abjeto, anti-iluminista, tosco e negacionista, um homúnculo moral, incapaz de qualquer pensamento complexo, incompetente para o exercício de alteridade, desprovido de compaixão em relação à dor dos outros.  

“Arrancados da terra” nos mostra a perseguição da Igreja Católica e do calvinismo ao povo sefardita, que, por sua vez, teve sua parcela de contribuição para a escravização de negros no Brasil. Como você analisa essa intolerância religiosa? Qual a sua relação com a fé?
Não sou uma pessoa religiosa, o que não me impede de tentar compreender as motivações e os sentidos da fé alheia. Do mesmo modo que procurei entender a visceralidade da fé sertaneja ao biografar Padre Cícero, tentei mergulhar no significado histórico e filosófico do judaísmo, até para poder perceber e interpretar as origens do longo processo de demonização do povo judeu.    

Em seu pós-escrito, você lembra ao leitor que o desembarque de 23 judeus em Manhattan, em 1654, ficou estabelecido como um dos principais mitos de origem da fundação de Nova York. Existem ‘mitos’ que valem a pena? Por quê?
Os mitos, ensina Mircea Eliade, não são apenas fabulações, invenções, ficções, ilusões, em suma, ‘mentiras’. São também tradições, modelos exemplares de interpretação, formas de compreensões da realidade. É preciso não descartar o mito pura e simplesmente, mas procurar compreender suas origens, significados, motivações. No caso específico, entretanto, vale dizer que os judeus que saíram do Recife não fundaram ‘Nova York’, pois já havia um empreendimento colonial em curso na ilha de Manhattan, na então Nova Amsterdã.

Há dúvidas, inclusive, sobre o tão falado desembarque dos 23 judeus na ilha. Seriam aqueles homens, mulheres e crianças os mesmos que partiram do Recife, em setembro de 1654? O pós-escrito recorre à discussão historiográfica em torno dessa inquietante pergunta. Não para estabelecer respostas definitivas ou verdades absolutas acerca dela. Mas, ao contrário, para suscitar novas questões. O conhecimento não é feito de certezas prévias — e sim de pontos de interrogação.  


Trechos

“Quanto aos judeus que seguiram viagem — um grupo de 23 pessoas, entre homens, mulheres e crianças —, os relatos apontam que, em vez de retomarem a trajetória original, cruzarem o Atlântico e rumarem de novo para a Holanda, eles terminaram por mudar de planos.





Contrataram os serviços de um capitão de navio francês, Jacques de La Motte, para os levar até um pequeno entreposto comercial neerlandês situado 2,5 mil quilômetros mais ao norte do continente americano numa ilha chamada de Nova Amsterdam pelos colonos e de Mannahata pelos nativos — e daí Manhattan, na adaptação adotada logo em seguida pelos neerlandeses.

Por sua posição geográfica estratégica, no estuário do rio Hudson — assim batizado em homenagem a Henry Hudson, o explorador inglês que o descobriu, em 1609, a serviço da Companhia das Índias Ocidentais —, a modesta Nova Amsterdam era a sede administrativa de uma colônia maior e ainda mais erma, conhecida como Nova Holanda, a exemplo de outras possessões neerlandesas. Mantida pela Companhia das Índias Ocidentais, ela ocupava o território mais tarde compreendido pelos estados norte-americanos de Nova York, Nova Jersey, Connecticut, Pensilvânia e Delaware”.

Arrancados da Terra
• Lira Neto
• Companhia das Letras
• 424 páginas
• R$ 84,90 (livro) e     R$ 39,90 (kindle)

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