“Menino sem passado” (Companhia das Letras) e “Fisiologia da composição” (Cepe), de Silviano Santiago, devem ser encontrados em diferentes seções nas livrarias. O primeiro, nas prateleiras de literatura brasileira; o segundo, nas de crítica literária. Entretanto, são em alguma medida livros geminados. Ambos tratam da tarefa de escrever sobre si mesmo alargado pela experiência alheia e sobre os outros ao lhes emprestar o próprio corpo e pensamentos.
A ausência da mãe, que morre de parto quando Silviano tem apenas um ano e meio, em abril de 1938, e a presença do pai são marcas imperiosas de “Menino sem passado”. “Vejo os olhos que veem minha mãe viva”, escreve o autor ao observar uma foto em que foi clicado aos quatro meses de vida. Plagiada de Roland Barthes, a frase torna-se pela forma e contexto indiscutivelmente do escritor brasileiro. E tanto quanto poderosa.
Sobre o título “Menino sem passado”, afirma em suas páginas tê-lo “roubado” de Murilo Mendes, autor de “A idade do serrote” (1968). Esse tipo de apropriação, denominada “hospedagem”, está na base das análises de “Fisiologia da composição”, que reúne ensaios dedicados a Graciliano Ramos e Machado de Assis. Vale lembrar que Silviano hospedou sua própria produção ficcional nas obras dos dois canônicos, caso do romance de estreia “Em liberdade” (1981) e “Machado” (2016), o que merece destaque também nas memórias.
Além dos próprios pais, outro casal decisivo na educação sentimental que se confessa em “Menino sem passado” é o formado pela avó paterna, Maria Thomasia, e seu companheiro, Juca Amarante. Uma afronta para o ambiente pequeno-burguês provinciano onde cresce o menino. Italiana casada com o patrício Giuseppe Santiago, ela se torna amasiada do coronel descendente de velha cepa portuguesa.
O avô postiço do menino é enterrado como solteiro na crônica de Formiga, cidade que ele ajudou a alicerçar quando prefeito. E seus filhos com Maricota, tidos como bastardos pelos concidadãos. Silviano, por sua vez, reconhece nessa transgressão ao consanguíneo movida pela paixão e o espírito aventureiro, a tecer enredos em seu imaginário, um motivo forte de identificação.
A professora Jurandy, a segunda esposa do pai, também lega ao menino um outro avô não biológico. Erasmo Cabral é o nome próprio a despertar o interesse nas conversas dos mais velhos e a suscitar no adulto a dedicação à extensa pesquisa. Nas memórias, o barão do café falido se torna ícone fundamental do aprendizado da transitoriedade do status econômico e social, da ruína não só em termos financeiros como a de um corpo atravessado por dias de abundância ou de privação, pela saúde ou a falta dela.
Tais arranjos e desarranjos da corporeidade, não como metáfora, mas como fatores determinantes da criação literária, interessam sobremaneira ao crítico em “Fisiologia da composição” ao esmiuçar as condições materiais e físicas dos autores ao escreverem, por exemplo, “Memórias do cárcere” (1953) e “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1881).
Fora do retrato
Se Silviano atualiza com o seu próprio passado a noção de retrato de família comum nos nossos dias, também traz à tona os espaços mais recônditos e silenciados historicamente em uma sociedade patriarcal e de base escra- vocrata. Bem ali onde a clientela do pai dentista não tem olhos nem ouvidos, ao contrário do que se dá em todo o restante da cidade interiorana, sempre a sussurrar.
O primeiro desses lugares é o quarto da Sofia, para onde os dois órfãos mais novos são deslocados, deixando o quarto dos pais após a morte da mãe. A bela italiana se torna a guardiã dos dois e motivo de especulações e desaparece com a chegada da madrasta. Essas duas figuras femininas, além da irmã mais velha, ocupam e logo desocupam o lugar deixado pela mãe, que resta sempre vazio.
Na primeira parte do livro, a empregada Etelvina se recusa a se colocar nesse lugar de maternagem e marcado pela preposição a indicar a posse, ao repetir várias vezes: “Você é da Sofia. Não é meu”. Enquanto, na segunda parte, a busca empreendida em favor de uma genealogia até certo ponto liberta do tradicional leve aquele que narra – que é ao mesmo tempo Eu-Ele ao longo do livro – a enfim afirmar: “Passo a pertencer só a mim e a mais ninguém. Já afrouxados, desatam-se ainda mais os laços fami- liares. Tanto mais velho, tanto menos experiente na matéria da vida.”
Do quarto de Sofia passamos ao território da cozinha, onde trabalha Etelvina. O escritor já havia mencionado o nome dela em “Uma história de família”, aproximando seus afazeres. “Quero escrever, gosto de escrever como Etelvina cata feijão e cozinha angu.” Mas desta vez vai mais fundo no embate com as lembranças da negra e confessa-se um “observador de merda. Ou do umbigo”. Constata que dentro da casa ela “é a única peça desarmônica” e sem voz. “Fale, por favor. Fale, Etelvina.”
Do mesmo modo, o irmão da mãe que enlouquece em idade madura, e que inspirou esse mesmo pequeno livro publicado em 1992, no qual Etelvina é mencionada, ganha um capítulo em “Menino sem passado”: “O tio Mário”. Com ele, estamos em quintal da cidade de Pains, onde a avó materna tem uma pensão e o filho enlouquecido passa o dia acorrentado a um abacateiro. “O menino sonâmbulo é reflexo do tio.” São um em um anseio de liberdade de movimento. “Ao me dar a primeira lição sobre a arte de viver em dor/alegria, seus lábios entreabertos aliviam o sonambulismo em que vivo.”
Em todos esses personagens e esforços de composição de si, reconhecemos os que um sentido de pertencimento que vive a lhe escapar e, por isso mesmo, a fixar no provisório, no estrangeiro e na falta as possibilidades de expansão de quem se sabe desde cedo marcado pela diferença.
As idades do homem
Por vezes, Silviano faz questão de ressaltar a perspectiva do velho em “Menino sem passado”, não se limitando à dupla criança-personagem e adulto-autor. Sem homogeneizar as idades do homem, pesa a importância de cada uma das etapas da vida para a apreensão daquele que foi. Assim, noções e conceitos que não figuravam no vocabulário infantil, como “inibição” ou “simpatia física”, esse último retirado da obra de André Gide, passam a ser alicerce de sua subjetivação. O jovem Silviano se doutorou pela Sorbonne na década de 1960, ao defender uma tese sobre o Nobel francês. Período que figura nessas memórias.
No que toca à interioridade a se revelar em construção constante em “Menino sem passado” e nas análises do crítico em “Fisiologia da composição”, reconhecemos o tempo todo o método da enxertia utilizado pelo pai para diversificar as roseiras cultivadas na primeira morada. Espaço de experimentação botânica que mais tarde será destruído por uma obra de alargamento da rua onde se localiza o primeiro endereço, em Formiga.
Como o jardim, as outras casas que abrigam essa infância, quando a família se muda para Belo Horizonte, são uma a uma colocadas abaixo com o passar dos anos e reerguidas nessas memórias arquitetadas como romance. Trama crivada de momentos ensaísticos e mesmo de análises literárias, como a de poema de outro mineiro, o de Itabira, a preencher as lacunas próprias das memórias – dado fundamental de uma vida vivida entre livros, filmes, gibis, sem nunca deixar de localizar-se em um entrelugar e entretempos.
As memórias do menino nascido no Oeste de Minas Gerais, ainda que assinaladas pelo subtítulo (1936-1948), não se atêm a esse intervalo, tampouco à ordem cronológica. Pode-se passar da Segunda Guerra Mundial aos anos de chumbo no Brasil, da crise de 1929 ao período das guerras coloniais.
O mesmo pode ser dito em relação aos espaços que habitam uma vida marcada pelo nomadismo. De cidade do interior ou na capital mineiras parte-se para o Rio de Janeiro, Nova York, Paris, para sempre retornar à paisagem natal.
Ali onde a porta do quarto de Sofia permanece entreaberta, o menino sonâmbulo caminha diante de um horizonte de luto, sem grade de proteção. Às vezes, cai machucado, noutras desperta-nos em um tempo próprio, como só são capazes os mais generosos hospedeiros de nossas leituras.
* Luciana Araujo Marques é jornalista, mestre em teoria literária (USP) e doutoranda em teoria e história literária (Unicamp)
Trecho
“Menino sem passado”
“Escrevo o amor de Juca e de Maria no silêncio aberto pelo que desconheço.
E conheço pelo lado de dentro da comunidade formiguense o que o silêncio encobre e protege, a fim de só se abrir em fala com meu próprio e falível corpo apaixonado. Não minto. Não invento. Tergiverso talvez. Talvez minta. Talvez minta para alguns que apenas acreditam no pão, pão, queijo, queijo da realidade bruta e falastrona. Sou mais eu na imagem do espelho que me reflete. Sou mera cópia da cópia avoenga. Não sou uma mentira.
Digo a verdade cabeluda, que fere os olhos do tabu, e esguicha sangue e dor – tristeza e alegria. O profano é o sagrado. Digo a verdade porque o sabor da vida vivida por Juca e Maria – sabor semelhante ao do leite de cabra que me alimenta desde sempre, sem que o soubesse – atesta que a saúde aventureira do casal os transformava nos meus verdadeiros antepassados sanguíneos.
Digo a verdade cabeluda, que fere os olhos do tabu, e esguicha sangue e dor – tristeza e alegria. O profano é o sagrado. Digo a verdade porque o sabor da vida vivida por Juca e Maria – sabor semelhante ao do leite de cabra que me alimenta desde sempre, sem que o soubesse – atesta que a saúde aventureira do casal os transformava nos meus verdadeiros antepassados sanguíneos.
Os mais desencontrados e extremados laços de sangue são enxertados no meu corpo ao escrever no silêncio aberto pelo que desconheço.”
Menino sem passado
Silviano Santiago
Companhia das Letras
464 páginas
R$ 72 - R$ 39,90 (e-book)
Trecho
“Fisiologia da composição”
“O recurso à hospedagem não comporta a reversibilidade dos acontecimentos, que o uso da memória historicizante requer do romancista que se vale da história do passado para compreender o presente, e vice-versa. Em palavras mais simples: a trama romanesca do presente não reproduz – em avanço cronológico, em ritmo de progresso e em tom otimista – a trama do passado. No recurso à hospedagem, importa menos a ação que se desenrola na obra/hospedeira que certa lição (sobre cronologia, progresso e otimismo, no caso) que dela se tira pela leitura pessoal e crítica do artista. [Em “Esaú e Jacó”], Machado não convida o leitor a compreender a reversibilidade do Tempo, como se programa historiográfico de caráter pedagógico, mas a amparar o próprio corpo e sua imaginação nas repetições que se dão e se darão sempre em diferença.”
“Fisiologia da composição”
Silviano Santiago
Cepe Editora
236 páginas
R$ 60 - R$ 18 (e-book)