Jornal Estado de Minas

REALIDADE

Escritora mineira Clara Arreguy narra a dura realidade de uma professora

“Taí um tema que trato sempre com meus alunos, lembrando as aulas inesquecíveis do professor Joãozinho: ‘– Leiam, leiam, leiam. Quem lê aprende sem fazer esforço, exercita a memória e o raciocínio, desenvolve a imaginação, viaja para outros mundos, viaja no tempo, pro passado e pro futuro, e no espaço, pra todos os países e planetas que talvez nem existam. Quem lê consegue pensar melhor, entender melhor as coisas, dar solução pros problemas, colocar-se no lugar do outro.



Isso tem um nome: empatia. Sentir o que outro sente, entender por que ele age de determinada maneira. A leitura é tão boa que é boa até pra paquerar. Quem vocês acham que faz mais sucesso: o bonitinho sem papo ou o mais ou menos, que tem um papo bom, sabe contar histórias, tem assunto, conhece ou já ouviu falar de vários assuntos?. O bonitinho pode até chegar primeiro, mas quem fica, permanece, é o bom de papo.

Ah, e quem lê escreve melhor, porque tem familiaridade com o texto, a matéria-prima. Quem lê tem mais vocabulário e sabe mais português.’ O professor Joãozinho falava isso tanto que eu decorei. Virou meu mantra, que repito por onde passo, seja pra crianças, jovens ou adultos.”

A lembrança acima é da professora Fabrícia, a Fabi, a protagonista de “O quarto canal”, novo livro da escritora mineira Clara Arreguy, uma pancada sociológica no retrocesso vigente. Fabi é vítima de assédio na faculdade e de perseguição por lecionar conteúdos “ideológicos”, sofre com o sucateamento da profissão, com a pouca remuneração e a desvalorização profissional. Clara tempera a dura sina de Fabrícia na capital federal com humor e ironia, sem desmerecer a gravidade do drama. Fabrícia é sincera, abre seu coração para o leitor e escracha o ambiente hostil que tolhe sua profissão, seus afetos e seus sonhos.





Em seu mundo, um retrato visceral do Brasil atual, o que já era difícil, por causa dos salários baixos, excesso de carga de trabalho, falta de estrutura das escolas, por incrível que pareça, piorou. Os professores perderam o respeito dos alunos e a escola passou a ser acusada de doutrinação. Paralelamente, o analfabetismo político, expressão apresentada pelo escritor, poeta e dramaturgo alemão Bertolt Brecht, avança a passos largos, engole o cidadão comum que se diz “apolítico”, mas, na prática, é omisso, se cala diante das barbaridades perpetradas por governos antidemocráticos.

“E que profissão? Nobre? Missionária? Mais do que isso: essencial. Porém, não no mundo que Fabrícia e tantos e tantos outros professores brasileiros habitam. Um mundo de desvalorização da ciência, do conhecimento e do saber. Um mundo que tem cheiro e sabor ácido. Aquele que os dentes colocam nos dentes”, ressalta a professora Lucília Neves de Almeida Delgado no prefácio do livro.

“IMPÉRIO DA MEDIOCRIDADE”

Mas a grande surpresa do livro começa pelo curioso título e pelo tema inusitado que faz arrepiar 10 entre 10 leitores: um tratamento dentário. Que leitor se interessaria em ler um livro que já começa com o drama de um tratamento de canal de dente enfrentado pela protagonista? Mas o que parece repulsivo é um dos maiores atrativos da obra. É sabido que um dente pode ter até quatro canais. E é este último que atormenta a vida de Fabrícia na cadeira do dentista, uma dor que se estende como metáfora para a sua vida e a do país.





Enquanto se enreda no tratamento odontológico com a dentista Mariluz, Fabrícia vai contando sua difícil rotina como professora. A narrativa envolvente de Clara Arreguy não deixa o leitor ficar passivo, porque esse drama tem também paixões conturbadas, machismo e assédio. Há esperança para uma professora num país que precarizou a educação, as leis trabalhistas, os sindicatos, os movimentos sociais, as greves? Em que manifestantes fascistoides atacam a escola e há fuga de cérebros para o exterior, deixando aqui um “império da mediocridade”? Essa é a grande lição do livro  “O quarto canal”: fazer com que o poder transformador da literatura propicie ao leitor reflexões sobre que país é este. E também mostrar como a educação e a leitura são remédios poderosos para as dores causadas pela ignorância, pela estupidez, pela indiferença, pela opressão....

TRECHO

“– Fabrícia, preciso te agradecer. Claro que a 'culpa' não é sua, mas suas aulas estão sendo fundamentais pra me abrir os olhos. Acabo de me separar do pai dos meus filhos. Você não calcula com que dor estou descobrindo, não apenas o tanto que era infeliz, mas que nunca havia sido. Aquele homem 
nunca me respeitou, sempre me tratou como uma criança tola e burra. Nunca me amou como eu queria e merecia. Ele só me mantinha sob seu cabresto, me usava sem afeto como empregada, como fêmea, e olhe lá... Ô, meu pai, estive nessa luta aí nas últimas semanas, mas agora me libertei e entendi que posso ser feliz. Mesmo já estando velha e passa do tempo pra essas coisas.

- Que coisas, Nicete? Vocé é bonita, inteligente e dona do seu nariz. Ainda pode, sim, buscar o que quiser, seja profissional, seja afetivamente. Não permita que os discursos rancorosos de um machista te toquem nem te tolham. Vá se ser feliz!

O abraço apertado e sincero daquela mulher me fez ganhar o dia, o mês, o ano. Se tenho que passar pelo calvário que estou passando diante do avanço da repressão e da escuridão, respostas como a de Nicete iluminam de esperança a ação do professor.”





“O QUARTO CANAL”
.Clara Arreguy
.Outubro Edições
.Edição bilíngue
.164 páginas
.R$ 45 (impresso)
.R$ 26 (e-book)


Entrevista

CLARA ARREGUY / Escritora

“Tem que malhar o cérebro também”

Como surgiu a inusitada ideia de associar as dores de um incômodo tratamento dentário às dores da dura rotina de uma professora, às voltas com machismo, negacionismo e preconceitos? 

Assim como o romance trafega entre esses dois trilhos, as ideias também nasceram em paralelo. Ao constatar como o respeito à educação e aos professores ia se esfacelando no Brasil, decidi escrever algo em defesa desse binômio. A história da professora assediada por um aluno com as características que você descreve me veio ao conversar com uma moça que conheci num café, aqui em Brasília.

Ela me contou que a cadeira que ministrava, de sociologia, teria que mudar de nome por pressão de alunos. Eles consideravam socialista ou comunista tudo que contivesse “social” no nome. E por fim a parte “odontológica” da trama nasceu ali, na cadeira do dentista, onde passei boa parte da vida sofrendo (risos).

Num trecho do livro, Fabrícia fala que passou a vida sonhando e que acordou desse sonho com professores comprometidos com o aluno, com seres humanos integrais, mentes e almas valorizados inteiramente, includente de pobres e pretos. Só a educação salva o Homo sapiens da aniquilação? 

Com certeza! Não há saída sem a valorização da pessoa integral, via educação, formação humana de base, formação profissional complementar, conhecimento científico, entendimento do mundo, das coi- sas. A filosofia, a história, as ciências, a leitura, a literatura, tudo isso faz desenvolver a inteligência, a busca de soluções para os problemas, alento contra as dores que qualquer ser humano vivencia pela finitude e pela própria fragilidade da vida. E a atual era da pandemia comprova isso com tanta clareza!

Uma das mensagens do seu livro é o estímulo à leitura. “O quarto canal” tem narrativa engajada. A literatura deve ter esse papel de abrir consciências, além do mero entretenimento?

A literatura não tem que ser engajada em mensagens. Tem que ser boa literatura. Mas ela pode, sim, falar da amplitude das questões huma- nas. Como disse acima, precisamos de filosofia, história, pensamento crítico, mente aberta, e a literatura contribui com isso porque, pra mim, é a “malhação do cérebro”. Eu falava isso pros colegas “bombados” quando eu frequentava academia de ginástica: “Tem que malhar o cérebro também, galera”. A leitura de livros leves, de entretenimento, também cumpre seu papel no fortalecimento da imaginação, da empatia, da catarse. Adoro romances policiais, crônicas, biografias. Nem tudo é alta literatura, nem tudo tem pretensão de mudar o mundo, mas tudo que emocionar o leitor cumpriu seu papel.