Sérgio de Sá* - Especial para o Estado de Minas
A escritora mineira Lúcia Machado de Almeida está na imaginação do leitor juvenil. Xisto, Spharion, Atíria. Aventura, ficção científica, romance policial. Ela era uma nota biográfica na abertura de seus seis livros na Série Vaga-Lume. Com este “Lúcia Machado de Almeida, uma vida quase perfeita”, Régis Gonçalves lhe dá forma nova para quem a conhece apenas pela literatura. Desenha-se a "conservadora esclarecida" em fatos e opiniões.
As palavras elegância, elegante e elegantemente aparecem inúmeras vezes no sexto volume da coleção Beagá Perfis, da Conceito Editorial. E essa evidência constata a qualidade da escritora biografada e do texto do autor da obra. Recheado por imagens, o perfil é percorrido, em seus curtos capítulos, com curiosidade e fluência, ainda que aqui e ali a repetição de informações trave um pouco a continuidade.
Autor de “Retratos erráticos: imagem, perfil e personagem na imprensa” (Oiti, 2010), o jornalista e escritor Régis Gonçalves oferece pesquisa e apuração direta na abordagem a Lúcia. O leitor se desloca da constituição política e social de família abastada do interior para a fantasia de uma máquina cultural que faz girar a capital em desenvolvimento, durante tempo suficiente para deixar marcas em vários campos.
Caçula e temporã de 11 filhos, a futura autora de “O escaravelho do diabo” sai da solidão na fazenda em Santa Luzia para o internato em escola religiosa na vizinha Belo Horizonte. Leva consigo a semente do devaneio em meio à natureza e o germe do crime da leitura apreendida em família, tendo o irmão Aníbal Machado como principal mentor. A borboleta da asa quebrada e o Dom Quixote de la Mancha.
Em seu “exercício da mais sincera empatia”, Régis Gonçalves esboça uma breve cronologia do século 20 na cidade planejada que pula montanhas para olhar o rico passado museológico de minério e barroco e para perceber o entorno presente que se constrói na imprensa, no museu, no coral, na pintura, nas letras. Lúcia Machado de Almeida (1910-2005) entra de corpo e alma na sociedade mineira urbana.
Ao lado do marido, Antonio Joaquim de Almeida, Lúcia formou diplomática dupla dinâmica. Em casa, recebia e agregava. Em sua longa “vida quase perfeita”, a autora de livros infantojuvenis de estrondoso sucesso conviveu de perto com a high society da política e da cultura. Em missivas ou pessoalmente, o caminho foi atravessado, por exemplo, por Alberto da Veiga Guignard, Carlos Drummond de Andrade e Pedro Nava.
Além de pintores, poetas e prosadores, houve, claro, outros figurões na trajetória. Com destreza, o autor do perfil entrelaça textos e depoimentos que ilustram o tempo vivido e comentam a herança na posteridade. O escritor Silviano Santiago, a jornalista Miriam Chrystus e o editor Jiro Takahashi, entre outros, dividem com a família as impressões sobre “Lúcia-azul” ou a “Sereia”, como Cecília Meireles a chamava.
Há pouco, contudo, tanto da intimidade familiar como do processo criativo da autora de “O caso da borboleta Atíria” e “As aventuras de Xisto”. A escritora de um milhão de exemplares vendidos (sim, marca impressionante em qualquer tempo) conviveu com o sucesso, mas enfrentou a dificuldade do reconhecimento literário do gênero, em duplicidade: a mulher e a literatura infantojuvenil.
Régis Gonçalves conta que “Lúcia deixou um diário íntimo até agora inacessível a olhares estranhos, pois é ciosamente mantido em segredo por decisão de seus descendentes”. Por essa impossibilidade, o jornalista especula sobre as condições financeiras da família, no trecho menos objetivo do relato. Em outro momento, detém-se sobre a discussão acerca da qualidade literária da obra, tardiamente reconhecida pela crítica.
Além da prosa de ficção, Lúcia Machado de Almeida escreveu sobre Minas Gerais com bastante desenvoltura e, digamos, conhecimento de causa. Obteve elogios imediatos e rasgados para as narrativas de viagem “Passeio a Sabará” (1952) e “Passeio a Diamantina”, lançado no mesmo ano (1961) em que a família se muda para o Edifício Niemeyer, onde antes era o Castelinho, também habitado pela escritora.
Do alto do prédio que ajudara a erguer numa quina da Praça da Liberdade, Lúcia Machado de Almeida vê o mundo decolar. Seu ativismo cultural, impulsionado pela facilidade da convivência, mexe no provincianismo. Sua obra chega à Ática e explode em vendas. E, depois de sua morte, em novela recorrente na história da literatura brasileira, família e editora discutem sobre direitos autorais e renda.
Não se pode subestimar a contribuição da autora de “Estórias do fundo do mar” à formação de uma geração de leitores. Vislumbrar hoje as capas de “Spharion” (um bote rumo à luminosidade do futuro) ou “O escaravelho do diabo” (detetive de arma em punho à sombra do enigmático besouro) – colocadas lado a lado com “A ilha perdida”, de Maria José Dupré – é compreender como o bicho da leitura ficou impregnado no corpo.
Em alta comunicabilidade, Lúcia Machado de Almeida levou ao relato ficcional a experiência infantil no interior atrelada às muitas pesquisas de uma vida intelectual frutífera. Régis Gonçalves consegue fazer esse retrato em relação de semelhantes simbiose e sinceridade. Ao final, rezamos todos pela mesma cartilha da diversão e da resolução investigativa no tempo adulto da leitura que se desvenda para toda a vida.
*Sérgio de Sá é professor na Universidade de Brasília, doutor em estudos literários pela Universidade Federal de Minas Gerais e autor de “A reinvenção do escritor: literatura e mass media” (Editora UFMG)
Trecho
“Lembram-se daquela borboleta que tantos anos antes havia pousado delicadamente no colo de uma menina na fazenda Nova Granja, interior de Minas Gerais? Com uma das asas defeituosa, ela despertou a compaixão da então pequena Lúcia, que dela se encantou fazendo-se sua amiga e tomando-a sob sua proteção. Passado muito tempo, esse encanto ainda estaria vivo, e Atíria, o frágil e cativante inseto que fora assim batizado, tornou-se personagem de Lúcia Machado de Almeida, agora uma escritora de sucesso entre as crianças brasileiras.
O livro chamou-se em sua primeira edição “Atíria, a borboleta” (Melhoramentos, 1951), e tanto agradou aos seus leitores que teve numerosas reedições, com o título modificado para “O caso da borboleta Atíria”. Parece inverossímil, mas no mundo de fantasia de Lúcia tudo pode acontecer, até mesmo uma borboleta de asa quebrada tornar-se detetive numa floresta assombrada por uma perigosa mariposa. “É o livro de que mais gosto, o livro a que tenho mais amor. A gente não sabe explicar por que gosta de alguém ou de alguma coisa. Mas Atíria eu sabia: ela era para ser minha”, confessou a autora."
O livro chamou-se em sua primeira edição “Atíria, a borboleta” (Melhoramentos, 1951), e tanto agradou aos seus leitores que teve numerosas reedições, com o título modificado para “O caso da borboleta Atíria”. Parece inverossímil, mas no mundo de fantasia de Lúcia tudo pode acontecer, até mesmo uma borboleta de asa quebrada tornar-se detetive numa floresta assombrada por uma perigosa mariposa. “É o livro de que mais gosto, o livro a que tenho mais amor. A gente não sabe explicar por que gosta de alguém ou de alguma coisa. Mas Atíria eu sabia: ela era para ser minha”, confessou a autora."
“Lúcia Machado de Almeida, uma vida quase perfeita”
.Régis Gonçalves
.Conceito Editorial
.242 páginas
.R$ 35