A escritora mineira Anita Deak chega ao segundo romance, “No fundo do oceano, os animais invisíveis”, elegendo como faróis alguns dos maiores nomes da literatura: Machado de Assis, Guimarães Rosa, Raduan Nassar. Ela também busca referências em mestres portugueses para contar a história do narrador-personagem Pedro Naves, a partir do nascimento em uma cidade fictícia à batalha do Berocan, nome dado ao rio pelos indígenas karajás. Ao apresentar o conflito, em plena Amazônia, a narrativa mostra uma necessária inversão de grandeza entre ser humano e natureza. Destaca a experiência da água, da terra, da floresta, como o caminho possível para o mundo material e para os inventados pela literatura. E a necessária busca da reintegração ao meio ambiente.
O romance, lançado pela editora paulista Reformatório, se passa na cidade de Ordem e Progresso, inventada a partir da vivência da belo-horizontina Anita Deak na infância e na juventude. Anita narra costumes de famílias tradicionais, como o ritual de matar um animal a cada bebê nascido de famílias mais abastadas e a preparação de um dos filhos para a vida religiosa. Porém, a escritora busca no realismo mágico formas de o personagem lidar com o conservadorismo e a tradição: “Pedro Naves dá um jeito de escapar”.
Pedro Naves deixa Ordem e Progresso para combater na região do Berocan. Para recriar a ambientação, ela recorre às lembranças da floresta amazônica, onde esteve quando era estudante universitária. “Qual é a fronteira entre as coisas? A relação do homem com a natureza.” Ela lembra que essa relação costuma oscilar entre dois polos, a destruição e a idealização, “a natureza no altar”. A escritora procura diminuir a hierarquia entre Pedro Naves e o meio ambiente: “O cenário cresce muito”.
A sofisticada estratégia narrativa tem como propósito demonstrar que a experiência é essencial à literatura. Não é a análise que o personagem faz da natureza, mas da possibilidade de ser impactado. E quem guia Pedro nesse caminho sensível é o avô Sebastião Naves, personagem que terá centralidade no terceiro romance, cuja escrita Anita já iniciou.
No intervalo de 10 anos entre a escrita dos dois romances (o primeiro foi “Mate-me quando quiser”), a escritora mergulhou na obra de gigantes da literatura brasileira e portuguesa. Leu muito Almeida Faria, referência de Raduan Nassar; Ricardo Guilherme Dicke, leitura de cabeceira de Guimarães Rosa. Entraram para a estante também Xavier de Maistre, leitura de Machado de Assis. Ainda no baú de preciosidades revisitadas, o brasileiro Vicente Franz Cecim e a portuguesa Maria Gabriela Llansol. “Agora, olha a loucura. A portuguesa Agustina Bessa-Luís era uma referência para o português Aquilino Ribeiro, que, por sua vez, era considerado uma referência para Guimarães Rosa”, conta, sobre o seu percurso literário.
Ao revisitar os mestres, Anita procurou identificar recursos narrativos: fluxo de consciência, mudanças de narrador, transições. Um mergulho literário que permitiu lapidar a escrita de tal forma no segundo romance que o estilo assim foi destacado pela premiada Maria Valéria Rezende: “Vê-se, já às primeiras páginas, que a autora conhece muito e assimilou verdadeiramente as lições de mestres pioneiros como Guimarães Rosa e Manoel de Barros (para citar apenas os mais emblemáticos), mas não os copia. Recria.”
De Guimarães, Anita identificou a adição de preposições e prefixos para criar neologismos. “E se eu brincar de tirar?” Anita propõe uma reflexão sobre as palavras, que não são empregadas como meras representações, acepções literais. Ela entende a palavra como a possibilidade de criação de mundos.
Tem como referência, nessa tarefa, o mais inventivo escritor da língua portuguesa: Guimarães Rosa, o escritor preferido de Anita. “As palavras criam pontes e não fechamento de esquina". Permeável às interpretações, a palavra é poiesis. Nesse sentido, a prosa é resultado de um fazer que se aproxima do poético, em que os sentidos estão abertos e que é importante a maneira como criam os ritmos.
Tanto quanto ela se dedica para alinhavar o enredo, ela se propõe a criar uma paisagem sonora, o que garante ao texto sonoridade e ritmo. “Mate-me quando quiser”, o primeiro livro, foi publicado em 2014 e finalista do Prêmio Sesc. Quase 10 anos depois, a escritora considera que a sua estreia ainda não tinha uma riqueza de estilo. “Tinha um conhecimento literário, mas muito pouco. Tinha saído do jornalismo e estava em migração para o mercado editorial”, ela lembra. Em “No fundo do oceano...”, Anita Deak constrói a narrativa a partir da percepção psicológica do personagem-narrador sobre o tempo. “Não quis repetir. Quis uma ordem diferente. Na mesma cena, passado e presente.”
Trechos
“Todas as histórias de amor são tristes porque o amor é uma história duvidosa. O que conto a respeito de meu pai, de minhas irmãs, a não ser o que posso? Qual o tamanho deles? É da medida que nasce a memória? Da pele contra o mundo, da vontade de se decalcar na imprecisão das coisas? Lembro do bolo de mamãe como se fosse ontem, evoco as brincadeiras com minhas irmãs, a textura couro do boi e as palavras de meu pai durante nossas rondas diárias.”
“O médico perguntou se eu sentia dores. Respondi que sentia paz e amarelo e branco e roxo. Todos agora tinham belos olhos amarelos e a pele branca como a dos anjos do Padre Neto, eu só não havia visto meu pai ainda, seria meu pai quando o visse? Seria ele sem a pele curtida do sol e os olhos negros? É coisa da cabeça, e dessas coisas a medicina não se encarrega. Mas eu preciso fazer alguma coisa, doutor, não existe alguém que você possa indicar? Minha pele arrepiou por dentro. Ele diz que tem cabelos compridos, fica horas em frente ao espelho, nu, a tempo de pegar uma friagem e morrer de pneumonia.”
“No fundo do oceano, os animais invisíveis”
Anita Deak
Reformatório
172 páginas
R$ 40
As coisas não precisam de você
Quase 10 anos depois da estreia, Natércia Pontes volta ao romance com uma família em existência simbiótica com uma montanha de objetos acumulados entre quatro paredes. Com um texto vigoroso, capaz de despertar sensações extremas como o asco e o pavor, “Os tais caquinhos” (Companhia das Letras) nos apresenta as irmãs adolescentes Abigail e Berta e o pai delas, Lúcio, enfurnados em um apartamento.
Nascida em Fortaleza, em 1980, Natércia mora em São Paulo. Tornou-se finalista do Prêmio Jabuti com “Copacabana dreams”, lançado em 2012 pela Editora Cosac Naify. O título do segundo romance cita um verso da música “Pra começar”, parceria de Antonio Cícero e Marina Lima, gravada pela cantora e tema de abertura da novela “Roda de fogo”, exibida pela Rede Globo em 1986.
No romance, Lúcio é o pai acumulador que, ao longo da vida, amontoou objetos e tornou o apartamento da família um lugar sujo, insalubre, paraíso para baratas e outros insetos. É onde as irmãs Abigail e Berta atravessam a adolescência. Impressiona a descrição dos cômodos tomados por caixas de papelão, livros, potes de lápis sem ponta, canetas com tinta ressecada, caixas de sapatos repletas de objetos, compassos, sofás empilhados, objetos e móveis entregues às baratas. Uma desordem sufocante.
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Ronaldo Correia de Brito: ''Viver no Brasil tornou-se um pesadelo''Augusto de Campos em dez tópicosCastro Rocha: 'Bolsonarismo está se transformando em seita' Escritores e professores homenageiam o crítico literário Alfredo BosiAlém de narrar a vida em meio à montanha de lixo, Abigail nos apresenta a irmã e o pai, e revela a criação de um universo particular em meio a um processo de amadurecimento. Entre dezenas de objetos amontoados, o mar aparece como contraponto para reflexões – e será decisivo na virada do destino da adolescente, como narra a autora: “Avançar no mar até não dar pé não expressava essencialmente uma vontade mole e triste de desaparecer da Terra, mas o desejo romântico de ser uma sereia solitária patinhando de onda em onda à procura de um príncipe humano com topete brilhante”.
A escrita de Natércia é vigorosa. São blocos inteiros de texto, sem respiro. Os títulos desses blocos, usados de forma nada óbvia, destacam trechos da própria narrativa – e nos fazem avançar na leitura. Assim, a escrita nos envolve e nos faz mergulhar na atmosfera caótica e asfixiante do apartamento 402.
A seguir, a entrevista com a escritora.
A seguir, a entrevista com a escritora.
A desorganização do apartamento representa a ausência da mãe? É uma falta que aquela família não conseguiu superar?
Também representa, e isso também não foi muito pensado. Só depois uma grande amiga que leu os manuscritos apontou essa ausência. Acho que essa família supera essa falta e muitas outras. De um jeito muito torto, doído. Mas, por isso, tão inteiro e legítimo.
O aborto aparece na narrativa, momento esse sempre muito doloroso para nós, mulheres. Como você caracteriza sua escrita quanto à questão do feminino? É uma discussão de certa forma feminista ou você considera que esse adjetivo limita?
Não acho que limite, não. Pelo contrário, o fato de eu, Natércia, publicar um livro, e ser minimamente lida e vir a ter apreciação crítica, já é uma discussão feminista. Eu celebro todos os livros publicados por mulheres, principalmente as mais marginalizadas pelo patriarcado racista. Já o aborto, dentro da história do livro, não acho que seja pautado especificamente dentro da discussão, não há moralidade aí sobre a questão social do aborto. Mas a série de abusos que a Abigail sofreu e como isso se materializa ficcionalmente no aborto, o mar tendo essa vibração caricatamente masculina, violenta e traiçoeira, e de como a Abigail sobrevive a ele podem ganhar uma discussão feminista, sim.
Abigail, como narradora-personagem, busca essa reconstrução pela escrita?
Sim, o diário dela, funciona tanto como um bote salva-vidas quanto como uma lixeira. Ela também acumula percepções da realidade, sentimentos, palavras, pensatas, letras de músicas. A escrita dela é um monturo de coisas abstratas que ela não deixa ir embora.
A personalidade acumuladora de Lúcio é uma metáfora do masculino?
Não. Penso que é uma metáfora do suplício de estar vivo, sentindo a passagem do tempo e se relacionando com seus expurgos e com os expurgos dos outros.
E as baratas? As patas e o cheiro delas aparecem ao longo de toda a história…
A cidade onde eles vivem é muito quente. As baratas ficam muito mais à vontade quando faz calor. Elas talvez sejam um dos insetos mais desagradáveis do mundo (eu e minha editora sofremos muito ao trabalhar no livro porque somos fóbicas). Para mim, também são uma metáfora da violência da vida e da nossa comovente falta de controle. (Marcia Maria Cruz)
Trechos
“Quando não penteava o cabelo de Lúcio, eu costumava me esparramar no chão frio, me entretendo com os cantos soltos das unhas e com o calo grosso que cultivava de tanto morder a junta do dedo mindinho. A pele morta despontava, me causando um frisson quase sensual. Puxava a pontinha com os dentes até descamar, sentindo uma aflição um tanto insuportável — aflição semelhante à que eu sentia quando Zoma tomava meus dedos para fazer um carinho comprimindo as pontas das unhas curtas na carne sensível do interior das minhas unhas. Era um carinho aflitivo e um pouco bom.”
“Acho que o grande susto veio no dia em que Lúcio falou que era importante sentir fome. Depois do colégio, quando chegávamos em casa e não havia sofá para esticar as pernas e jogar os livros pelos ares, Berta e eu derretíamos de vontade de comer um belo prato de arroz, carne moída e feijão. Fantasiávamos com uma jarra espumante de suco de abacaxi. Mergulhávamos na possibilidade intangível de saborear, ao fim do almoço, cubinhos de sorvete de abacate, cobertos por uma generosa calda de leite condensado.”
“Os tais caquinhos”
Natércia Pontes
Companhia das Letras
144 páginas
R$ 79,90
E-book R$ 39,90