Conheci Dona Ivone Lara em agosto de 2007, durante a gravação, no Rio de Janeiro, de “Nasci para sonhar e cantar” (Dona Ivone Lara/Délcio Carvalho), uma das faixas do CD de estreia do cavaquinista mineiro Warley Henrique. Nessa época, a “matriarca do samba” era muito requisitada em todo o país, principalmente por jovens talentos, que viam nela uma fonte de inspiração e referência.
Em 2009, a carioca dividiu o palco do Palácio das Artes com o trio Dudu Nicácio, Miguel dos Anjos e Mestre Jonas, em show do projeto “Samba do compositor”. “Convite eu não recuso, porque é mais uma oportunidade que tenho de cantar com ótimos compositores, conhecê-los e participar do trabalho. Me sinto jovem”, afirmou, demonstrando sua generosidade, traço que a marcou por toda a sua vida.
Em 2009, a carioca dividiu o palco do Palácio das Artes com o trio Dudu Nicácio, Miguel dos Anjos e Mestre Jonas, em show do projeto “Samba do compositor”. “Convite eu não recuso, porque é mais uma oportunidade que tenho de cantar com ótimos compositores, conhecê-los e participar do trabalho. Me sinto jovem”, afirmou, demonstrando sua generosidade, traço que a marcou por toda a sua vida.
Yvonne da Silva Lara nasceu em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janeiro, em 13 de abril de 1921(**). Foi a primeira filha da costureira Emerentina Bento da Silva e do mecânico de bicicletas José da Silva Lara, ambos integrantes de ranchos carnavalescos, embriões das escolas de samba. Aos 10 anos e órfã, entrou para o Colégio Municipal Orsina Fonseca de onde só sairia depois da maioridade, aos 18 anos, para morar na casa das tias em Madureira, subúrbio carioca.
Nesse período de internato, tinha aulas de canto com Zaíra de Oliveira, primeira esposa de Donga, autor de “Pelo telefone”, considerado o primeiro samba registrado no Brasil. Outra figura feminina de referência na trajetória da Dama do Samba é Lucília Villa-Lobos, esposa do grande maestro e professora de teoria musical.
Nesse período de internato, tinha aulas de canto com Zaíra de Oliveira, primeira esposa de Donga, autor de “Pelo telefone”, considerado o primeiro samba registrado no Brasil. Outra figura feminina de referência na trajetória da Dama do Samba é Lucília Villa-Lobos, esposa do grande maestro e professora de teoria musical.
O contato com a música erudita, no entanto, não afastava Dona Ivone de suas origens. A primeira música composta aos 12 anos foi um samba, “Tiê-tiê”, homenagem a um passarinho da espécie tiê-sangue recebido de presente (ela queria uma boneca!) do primo Fuleiro, o grande amigo e incentivador, Maioral da Império Serrano. No fim dos anos 1940, era por intermédio dele que a também chamada Rainha do Samba apresentava suas músicas, pois temia o preconceito em um ambiente extremamente machista. Com o pai de Fuleiro, tio Dionísio, aprendeu a tocar cavaquinho, a base para suas lindas melodias.
Neste mês em que se celebra o centenário de nascimento de Dona Ivone Lara – que entrou para a história como a primeira mulher a integrar a ala de compositores de uma escola de samba no Rio de Janeiro –, impossível para mim, jornalista e idealizador do projeto Almanaque do Samba – A Casa do Samba de Minas Gerais, não reverenciá-la. Essa carioca negra, esposa, mãe de dois filhos e avó de três netos, abriu caminho, à sua maneira, para que uma legião de mulheres Brasil afora pudesse, apesar das dificuldades que persistem até hoje, realizar o direito de se tornar dona do próprio destino. Lecy Brandão, Jovelina Pérola Negra, Nilze Carvalho e Tereza Cristina são exemplos dessa linha- gem.
Aliás, fazer esse resgate temporal, sentimental e histórico tem sido um desafio para mim desde que publiquei, em 2007, uma série de reportagens no extinto Diário da Tarde (DT), com os perfis de personagens do samba de Minas Gerais. O trabalho foi o impulso necessário para que essa pesquisa desaguasse no Almanaque do Samba.
Nessa época, já me chamava a atenção a pouca presença da mulher nos espaços de poder do samba, ou seja, compondo e cantando sua obra. Em Minas Gerais, a pioneira foi Lourdes Maria (1927-1999), sambista e fundadora da escola de samba Monte Castelo, sediada no Bairro Santo Antônio, Zona Sul de BH.
Nessa época, já me chamava a atenção a pouca presença da mulher nos espaços de poder do samba, ou seja, compondo e cantando sua obra. Em Minas Gerais, a pioneira foi Lourdes Maria (1927-1999), sambista e fundadora da escola de samba Monte Castelo, sediada no Bairro Santo Antônio, Zona Sul de BH.
'Foram 10 discos solos gravados, participações em coletâneas, vários prêmios e homenagens no Brasil e mundo afora e uma gama de clássicos'
Diferentemente de Dona Ivone Lara, “Lourdes Bocão” não precisava utilizar estratégias para assinar suas composições, em um universo predominantemente masculino. No fim dos anos 1940, a sambista mineira, mãe do baterista Esdras Neném (ícone entre os instrumentistas do Clube da Esquina) e avó do percussionista Guto Padovani, recebia a faixa de Rainha do Samba. Lourdes Maria já defendia samba-enredo de sua autoria nos desfiles da Avenida Afonso Pena. Relegada pela história, ganhou homenagem da cantora Dona Lúcia Santos (1946-2014) com o CD “Lúcia Santos canta Lourdes Maria – A Dama Mineira do Samba”, lançado em 2013.
Esse empoderamento feminino no samba é um caminho sem volta. Coletivos, como o Mulheres na Roda de Samba, idealizado por Dorina, e Samba na Roda da Saia, dirigido pela produtora Rosane Pires, criam encontros e espaços de troca entre artistas já consagradas e aquelas em fase semiprofissional, potencializando projetos e dando visibilidade às integrantes. Outra iniciativa de valorização do samba é o projeto Samba de Minas, criado pela produtora Silvana Vilela.
Aline Calixto, Adriana Araújo, Aninha Felipe, Cinara Ribeiro, Dona Eliza, Dona Jandira, Dóris, Fernanda Vasconcelos, Lucinha Bosco, Jussara Preta, Júlia Rocha, Maria do Rosário, Marina Gomes, Giselle Couto, Manu Dias, Viviane Santos, Silvia Gomes, Vivi Amaral e Fran Januário, Tia Elza, entre tantas integrantes desses movimentos, compõem essa mesma árvore genealógica da força da mulher no samba, cuja semente foi plantada lá atrás pela Matriarca do Samba.
Dona Ivone foi, com certeza, uma artista que, pelo conjunto da obra, tem cadeira cativa no panteão do samba ao lado de grandes nomes, como Cartola, Noel Rosa, Sinhô, entre outros. Ao contrário do mundo exterior, em que o samba era marginalizado, no ambiente familiar, Yvonne percebia que o gênero musical era respeitado. Mesmo assim, relutou muito até abraçar a carreira artística. Depois de sair do internato, ingressou em uma curso de enfermagem, formando-se ainda em serviço social, trabalhando por décadas com a psiquiatra Nise da Silveira, fundadora da Casa das Palmeiras e pioneira no tratamento humanizado na área da saúde mental.
“Naquela época, a música era uma coisa muito ingrata, não dava estabilidade a ninguém. Eu queria estabilidade”, afirma, no livro “Nasci pra sonhar e cantar – Dona Ivone Lara: a mulher no samba”, da jornalista Mila Burns, uma das obras de referência desse artigo. Ao analisar a vida e obra da sambista, Mila Burns destaca a relevância de Dona Ivone Lara, considerada pela biógrafa muitas mulheres em uma. “Como todas, mas com uma peculiaridade”, completa. No samba, continua, “não é tia, não é passista, tampouco é musa inspiradora. Ela simplesmente compõe e canta, como fazem tantos homens”. Em 1965, Yvonne integrava oficialmente a ala de compositores da Império Serrano.
Só em 1977, no entanto, com a aposentadoria, ela passa se dedicar exclusivamente à música, sendo lançada por Adelzon Alves, o mesmo que lapidou Clara Nunes. O primeiro sucesso foi “Sonho meu”, gravado por Maria Bethânia e Gal Costa, em 1978, abrindo caminho para a carreira promissora de Dona Ivone em nível nacional. No mesmo ano, lança “Samba, minha verdade, samba, minha raiz”, seu primeiro LP.
Ao longo dessa estrada melódica, foram 10 discos solos gravados, participações em coletâneas, vários prêmios e homenagens no Brasil e mundo afora e uma gama de clássicos, a maioria em parceria com Délcio Carvalho: “Acreditar”, “Alguém me avisou”, “Alvorecer”, “Enredo do meu samba” (com Jorge Aragão), “Mas quem disse que eu te esqueço” (com Hermínio Bello de Carvalho), “Força da imaginação” (com Caetano Veloso), “Os cinco bailes da história do Rio” (com Silas de Oliveira e Bacalhau), entre outros. Em 2015, Aline Calixto participou da quarta edição do projeto Sambabook, que destacou a obra de Dona Ivone, cantando em DVD o tema “Não chora neném” ao lado da própria Diva, um luxo!
Retomando meu encontro com a Dama do Samba, nos idos de 2007, conforme roteiro da produtora Cinara Gomes, a gravação estava marcada para o período da tarde, no Estúdio Criações, do produtor Alceu Maia, em Copacabana, na mesma galeria que abrigou na década de 1960 o subversivo Teatro Opinião. André Meninão, amigo e anfitrião de artistas mineiros que chegam ao Rio, dirigia o Fiat Palio até o Bairro de Inhaúma, no subúrbio do Rio, para buscá-la para a gravação. Antes, uma parada na Tijuca para o embarque da empresária Miriam Souza, ex-companheira do lendário Abel Ferreira, chorão de primeira linha.
Impressionou-me o fato de Dona Ivone Lara, apesar de toda a grandeza, morar em um condomínio simples, a poucos quilômetros da Casa dos Músicos – conjunto habitacional onde Pixinguinha viveu seus últimos anos. Enquanto aguardava na sala, vi em destaque no móvel, a Palavra, publicação da Editora Gaia, fundada por Ziraldo e editada em Belo Horizonte, mas com distribuição nacional. A Dama do Samba foi capa de uma das 16 edições da efêmera revista, em uma deliciosa reportagem assinada por Israel do Vale e Cláudia Mesquita.
Revi Dona Ivone Lara em abril de 2008, quando veio a Belo Horizonte participar do lançamento do álbum, no Teatro Sesiminas. Prestes a completar 87 anos, ela havia sofrido dois baques nesse intervalo de sete meses entre os dois encontros: o primeiro, a morte do filho Odir Lara da Costa, em novembro de 2007. Yvonne ficou muito abalada com a perda e, por consequência, acaba sofrendo uma queda em casa, prejudicando sua mobilidade.
Mas, quando subiu ao palco, a coisa mudou. Digo sem pestanejar que foi uma das grandes apresentações de Dona Ivone Lara nos últimos anos de sua vida. Estava prevista a execução de quatro músicas, incluindo a gravada no CD “Delicado”. Mas o calor do público e a energia do palco fizeram com que ela se superasse. Abandonou várias vezes a cadeira para sambar, levando a moçada ao delírio. Lembro-me de que ela não queria sair do palco e coube a mim, a pedido de Miriam, que entrasse em cena para a tarefa inglória de retirá-la de cena. Alguém tem dúvida de quem é a “Dona” do samba?
A Senhora da Canção virou estrela em 2018, aos 97 anos, e deixou um legado de luta pelos direitos humanos e igualdade de gênero e contra o racismo. Desde 2019, o 13 de abril foi instituído como o Dia da Mulher Sambista, em homenagem a Dona Ivone Lara.
(**) Na certidão de nascimento é 13 de abril de 1921, mas em outros documentos a data é 1922. Com a divergência, criou-se um mote para que a comemoração do centenário se estenda até o ano que vem.
*Zu Moreira é jornalista e idealizador do projeto Almanaque do Samba – A Casa do Samba de Minas Gerais, uma plataforma que reúne um amplo acervo sobre sambistas mineiros, programas de rádio e a websérie Sambistas da Vez, com 48 episódios.