Se fosse necessário resumir a literatura brasileira da década passada em uma palavra, ela seria “celebração”. Apesar do inegável impacto da pandemia no último ano, esse foi um período em que os campos editorial e literário do país se expandiram, se diversificaram e convidaram leitores a se aproximar em um crescente número de conversas, debates, feiras e festas, organizadas tanto por grandes conglomerados quanto por pequenas editoras independentes.
Não que tenha sido uma década fácil. Como a produção de livros no Brasil é historicamente dependente do governo e suas políticas de incentivo, a literatura não escapou das turbulências políticas dos últimos 10 anos, que incluem – entre outros impactos – a extinção do Ministério da Cultura. Analisando pelo viés do negócio do livro, a década também foi complicada, com queda no número de títulos publicados ao longo do período.
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Os livros brasileiros de ficção mais marcantes da última décadaAs memórias e os novos ensaios do escritor mineiro Silviano SantiagoPremiado em Portugal, 'Torto arado' encanta também os leitores brasileirosPoesia de Charles Simic ganha tradução no BrasilSenhora da canção: Dona Ivone Lara tem lugar cativo entre grandes do sambaIsso ficou evidente na semana passada, quando o Pensar publicou uma matéria especial em que 20 críticos, escritores e gestores culturais apontaram as suas 10 leituras mais marcantes da década. O resultado foi uma seleção extremamente plural, que prova que a diversidade está em alta. Não por acaso, entre os cinco mais lembrados estão “Torto arado”, de Itamar Vieira Junior, que fala sobre duas irmãs negras em situação análoga à escravidão; “Olhos d’água”, da mineira Conceição Evaristo, com 15 contos sobre preconceitos e violências sofridos por negros; e “Marrom e amarelo”, de Paulo Scott, também sobre dois irmãos, um negro e um de pele clara.
Além da seleção de livros da semana passada, que mostra um retrato da produção da última década, o Pensar elencou os 10 fatos literários e editoriais mais relevantes dos últimos 10 anos, para ajudar a entender o período. A lista abaixo mostra que, mesmo não tendo sido fácil, a década foi extremamente rica e plural – pelo menos na literatura. Mas a pandemia, que inviabilizou eventos essenciais para a circulação dos livros, como as feiras literárias e as sessões de autógrafos, certamente provocará um impacto profundo não apenas na distribuição, mas no próprio impulso da criação dos ficcionistas de um dos países mais devastados pelo vírus. É o que vamos conferir ao longo dos próximos anos.
1) Feiras, editoras, autores: a força do circuito independente
Declarar-se independente é um grito de autonomia e liberdade criativa aliado a um sentimento de oposição. No campo editorial, oposição às limitadas oportunidades de publicação e consagração ou à lógica capitalista de grandes editoras. É um posicionamento que engloba pessoas e grupos de origens, interesses e objetivos absolutamente dife- rentes. Esse grupo, no entanto, se une e ganha força na busca pelo acesso ao leitor: a distribuição. As feiras independentes e as feiras do livro, que se multiplicaram em Belo Horizonte e em todo o estado, são organizadas por gestores culturais, sem vínculo direto com os governos. Em BH, iniciativas como a Faísca e a Primavera Literária viraram pontos de encontro e trocas entre autores e editores que criam suas próprias vias de entrada para o campo e rearranjam o fazer editorial. Por outro lado, a manutenção de projetos como o “Sempre um Papo” (mesmo durante a pandemia) garantiu a visibilidade para a propagação das opiniões de escritores e intelectuais.
2) Autopublicação e financiamento coletivo
Essas são duas práticas que parecem novidade, frutos da era digital, mas são centenárias. O que mudou é a facilidade de acesso a elas. Na última década, imprimir com qualidade ficou mais fácil e barato e, com ferramentas mais acessíveis (como software de edição e design, dicionários on-line etc.), o próprio fazer editorial se popularizou. O resultado é o momento aquecido da autopublicação no Brasil, que tem como maior exemplo Mailson Furtado, ganhador do Jabuti de Livro do Ano em 2018 com “À cidade”. O mesmo acontece com o financiamento coletivo. Plataformas digitais como o Catarse facilitaram a organização de grandes grupos financiadores, dando origem a grandes projetos, como o primoroso “2001: Uma odisseia no espaço”, da Aleph. Em edição de luxo, foi vendido apenas para 1.465 apoiadores. O resultado é que uma cópia pode valer até R$ 1.100 em sebos.
3) Visibilidade de autores negros
Best-seller nos anos 1960 com "Quarto de despejo: Diário de uma favelada”, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) passou a última década sendo redescoberta. Não foi por acaso. A soma das políticas de cotas de inclusão no ensino superior e da Lei 11.645/2008, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afro-brasileira e indígena em todo o sistema educacional do país, fez com que a arte de autores negros ganhasse mais força e um justíssimo reconhecimento. Além do resgate de nomes históricos, esse movimento ajudou autores que já estavam estabelecidos, como a mineira Conceição Evaristo, que teve seu nome ventilado para uma cadeira na Academia Brasileira de Letras. O impulso também foi sentido pela nova geração de nomes, como o baiano Itamar Vieira Junior, que viu seu “Torto arado” – sobre duas irmãs negras em situação análoga à escravidão – se consagrar como um raro best-seller da ficção contemporânea nacional, com mais de 100 mil cópias vendidas.
4) Boom de revistas literárias
A tradição brasileira de fazer revistas literárias tem raízes profundas, cheias de histórias de publicações que não costumam ter vida longa, mas cuja existência deixa marcas duradouras. Entre a efemeridade do jornal e a perenidade do livro, elas são (ou poderiam ser) território de experimentações, de consagração de novos autores e de criação de outras lógicas para o fazer editorial. Em Belo Horizonte, é possível observar um boom de novos títulos na última década, impulsionado por um circuito literário efervescente. Entre os lançamentos, se destacam a “Gratuita” (lançada em 2012), da editora Chão da Feira; a “Ô (2018), ligada ao curso Estratégias Narrativas; e a “Olympio” (2018), com a reunião de grandes nomes do mundo literário mineiro.
5) Redescoberta do livro como objeto
A forma do livro é instantaneamente reconhecível. Ela está em pinturas antigas, em fotografias e filmes – e está quase sempre presente no fundo de reuniões on-line. Mesmo que não seja lido, o livro traz consigo uma série de significados e valores. Mas isso não é o mesmo que dizer que todo livro tem sua forma interpretada igualmente. Tamanho, capa, uso de cores, tipo de impressão, material de impressão, entre outros, mudam como interpretamos uma obra. Artistas, autores e editoras traba- lham o livro como objeto há décadas, mas o mercado editorial como um todo parece ter tido um despertar para a possibilidade com o sucesso estrondoso das sofisticadas (e caríssimas) edições da Cosac Naify. A Cosac encerrou as atividades em 2015, mas o esmero e a inovação seguem como marcas re- gistradas de outras editoras, como as paulistas Carambaia e Ubu, além das mineiras Relicário (com as capas marcantes criadas pela designer Ana C. Bahia) e Impressões de Minas, com suas edições artesanais.
6) Clubes do livro
Entre as décadas de 1970 e 1980, o Círculo do Livro fez sucesso entre os leitores brasileiros. O serviço de venda de livros chegou a ter 800 mil sócios, que recebiam em casa edições caprichadas, em capa dura. Ainda que sem essa proporção, serviços parecidos voltaram a ganhar fôlego nessa década. Um dos principais é o Tag, que envia mensalmente, além de um livro surpresa em edição exclusiva, brindes relacionados à obra. Lançada em 2014, a ideia já conquistou 60 mil assinantes – longe dos 800 mil do Círculo do Livro, mas muito expressivo para a realidade atual. Outros atendem a nichos, como o Leiturinha ou o A Taba, ambos voltados para o público infantil. O movimento não passou despercebido pelas editoras, que encontraram no modelo um canal direto com seus leitores. Intrínseca e Ubu, focada em não ficção, também lançaram seus clubes nos últimos anos.
7) colapso de grandes redes de livrarias
Duas das principais redes de livrarias do país, Saraiva e Cultura, entraram em colapso em 2018. Naquele ano, as empresas entraram com pedidos de recuperação judicial, requerendo a revisão de dívidas na casa das centenas de milhões de reais. Na linha de frente das cobranças, as editoras sentiram o baque. A imensa maioria ainda tem a receber valores de livros que foram vendidos nas lojas, mas não foram repassados a elas. Culpa do sistema de consignação, em que a editora só recebe da livraria se o livro for vendido na loja. A notícia é ruim, mas não é de todo trágica. A redução do modelo megastore acabou por valorizar as livrarias de rua, que costumam ter uma seleção cuidadosa e atendimento personalizado.
8) Livros nas redes: o boca a boca, agora, é via redes sociais, como o instagram
O número impressiona: mais de 800 mil pessoas assinam o canal no YouTube de Bel Rodrigues, uma das booktubers mais reconhecidas do país. No Instagram, são robustos 214 mil seguidores, que acompanham as opiniões e dicas de leitura da moça de 27 anos. Assim como ela, diversos outros canais e influenciadores se dedicam a resenhar e recomendar livros. O impacto de uma indicação é óbvio: livros recomendados por esses canais costumam esgotar nas livrarias e até nas editoras. É pelas redes desses influenciadores que os leitores passaram a trocar impressões sobre o que estão lendo, o que transformou o velho boca a boca em atividade digital: a capa de “Torto arado” foi uma das imagens mais compartilhadas no Instagram nos últimos meses.
9) A força da poesia
Apesar de uma tradição de criação de romances, contos e crônicas, é na poesia que a literatura brasileira – e, principalmente, mineira – mostrou sua força na última década. O movimento é difícil de mensurar, mas basta observar o circuito independente e de editoras de pequeno porte para ver que um dos motores tem sido a publicação de novos nomes da poesia. É o caso de Ana Martins Marques, cuja estreia saiu pela Scriptum, que também é livraria em BH. Ana teve alguns títulos – em especial “O livro das semelhanças” (Companhia das Letras, 2015) e “Como se fosse a casa: uma correspondência” (Relicário, 2017), este com Eduardo Jorge – muito bem recebidos pela crítica e pelo público. Outro exemplo é a poesia falada, que já cativava com os saraus, mas ganhou espaço e novos públicos na década passada com o slam. Atualmente são centenas de grupos que se organizam, produzem poesia e competem – inclusive internacionalmente – pela consagração como poeta.
10) Liberação das biografias
Foi uma vitória contra a censura. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por unanimidade, liberar a publicação de biografias não autorizadas no país. A briga havia sido puxada pelo cantor Roberto Carlos, apoiado por Chico Buarque e Caetano Veloso, e que havia retirado de circulação “Roberto Carlos em detalhes”, lançado em 2007. Pivô da discussão, o livro de Paulo César de Araújo ainda não voltou à circulação. Nos sebos, uma cópia não custa menos de R$ 170, e existem exemplares à venda por até R$ 1.300. Mas a brecha que o livro abriu provocou, indiscutivelmente, um crescimento do gênero no país, com biografados que vão do maluco beleza Raul Seixas à assassina condenada Suzane von Richtofen.