Jornal Estado de Minas

LITERATURA

Cartas de Celso Furtado ajudam a entender o Brasil


“O Brasil é um caso extremo de crescimento com alto custo social e pilhagem de um país por uma pequena minoria protegida por um establishment militar muito caro. A mania de grandeza produziu sua mais fina caricatura. Fora isso, é um país maravilhoso e bonito, você sabe disso.” A carta é de Celso Furtado (1920-2004), escrita em 24 de agosto de 1972 ao seu colega Nicholas Kaldor (1908-1986), expoente da Universidade de Cambridge, figura central na construção de uma crítica aos modelos de crescimento neoclássicos, fundador dos modelos estruturalistas pós-keynesianos.



Ao mesmo tempo em que atravessava os “anos de chumbo”, o Brasil vivia o seu “milagre econômico”: assistia às elevadas taxas de crescimento, acompanhadas do alto endividamento, da concentração de renda e da acentuação das desigualdades sociais. 

A Darcy Ribeiro, em 3 de abril de 1970, Celso Furtado traçava em correspondência o seu diagnóstico político e social: o governo autoritário-militar ascendera ao poder não para introduzir mudanças estruturais, mas antes, para “defender o status quo falsamente ameaçado”.

Depois de assinalar que o processo evoluíra por um trajeto errado e de consequências imprevisíveis, Celso Furtado concluíra: “Em síntese, não vejo nenhum caminho curto que permita ao nosso país ganhar tempo na história. Somos um país grande que se define um perfil numa época difícil. Nas condições atuais de explosão tecnológica, pode um país em formação preservar o senso de identidade? Podemos iludir-nos com um milagre voluntarista. Mas não é isso um simples escapismo?” 

Do exílio, com os direitos políticos cassados já na primeira lista anunciada pelo Ato Institucional nº- 1, de 9 de abril de 1964, ministrando aulas na Universidade de Sorbonne e em intensa atividade intelectual, Celso Furtado, o único brasileiro indicado ao Prêmio Nobel de Economia (2013), que dedicou a vida a entender o Brasil, a América Latina e a mecânica do subdesenvolvimento, analisava e prospectava cenário em assídua correspondência com um amplo espectro de interlocutores.



Exímio datilógrafo, soltava sob a teclas ideias e diálogos com intelectuais, pesquisadores, economistas, sociólogos, professores, jornalistas, militantes, políticos e formuladores de políticas. Esse é um tesouro epistolar particularmente volumoso entre 1964 e 1985, inserido em mais de 15 mil itens, que narram a trajetória de Celso Furtado entre 1949 e 2004. Uma seleção de 300 dessas cartas aparece, sob a organização da jornalista Rosa Freire D’Aguiar, no recém-lançado livro “Correspondência intelectual” (Companhia das Letras). 

Rosa, segunda esposa de Celso Furtado, era correspondente em Paris da revista IstoÉ quando o conheceu em 1979, durante uma feijoada na casa do jornalista e fundador do PDT José Maria Rabêlo, momento em que o Brasil discutia a anistia ampla e geral. A aventura que levou Rosa a mergulhar nesse “mar de cartas”, dando corpo a “Correspondência intelectual”, se iniciou em 2019. Na ocasião, foi lançada a obra “Diários intermitentes” (Companhia das Letras), que reúne anotações deixadas por Celso Furtado ao longo de seis decênios e meio de sua vida, entre 1937 e 2002. “Quando estava preparando os diários, caí nas cartas. Na verdade, nenhum dos dois livros saiu em 2020, ano do centenário. O diário foi publicado em novembro de 2019 e a obra com as correspondências está saindo agora, depois do centenário”, conta ela. 

A lista com quem Celso Furtado correspondeu ao longo de sua vida, trocando impressões sobre a conjuntura, partilhando afinidades e apontando discordâncias teóricas sobre o desenvolvimento do Brasil e da América Latina é ampla e eclética. Passa por Alain Touraine, Albert O. Hirschman, Antonio Callado, Antonio Candido, Bertrand Russell, Caio Prado Jr., Carlos Lacerda, Darcy Ribeiro, Ernesto Sabato, Eugenio Gudin, Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Francisco de Oliveira, Francisco Weffort, Hélio Jaguaribe e Luciano Martins. E segue com Lina Bo Bardi, Luiz Inácio Lula da Silva, Maria da Conceição Tavares, Nicholas Kaldor, Otto Maria Carpeaux, Plínio de Arruda Sampaio, Raúl Prebisch e Roberto Campos, entre outros.



Em seu conjunto, essa troca de correspondência aponta para as ideias, muitas em seu nascedouro, elaboradas em 30 volumes de grandes obras de Celso Furtado – entre elas “Formação econômica do Brasil” e “Formação econômica da América Latina” –, que marcaram a história do pensamento econômico brasileiro e latino-americano na segunda metade do século 20. 



FRANÇA E CHILE

Compreendendo a economia com uma visão interdisciplinar e humana, Celso Furtado sedimentou as bases de novas concepções sobre desenvolvimento econômico e subdesenvolvimento latino-americanos. Formado em direito no Rio de Janeiro, doutorou-se em economia na França e, em 1949, mudou-se para Santiago, no Chile, para integrar a recém-criada Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), órgão da ONU voltado para o desenvolvimento regional.

A Cepal era o centro de debates sobre os aspectos teóricos e históricos do desenvolvimento da época. Assim como a sua obra, na correspondência de sua vida, Celso Furtado aborda o subdesenvolvimento sob a perspectiva estrutural. Para ele, rompê-lo não seria um problema apenas de planejamento econômico, mas fundamentalmente político, de vontade política para empreender transformações estruturais na realidade. 





Para além de sua teoria, Celso Furtado buscou também transformar a realidade: foi responsável pela criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) no governo Juscelino Kubitschek e como ministro do Planejamento no governo João Goulart formulou o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social, lançado em 1962, com as chamadas reformas de base, agrária, tributária e social, que, segundo ele, seriam uma condição fundamental para superar o subdesenvolvimento. Mesmo não sendo uma transformação do sistema produtivo, o plano foi condenado pelo empresariado brasileiro, pelo empresariado internacional, que, articulados com militares e o governo norte-americano, articularam o golpe militar de 64. 

Celso Furtado tinha 43 anos quando partiu para o exílio, em meados de maio de 1964. Do Chile, onde ficou alguns meses, foi para os Estados Unidos lecionar como professor visitante no Economic Growth Center, da Universidade de Yale. Por interferência do regime militar, contudo, a universidade não renovou o seu contrato e, em 1965, Celso Furtado se instalou em Paris. Voltava à Sorbonne, onde se doutorara, agora, lecionando economia do desenvolvimento e economia latino-americana.

No exílio se escrevia muito. Não obstante o mundo despontasse do pós-guerra, em nova ordem internacional, com o triunfal ressurgimento da democracia no Ocidente sobre os escombros do nazismo e do fascismo, a América Latina passava por um surto autoritário, com irrupção em dominó de muitas ditaduras, resultado da Guerra Fria e da disposição dos Estados Unidos de cercar a sua área de influência no continente.





O tempo das ditaduras, sob a repressão política das oposições, também foi um tempo de intensificação da concentração de renda. “Estou convencido de que, independentemente do processo inflacionário, existem forças de caráter estrutural que levam à concentração da renda na economia brasileira (ou em qualquer economia com as características sociais e institucionais da nossa) e que essa concentração de renda é o principal obstáculo para a consecução de uma taxa elevada e estável de desenvolvimento”, escreveu ele em 1º de setembro de 1968 ao economista chileno Anibal Pinto (1919-1996), conhecido por seu trabalho na teoria da dependência e na economia estruturalista.


Ora cruzando o Atlântico, ora o Pacífico, foram cartas que nem sempre chegavam pelo correio, dada a permanente vigilância do regime militar sobre os intelectuais, conforme se depreende de correspondência trocada com o sociólogo Luciano Martins (1934-2014), autor de “Estado capitalista e burocracia no Brasil pós-64” e “A geração AI-5 & maio de 1968”.

Em 22 de maio de 1965, Luciano Martins lhe escreveu narrando os primeiros meses do golpe: “(...) As exigências de radicalização repressiva são cada vez mais constantes. E - o que é pior – se vão institucionalizando aos poucos: atualmente em vias de ir ao Congresso a legislação das inelegibilidades, do arrocho salarial, a lei de segurança, a lei de imprensa, a anulação do foro especial, a retirada da competência da Justiça civil dos crimes contra a segurança etc. A ditadura total se vai implantando aos poucos, em suma. (...) Bem, meu caro Celso, vou ficar por aqui para aproveitar o portador que segue daqui a horas para Nova York e de lá poderá enviar com segurança essa carta para você. É que instituíram agora uma censura postal altamente irritante, não pelas implicações policiais que possam advir, mas simplesmente porque a gente escreve e a carta não chega. O curioso é que parece que a coisa é só para as cartas que saem, e não para as que entram. Enfim, o cérebro militar tem um funcionamento de fato muito peculiar. O abraço do Luciano.”





Tormento pelo destino do Brasil, aflição por um período crítico de sucessivos golpes militares que se abateram sobre o continente são sentimentos que transparecem na correspondência de Celso Furtado e inúmeros intelectuais e pesquisadores brasileiros e chilenos banidos ou autoexilados. No contexto do brutal golpe militar que destituiu o presidente chileno Salvador Allende, Gonzalo Martner, que fora seu ministro de Planejamento, envia a Celso Furtado carta em 8 de outubro de 1973, já refugiado na embaixada da Venezuela, em Santiago: “Escrevo-lhe estas linhas de meu asilo na embaixada da Venezuela. Outros amigos estão asilados, como Pedro Vuskovic na do México, enquanto outros estão presos (Carlos Matus e outros), e uns poucos economistas foram fuzilados. Este foi o golpe mais sangrento dos últimos anos e estimamos que há não menos de 20 mil mortos, enquanto se fuzilam de 15 a 20 pessoas por dia, segundo os jornais”. Também José Serra, do Chile, escreve a Celso Furtado antes de ser obrigado a se refugiar na embaixada italiana. Entre os interlocutores brasileiros, a correspondência com o sociólogo e ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso está entre as mais volumosas (leia entrevista).

São muitas as experiências e emoções reveladas no “olho do furacão”, no momento de grandes acontecimentos históricos. Márcio Moreira Alves, deputado federal cassado após pronunciar em setembro de 1968 derradeiro discurso crítico ao regime militar, que antecedeu a edição do Ato Institucional nº 5, escreveu a Celso Furtado em 25 de novembro de 1975, de Lisboa. Na correspondência, ele descreve a tentativa de golpe por parte de um grupo de militares de esquerda portuguesa, que disputava com as forças moderadas a direção do Conselho da Revolução, que derrubou, em 1974, a ditadura salazarista em Portugal.

Celso Furtado lhe responde de Paris, em 26 de dezembro de 1975: “Uma revolução social não é uma cruzada. Se nos colocamos no plano irracional, a direita terá sempre mais chance de dizer a última palavra (...) O que foi realizado em Portugal é extraordinário. Poucas revoluções terão feito tanto em tão pouco tempo e deixando tão poucas feridas. Creio que você atribui qualidades mágicas à mudança do modo de produção. O importante é destruir os grupos que concentram o poder econômico e por esse meio controlam o Estado. Mais importante ainda é não permitir que eles se reconstituam, o que requer agora avançar rápido na organização de outras forças”. 





Em 1981, Celso Furtado se filiou ao Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Quatro anos depois, integraria a Comissão do Plano de Ação do governo Tancredo Neves. Foi embaixador do Brasil junto à Comunidade Econômica Europeia, mudando-se para Bruxelas antes de, entre 1986 a 1988, ser nomeado ministro da Cultura do governo Sarney, período em que criou a primeira legislação de incentivos fiscais à cultura. Celso Furtado foi eleito para a Academia Brasileira de Letras em 1997, e o seu pensamento permanece relevante na academia, na política e no debate público. Após a sua morte, em 2004, foi inaugurado o Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, responsável pela criação da Biblioteca Celso Furtado, que abriga 7.542 livros que pertenceram ao autor, e pela publicação semestral de “Cadernos do Desenvolvimento”. 
 
Correspondência Intelectual (1949-2004)
• Celso Furtado
• Organizadora: Rosa Freire D’Aguiar
• Companhia das Letras
• 428 páginas.
• R$ 99,90 (E-book: R$ 39,90) 

(foto: AFP)

ENTREVISTA/Fernando Henrique Cardoso/Sociólogo, ex-presidente da República

“O Celso sempre teve a capacidade 
de entender do mercado e do povo”

O sociólogo Fernando Henrique Cardoso e o economista Celso Furtado se conheceram em 1960, quando este, superintendente da Sudene, recebeu-o na região para uma pesquisa de campo em um engenho no Recife. Tornaram-se amigos, interlocutores e durante o período autoritário-militar tiveram diversos encontros no Chile, em Dacar e em Paris, para onde Fernando Henrique também se mudou para lecionar na Faculdade de Nanterre. Em entrevista por telefone ao Estado de Minas, o ex-presidente da República conta o que considera mais marcante na trajetória de Furtado. 





O que Celso Furtado representou para a teoria econômica e a forma de pensar o Brasil?
Sou de uma geração para a qual o Celso era o mestre da economia sobre o desenvolvimento. Ele trabalhou na Cepal, trabalhou com o Raúl Prebisch e escreveu livro importante sobre o desenvolvimento do Brasil. O Celso foi personalidade marcante de nossa geração, pois conhecia a teoria econômica e era também um cientista social: juntava a visão de economista e a visão política e social, representa uma ligação, um cientista social.

Hoje temos bons economistas, mas são economistas, entendem do mercado, não entendem do povo. O Celso sempre teve a capacidade de entender do mercado e do povo. Conheci o Celso quando ele era diretor da Sudene. Ele contribuiu muito, através da Sudene, para melhorar as condições de vida no Nordeste. Celso, além de tudo, tinha uma grande característica pessoal: embora soubesse o valor que tinha, era modesto, era uma pessoa agradável de conversa e de conhecimento. O Celso é um dos grandes brasileiros, sempre foi uma pessoa de pensamento social aberto, progressista

Sob a perspectiva da teoria da dependência que o senhor elaborou, como situa o Brasil hoje no contexto internacional?
A chamada teoria da dependência na verdade é uma teoria sobre o desenvolvimento. O Brasil cresceu, mas na verdade não houve o conjunto de transformações necessárias para o dar o salto do tipo que deu os Estados Unidos. Pode dar, tem condições econômicas e naturais. À época do Celso, num país como o Brasil, o investimento público era essencial, porque senão não havia crescimento. Agora é menos essencial, mas continua sendo importante: é preciso ter investimento público e investimento privado. E tem de ter esse olhar para a distribuição de renda, no que for possível. 

O atual presidente da República costuma pressionar as instituições democráticas. Esse tipo de constrangimento atrapalha o desenvolvimento econômico?
Acho que sim. O grande desenvolvimento que se deu no mundo ocidental foi quando houve também a liberdade concreta. Nos Estados Unidos, nunca se impôs nada, a própria sociedade foi evoluindo e se transformando, a mesma coisa vale para a maioria dos países ocidentais. A não ser os países que tiveram uma revolução social, tiveram um momento em que não tiveram liberdade, ou então aqueles que foram tomados por ditaduras tipo a nazista. Mas não é o caso atual: no mundo em geral, o sentimento de que as pessoas têm importância conta, o que não quer dizer que o coletivo não pese, mas dentro do coletivo é preciso entender a função da pessoa e da liberdade. Infelizmente, o nosso governo, na retórica, fala de uma maneira, o modo de falar é mais para provocar constrangimento.





(foto: Academia Mineira de Letras)

ENTREVISTA/Rosa Freire D´Aguiar /Organizadora

“Ele se considerava mais um
teórico do subdesenvolvimento’’

Como situa a importância intelectual da obra de Celso Furtado no pensamento brasileiro? 
Celso mantém uma atualidade em relação a vários eixos da produção dele. Produziu muito, escreveu uns 30 livros, muitos são mais datados. Mas ele tem uma permanência nas obras dele. Primeiro, o esforço que ele fez de entender o país historicamente, economicamente, que é o grande livro dele, “A formação econômica do Brasil”, e entender também, depois quando foi ministro da Cultura, a formação cultural do Brasil. Quando você tem autores que tentaram entender o país, refletir sobre as nossas origens, nossa formação, são clássicos.

Esses nomes, não só Celso, evidentemente, mas Caio Prado, Sérgio Buarque, vários outros, são clássicos, você tem de se referir a eles e lê-los. No caso de Celso, tem algo mais, a meu ver, porque ele foi o grande teórico do desenvolvimento e do subdesenvolvimento. Até preferia dizer que ele se considerava um teórico mais do subdesenvolvimento do que do desenvolvimento. Infelizmente, é um problema que ainda não está resolvido no país, que continua a ter algumas ca racterísticas do país subdesenvolvido. Então acho que ele mantém uma atua- lidade, que faz com que deva ser lido por toda pessoa que se interesse pelo pensamento social brasileiro e por outras questões, pelo lado da cultura, ciências humanas, sociais em geral.

Celso tinha essa cabeça muito interdisciplinar. Navegou pelas fronteiras das várias disciplinas com muita competência. A obra dele então tem muito abrangência, que a torna muito atual. Sempre teve uma visão global dos problemas, uma característica dele como pensador. O pensamento dele é focado na economia, mas muito interdisciplinar, a vertente histórica para entender a economia brasileira, o aspecto cultural, ambiental, ele navegou por essas águas, com muita competência e atualidade. É um homem marcante do pensamento social brasileiro. 





A obra organiza a correspondência de vários momentos da vida de Celso Furtado, entre 1949, após a defesa de doutorado na Sorbonne, até 2004, ano de sua morte. Qual foi o período em que Celso Furtado mais se correspondeu?
Celso ficou exilado por 21 anos e foi quando ele mais se correspondeu. A grande produção de cartas dele foi nesses anos em que estava fora do Brasil. Comecei a ler sistematicamente, esta- vam bem organizadas por ano, e fui ficando muito bem impressionada com a riqueza do material. Falei com a Companhia das Letras, fechamos o projeto e eu mergulhei nesse mar de cartas. Até que resolvi fazer uma espécie de contagem, e cheguei a essas 15 mil cartas, baseadas nas cartas do exílio. Ele recebia cerca de 400 cartas por ano. A imensa maioria são cartas que não me interessaram, como convites; à época, por qualquer coisa se mandava carta. 

Qual foi o critério empregado para a seleção das cartas que integram a obra?
As cartas em que há diálogo intelectual foram as que me interessaram. É muito difícil fazer uma seleção, pois tinha provavelmente mais de um bom terço de volume de cartas que gostaria de ter publicado. Então, a minha ideia foi pegar cartas em que realmente houve um vaivém. Ele escreve para Fernando Henrique Cardoso, que escreve para ele. Ele fala com Darcy Ribeiro, que responde. Ele fala com Francisco Iglesias, essas são fantásticas.

A ideia foi essa. É um livro que considerei um trabalho bastante único, porque a correspondências de modo geral no Brasil e na França são entre duas pessoas. Neste livro, eu ponho para conversar muita gente. Há um diálogo entre eles, intelectuais, políticos, observadores, alguns foram atores da história brasileira, da sua geração, debatendo. Celso era muito bom datilógrafo e ele escrevia a máquina. Cansei de vê-lo escrevendo cartas. Às vezes, comentava: “O Octávio Ianni me escreveu, estou respondendo”. Então mais ou menos eu sabia que tipo de diá- logo ele tinha com os amigos intelectuais. Mas foi uma surpresa a quantidade de temas.



Tem umas cartas explicando o golpe de 64, depois o de 68, depois o do Chile. Tem cartas trocadas com Luciano Martins que são um ensaio sociológico. Porque quando Celso sai do Brasil, vários amigos deles que continuaram lá começam a explicar como estava se desenrolando o golpe militar. E é muito boa a análise que os amigos deles fazem e fazem-no num nível muito franco, de muita sinceridade, escrevendo para um amigo. Isso tudo foi uma surpresa, pois eu não conhecia esses detalhes das cartas mais antigas. 

O que Celso Furtado diria, em sua opinião, do Brasil de hoje?
Acho que ele tentaria passar para as novas gerações, pois sempre teve um pouco isso, de fazer o diagnóstico da situação, depois fazia propostas. Acho que faria diagnóstico e teria as propostas em tom de relativo otimismo, porque não dá para desacreditar no país, a luta tem de continuar, talvez de outras formas. Acho que ele tentaria passar mensagem de certo otimismo, porque senão a derrota é a derrota final. Outra coisa que ele chamaria a atenção, é para a importância que nesta pandemia ganha o Estado promotor de certas coisas.

Você vê que na Europa hoje, tanto na França quanto na Alemanha, que não são go- vernos de esquerda, veja que a presença do Estado para enfrentar essa crise sa- nitária que estamos vivendo é fundamental. O modelo neoliberal que tenta acabar e liquidar o Estado, está sendo ele próprio enterrado. Conhecendo o que Celso já escreveu, acho que teria essa visão. Não de passar um otimismo ingênuo, mas de confiar no tamanho e na capacidade, nas pessoas do país. E ressaltando com certeza a necessidade de se rever o papel do Estado, como indutor, como protetor da população do país.



O curioso é que em países de centro, centro-direita, se dão conta diante da crise sanitária, que é o Estado que segura no momento da crise. Não é o Estado planejando necessariamente, mas dando a possibilidade às pessoas de passarem por um mau momento. Vejo na França como se segura a população com auxílios para quem está desempregado, para os restaurantes fechados, aqui está tudo fechado.

Isso tudo o Estado tem de segurar por trás, senão desmonta a sociedade. Acho que essa fé cega no mercado vai sair abalada desta pandemia. Quem diria um presidente norte-americano elogiando sindicatos, em detrimento de Wall Street. Isso é óbvio, no Brasil não.

audima