Um homem velho, um advogado calcinado em anos de remorso por livrar corruptos da cadeia, deita a cabeça no travesseiro, mas não consegue dormir. O ressonar de sua senhora ao lado na puída camisola, a mulher que dele cuida e ministra os remédios, lhe dá calafrios. É uma santa, a esposa dedicada. O hálito e os sons saídos das vias respiratórias bafejam em sua alma e ele não consegue tirar da mente um assassinato.
O Bórgia mais famoso, entre a história de uma ou duas de suas amantes, comenta com o velho advogado sobre uma das técnicas de assassinato em voga nos anos 1400: o envenenamento. O papa desfila as agruras e dores da imortalidade, enquanto planta na cabeça desvairada do velho aquele método sedutor e romântico de acabar com a esposa.
Crime e castigo são temas do novo livro do octogenário escritor paulista Mafra Carbonieri: “Um estudo em branco e preto” (Editora Reformatório). Prolífico e de pena erudita, integrante da Academia Paulista de Letras, Mafra desfila seu estilo minimalista e pontiagudo em mais de uma dezena de livros desde os anos 1970, onde domina com elegância qualquer gênero e formato literário, da poesia ao romance, do conto ao infantil. Entre seus livros mais marcantes estão “Os gringos”, “Arma e bagagem”, “Homem esvaziando os bolsos” e “O motim na ilha dos sinos”.
Duas partes
No mais recente livro, a referência óbvia é a estreia do detetive Sherlock Holmes, personagem criado por Sir Arthur Conan Doyle, em “Um estudo em vermelho”. Assim como no romance policial britânico do século 19, este “estudo” é dividido em duas partes. O planejamento do crime, com suas diversas hipóteses de execução: machado, veneno, atropelamento; e a internação em um hospital psiquiátrico, onde o esquizofrênico vilão mergulha em hipóteses sobre remorso, processo penal e a fronteira entre realidade e loucura. Insano que é, por breves momentos flerta com a racionalidade, até concluir: “Voltar à razão é a pior das loucuras”.
O crime é uma desculpa para Carbonieri viajar na mente do personagem e dos processos, legais, mentais, espirituais, da miséria humana. Mas, como a escrita do paulista de Botucatu foi afiada e temperada por uma vida inteira de experiência como promotor, juiz e desembargador em São Paulo, o romance não se furta de agradar até mesmo ao fã de livros policiais, em um final com o típico assassino que até então passara despercebido.
À “farsa” policial se sobrepõem as texturas eruditas existenciais de Mafra. Para além disso, como num confeito francês em camadas de cremes e ganaches diversos, ele propõe um jogo de ficção e realidade ao misturar personagens de outras obras suas, como o jornalista Malavolta Casadei e frei Eusébio do Amor Perfeito (suas “transcriaturas”, como diz), ao próprio Bórgia, Freud, Kant, Shakespeare, o Watson de Sherlock e vários outros, em uma teia de relatos tão intricados quanto fascinantes, em um modelo explorado à exaustão pelo escritor chileno Roberto Bolaño.
Em sua saga dostoievskiana (talvez seria melhor citar Tolstoi, pois o velho lê “Anna Karênina” enquanto os fatos se desenrolam), o assassino tenta fugir da “ditadura dos acontecimentos” e assegurar um sentido preciso a cada minuto de sua existência, para concluir com uma tirada aristotélica: “Melhor raciocinar por um caminho que seja um fim em si mesmo e não leve a lugar nenhum.”
Trecho
“Imagino por onde rastejaria a cobra que provocou em Cleópatra o último estertor. Penso na saliva sedutora do diabo. Ou nos potes florentinos. A culpa, no envenenamento, estaria onde estivessem a paixão homicida e a síntese química. Se eu tenho paixão, ela não me abandona na sagrada convocação da morte pela seiva dos infernos. Hoje eu enveneno essa mulher. Ninguém me despojará da culpa e dos seus rego- zijos íntimos. Para provar que não sou desumano, ou perverso, admito que cultivo secretamente o prazer do remorso.”
Escrita de Mafra tem profundo compromisso com a vida
“Mafra Carbonieri é um escritor forjado nos anos mais duros da história brasileira recente. Sua prosa dá conta em alguma medida das tensões desse período, arrolando personagens à beira de situações-limite, imersos em uma realidade conflagrada. Desde seus primeiros livros, a linguagem sutil que enunciava essa matéria bruta vinha contaminada por um inesperado lirismo, que, além de potencializar, por oposição, a atmosfera rarefeita e opressiva das narrativas, permitia suspeitar da existência de um poeta por trás do prosador. Porém, o que mais distingue a escrita de Mafra Carbonieri e a torna relevante é, acima de tudo, o profundo compromisso com a vida, além do olhar carregado de irônica compaixão dirigido ao que de mais humano resta em cada um de nós.”
Marçal Aquino, escritor e roteirista (texto publicado na orelha de “Um estudo em branco e preto”)
“Um estudo em branco e preto”
Mafra Carbonieri
Editora Reformatório
175 páginas
R$ 40