Jornal Estado de Minas

VERSOS

Carolina de Jesus é referência para jovens escritoras brasileiras

O escritor, poeta e jornalista Audálio Dantas descreveu a favela do Canindé, em São Paulo, como o “pequeno e (miserável) mundo de Maria Carolina de Jesus”. Na reportagem de junho de 1959 da revista O Cruzeiro, o jornalista apresentou ao mundo Carolina Maria de Jesus. Primeiro descreveu as condições do lugar: Carolina vivia mal, não tinha profissão, não tinha o que dar de comida aos filhos.





Em seguida, destacou o olhar de Carolina, que “aprendeu a ver além da alma da rua”. Por fim, introduz a escritora. “Escreve versos ingênuos, enche cadernos de sonhos. Mas não se limita a sonhar.” Coube a ele apresentar, na edição de número 36 da principal publicação brasileira na época, a mulher negra de 45 anos que vivia em uma favela, sem ter o quê dar de comer aos três filhos, mas que, com a escrita, apesar de toda carência material, criou um mundo simbólico de uma riqueza sem fim.

As letras eram um universo inusitado para quem via na literatura espaço de expressão de pessoas letradas, com alto padrão de vida, homens e brancos. Portanto, a escrita de Carolina rompia a literatura, e vida brasileira, como um acontecimento.
 
A reportagem deu visibilidade aos diários de Carolina, que originaram o livro “Quarto de despejo: diário de uma favelada”, fenômeno de vendagem. Em apenas três dias, vendeu 30 mil exemplares e viu a primeira edição esgotar. No ano de 1960, foram vendidos 100 mil exemplares. Em breve, será reeditado pela Companhia das Letras.





Audálio chegou até Carolina quando fazia uma reportagem sobre remoção na favela do Canindé, em São Paulo, para a construção da Marginal Tietê. Quando conheceu Carolina, ele se surpreendeu com mais de 20 cadernos com os manuscritos dela. Nascida em Sacramento (MG), ela se mudou para São Paulo, onde criava os três filhos com o trabalho de catadora de papelão, mas mantinha uma visão crítica do mundo e principalmente descrevia a fome. “A fome aparece no texto com uma frequência irritante. Personagem trágica, inarredável. Tão grande e tão marcante que adquire cor na narrativa tragicamente poética de Carolina (...) Carolina viu a cor da fome – a amarela”, escreveu na apresentação de “Quarto de despejo”.

Seis décadas depois da publicação do primeiro livro, Carolina Maria de Jesus revoluciona e faz um reboliço no universo editorial brasileiro. Os ecos de “Quarto de despejo” (1960) e “Casa de alvenaria” (1961) reverberam em textos autorais de 200 autoras negras de todas as idades, que se lançam na literatura na coletânea “Carolinas – A nova geração de escritoras negras brasileiras”, organizada por Julio Ludemir como resultado de uma parceria entre a Festa Literária das Periferias (Flup) e a Editora Bazar do Tempo.

As mulheres que se lançam como escritoras foram selecionadas entre 500 inscritas para participar do processo de formação com a orientação de Itamar Vieira Júnior, Alexandre Faria, Ana Paula Lisboa, Cristiane Costa, Eduardo Coelho, Eliane Alves Cruz e Milena Britto.





(foto: Audalio Dantas/O Cruzeiro/EM)

Carolina Maria de Jesus em fotos publicadas pela revista O Cruzeiro, em junho de 1959: na favela do Canindé, em São Paulo, a mineira 'aprendeu a ver além da alma da rua', nas palavras do autor da reportagem, o jornalista Audálio Dantas (foto: Audalio Dantas/O Cruzeiro/EM)

Lara e Luzia

Uma das Carolinas é a sete-lagoana Lara de Paula, autora de “Do trema à crase”, conto no formato de uma carta de Luzia, a mulher mais antiga da América do Sul, que viveu há 12 mil anos, para Carolina Maria de Jesus. Ela recebeu a orientação do escritor Itamar Vieira Júnior que sugeriu às mulheres que escrevessem contos no formato de carta que tivessem aproximação com o universo de Carolina. A opção de estabelecer a correspondência entre Luzia e Carolina foi motivada pela profissão de Lara, que é arqueóloga.

Em meio ao processo de orientação, ocorreu em 15 de junho do ano passado um incêndio no Museu de História Natural da UFMG, em Belo Horizonte. Lara participou das atividades de resgate do material e se lembrou do incêndio do Museu Nacional, quando o fóssil de Luzia quase se perdeu em meio às chamas. Embora temporalmente tão distante, Luzia seria, na atualidade, lida como uma pessoa fenotipicamente negra – aspecto esse que a conecta com Carolina, também uma mulher negra e ambas abridoras de caminhos para jovens negras como Lara de Paula.

“Venho da área científica, ciências humanas, da arqueologia, que não é tão próxima assim da literatura. Foi muito importante ter o Itamar como orientador, ele próprio é geógrafo”, relata. A identificação com o escritor não foi apenas por ambos serem oriundos da academia. “É muito bom ter o espelhamento em outra pessoa negra, que está se enveredando pelos caminhos da literatura, por esse universo das publicações onde ainda falta muito espaço para abarcar as narrativas de pessoas negras. Ter esse exemplo auxiliando na produção dos textos e nas interpretações das nossas próprias escritas foi mágico”, avalia Lara.




Lara de Paula, de Sete Lagoas (MG): autora de 'Do trema à crase', um dos contos da coletânea 'Carolinas' (foto: Arquivo Pessoal)

As 200 mulheres, conforme caminharam nos encontros, tiveram oportunidade de conhecer obras de outras mulheres negras, como Conceição Evaristo, e puderam saber ainda mais sobre Carolina com a filha Vera Eunice, que fez uma das palestras, e com pesquisadoras da obra da escritora, como Fernanda Miranda.

Para o título do conto, Lara propõe uma brincadeira com os sinais do trema e da crase. Ela lembra que essa brincadeira com as palavras é uma característica da escrita de Carolina, que transitava entre palavras muito rebuscadas e, às vezes, fora do uso cotidiano, e construções rotineiras, mais presentes nesse linguajar.

“Pensei nessa brincadeira do trema à crase por conta de serem esses recursos linguísticos. No caso do trema se tornou ultrapassado, obsoleto, do esquecimento que remete a Luzia. E a crase que junta duas palavras numa letra só, que aglutina, então as parecenças, aquelas que são semelhantes, simbolizando assim o encontro entre Luzia e Carolina.”





O primeiro contato de Lara com Carolina foi na escola, no ensino fundamental, quando leu uma menção de “Quarto de despejo” num trecho do livro didático. Ela lembra que, na época, não era usual encontrar referências positivas de autores negros e que Carolina mudou essa percepção.

“Era uma narrativa de uma pessoa negra que, mesmo tendo passado por muitas questões, conseguiu ampliar a voz e atingir outros espaços, ser publicada, e ter outro tipo de inserção social”, recorda-se. Mas, apesar da importância de Carolina, o livro não foi indicado para leitura pela professora.

Anos depois, já na faculdade, Lara foi relembrada de “Quarto de despejo” quando participou de Preta poeta, projeto idealizado por Julia Elisa. Em 2018, como parte do projeto, foram realizados encontros entre mulheres negras para discutir literatura e compartilhar experiências e discutir as próprias escritas. Os encontros ocorreram na Biblioteca Pública de Minas Gerais. “As bibliotecárias, muito solícitas, quase todas negras, também separavam, gentilmente, as obras de escritores negros para que a gente tivesse, antes do encontro, um vislumbre. Nessa época, retomei e conheci a fundo a obra de Carolina Maria.”





A sete-lagoana veio para Belo Horizonte para estudar na UFMG. Ela percebe uma maior inserção de autores e autoras negras no mercado editorial brasileiro. Para ela, esse movimento muda a literatura e aproxima ainda mais os leitores.

“Escrever nada mais é do que descortinar imaginário. Você pode reiterar imaginários já postos de opressão e estereótipos, ou dar vazão à construção de outros imaginários que é algo de potência gigantesca no que tange à produção de mulheres negras. A gente está apresentando não só as nossas próprias vivências e escrevivências, para citar a Conceição (Evaristo). A gente apresenta outros olhares à arte, ao cotidiano, e isso traz sabores mais diversos à literatura brasileira, que só tem a ganhar com essas contribuições”, diz. Os universos descortinados, por sua vez, se tornam mais tangíveis a outros públicos que se aproximam, conquistando leitores.
(foto: Bazar do Tempo/Divulgação )
 
“Carolinas – a nova geração de escritoras negras brasileiras”
• Organização de Julio Ludemir
• Bazar do Tempo
• 548 páginas
• R$ 60 


Biografia 
A história da vida de Carolina de Jesus foi contada em biografia assinada pelo jornalista Tom Farias. Em trabalho de impressionante reconstituição histórica, Farias narra a trajetória da escritora.  O livro "Carolina: uma biografia" tem 402 páginas e foi lançado pela editora Malê em 2018.




Coletânea reflete
diversidade de vozes

“Carolina Maria de Jesus é um signo. Uma mulher preta insubmissa. Altaneira. Um caminho luminoso que se abriu na mata fechada. Uma clareira. Uma revolução”, escreve, na apresentação de Carolinas, a pesquisadora Fernanda Miranda.

Vencedora do Prêmio Capes de Tese 2020 na área de linguística e literatura com a tese “Corpo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006): posse da história e colonialidade nacional confrontada”, Fernanda analisou como parte do corpus o romance “Pedaços da fome”, de 1963, escrito por Carolina. Pesquisadora da obra da autora no mestrado, Fernanda destaca a coletânea “Carolinas” no movimento de pluralizar as vozes da literatura brasileira.

“É um livro histórico. Reúne a produção literária de muitas mulheres negras, quase 200 autoras. No cenário editorial brasileiro, é algo muito distante da realidade que a gente tem. É um livro que surge para romper esse silenciamento e dificuldade que autoras negras têm de se lançar, principalmente autoras que estão começando.”





A maioria delas se lança no universo da produção literária com o primeiro texto publicado em uma coletânea. “O livro re- presenta uma mudança de paradigma dentro do que a gente está acostumado a ver, do que o mercado editorial oferece para os leitores brasileiros”, avalia.

Ao mesmo tempo, a coletâ- nea cumpre a função de mostrar como Carolina Maria de Jesus é uma autora contemporânea. “A Carolina é o ponto de partida dos textos. A forma de mostrar que a autora é parte do cotidiano daquilo que constitui uma tradição de escrita. Ela promove o surgimento de outras autoras, possibilidade de romper com essa dificuldade de se lançar no mundo da escrita.”

Ela destaca que o título no plural (“Carolinas”) demonstra a diversidade de escritas, de mu- lheres de diferentes partes do Brasil, de todas as idades e formações, de catadoras de papel, como foi Carolina, a doutoranda, como é a escritora sete-lagoana Lara de Paula.  “Foi um processo profundo, longo, muito reflexivo de construção de texto e autoria. Algo que temos a celebrar. Espero que esse livro circule muito. Pode servir de estímulo para que ou- tras autoras possam superar essa barreira de publicação e se façam presentes e visíveis no nosso cenário literário.”





Fernanda Miranda, pesquisadora, fez a apresentação de 'Carolinas': a força das novas autoras negras (foto: Arquivo Pessoal)

Obra ganha nova edição

O livro “Pedaços da fome”, primeiro romance de Carolina, tinha o título original “A felizarda”. No entanto, a obra sofreu intervenção no processo de edição, assim como aconteceu com “Quarto de despejo”. “O romance passou por processo editorial violento, inclusive o próprio título foi modificado”, diz. A boa notícia é que em breve os textos de Carolina, sem edição, devem ser publicados. Fernanda destaca que os direitos da obra de Carolina foram adquiridos pela Companhia das Letras, que deve publicar, em breve, “Casa de alvenaria”.

Carolina escreveu muito e em gêneros variados, manuscritos que estão em Sacramento. As edições de Audálio Dantas ao texto de Carolina levantam debate. “O Audálio editou os dois primeiros, ‘Quarto de despejo’ e ‘Casa em alvenaria’, esses dois livros editados por Carolina. Tem um lado positivo. De fato, sendo ele homem letrado, com amplo acesso aos meios de comunicação da época, ele tinha os caminhos de acesso para que Carolina tivesse possibilidade de existir no mundo público. De fato, teve participação importante no processo dela de publicação e visibilidade".

Fernanda aponta o lado ne- gativo: “A maneira como Audálio tratou o texto, a intervenção editorial dele é algo que não se pode deixar de mencionar. Ele realmente fez papel diferente do que se espera de um editor, de alguém que deve ficar transpa- rente no texto. Ele se fez notar, se fez aparecer e modificou ques- tões importantes da obra.”





Mas a produção literária de Carolina não se restringe aos textos editados por Audálio. "Tudo de Carolina que foi publicado até agora teve modificação. O jorna- lista não foi o único a fazer isso. Temos que ser justos. Todas as outras obras, quando olhamos os manuscritos, têm diferenças”, ressalta.

A pesquisadora destaca que mais importante que julgar Audálio é buscar o texto original de Carolina. Os diários são os textos que ficaram mais conhecidos, mas ela tem uma publicação bastante variada, inclusive com obras com várias reedições e traduções para outras línguas. “Carolina tem uma escrita poética, uma escrita de romance. Gostava muito de provérbios, até criava alguns. Os textos são muito variados e diversificados.”  

O consenso é que Carolina Maria de Jesus representa um ponto de inflexão na literatura brasileira. “Ela é uma curva na história literária brasileira, uma história sempre construída por um tipo específico de autor, que está num ciclo certo da elite. Ca- rolina traz outra experiência de vida, de linguagem, de estética e escrita. A gente consegue acessar outro universo de representação e literariedade”, completa a pesquisadora.

A pesquisadora também des- taca a riqueza da escrita de Carolina e defende que haja uma descolonização do olhar em relação à obra. “Ela manuseia uma série de figuras de linguagem para elaborar um texto que em si é diverso. Em geral, as pessoas costumam ver como um texto homogêneo que fala da fome e da miséria, que traz o olhar de uma favelada. Recortes já fixos. A gente precisa descolonizar esse olhar para perceber a potencialidade que Carolina tem. O tanto de diversidade dela.” Mas não restam dúvidas de que Carolina é uma das autoras mais importantes da nossa história literária.




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