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Estado de Minas ROMANCE

'Crônica da casa assassinada' ganha nova edição

Romance intrigante de Lúcio Cardoso volta às livrarias com prefácio de Chico Felitti e a crônica que Clarice Lispector escreveu após a morte do escritor mineiro


21/05/2021 04:00 - atualizado 21/05/2021 09:26

Lúcio Cardoso, mineiro de Curvelo, anotou em seu diário:
Lúcio Cardoso, mineiro de Curvelo, anotou em seu diário: "Não há pior sofrimento do que permanecer à margem" (foto: Ruy Santos/Divulgação)
Quando foi publicado, em 1959, “Crônica da casa assassinada” despertou as mais variadas opiniões: desprezo, desconfiança, paixão e admiração. Sempre considerada como a obra-prima do seu autor – Lúcio Cardoso –, este romance ainda intriga e impacta quem o lê, causando mesmo um mal-estar positivo no leitor e sempre provocando uma (re) avaliação das conquistas do nosso modernismo literário, seus avanços e retrocessos. 

Nesse sentido, Lúcio Cardoso (1912-1968) é daqueles autores de difícil classificação: cronologicamente modernista, sua obra alcançou expressões deste e de outros estilos, dialogando com tendências românticas, realistas e simbolistas em diversos momentos. Na verdade, Lúcio excede as fronteiras das definições lineares e simplistas, tão comuns nos nossos manuais de ensino de literatura, em geral pautados pela lógica da cronologia

Entre os tantos escritores que admiraram e/ou desprezaram o mineiro de Curvelo, Mário de Andrade foi, certamente, aquele que mais “sofreu” para construir uma opinião honesta sobre o autor da “Crônica”. Escrevendo a Fernando Sabino, em 2/2/1944, assim Mário afirmou: “O caso do Lúcio Cardoso tem sido uma das tragédias do, não sei si diga do meu pensamento, ou si duma opinião apenas mais indecisa, mas na certa uma das tragédias do meu pensamentear”.

Tal afirmação ilustra bem o entre-lugar de Lúcio no contexto literário da época, deixando claro o não consenso crítico em relação à sua obra. Todavia, o mesmo Mário de Andrade, tendo falecido em 1945, não conseguiu ler a “Crônica da casa assassinada”, que penso, certamente, teria transformado a sua opinião acerca do autor de Curvelo.

Dimensão epistolar  

Neste sentido, este romance é uma experiência totalmente híbrida no que concerne às fronteiras e presenças do próprio gênero narrativo, no qual temos grafias de cartas, diário, memórias, (auto)biografia etc., tudo hibridizado na economia do seu enredo. Ou seja, trata-se de uma narrativa assaz polifônica não apenas no que concerne às vozes que nela atravessam, mas também o é na sua estrutura, na (des)organização dos gêneros que a compõem, fator este que contribui para a sua riqueza expressiva. Entretanto, um aspecto desta obra deve ser sempre lembrado e ressaltado: a sua dimensão epistolar. 

De fato, creio que cada capítulo é uma carta enviada a um destinatário múltiplo e sempre renovado. Na “Crônica”, os capítulos (cartas) expõem não apenas o universo íntimo de cada personagem e os seus sentimentos mais recônditos, mas também as motivações e porquês das suas atitudes e opções. Podemos pensar numa espécie de narrativa dentro da narrativa, isto é, o texto epistolar se funde ao todo do romance provocando esta simbiose que se interliga em sentidos e sintomas, explicando e problematizando determinadas situações da história romanesca e suas intrigas. 

Podemos dizer que a “Crônica” é um “romance para dentro” dos personagens e dos seus dramas existenciais. Todos vivem trancados dentro da Chácara dos Meneses, lugar de convivência problemática e sempre tensa, onde o tradicionalismo é putrefato e necrosa as relações e afetos, dando a certeza de que a tragicidade é o fim mesmo de cada um.

Desejos e taras

Lembro aqui de uma das afirmações mais contundentes do diário pessoal de Lúcio Cardoso: “Não há pior sofrimento do que permanecer à margem”. É essa a sensação que se tem ao tornarmo-nos cúmplices, via leitura, das inquietações ontológicas de cada morador da fatídica chácara da família Meneses: ninguém está no centro, mas todos orbitam à margem de si próprios e dos seus horrores pessoais, dos seus desejos e taras sexuais mal resolvidos, da tradição amargamente herdada dos antepassados, do silêncio emudecedor que se faz presente à força.

Só me lembro aqui da mudez imposta a Timóteo, a quem o narrador descreve como “um rebotalho humano, decrépito e enxundioso, que mal conseguia se mover e que já atingira esse grau extremo em que as semelhanças animais se sobrepõem às humanas”. Só essa caracterização já antecipa muito do que o leitor encontrará ao abrir este livro. 

Há muito que não se publicava a “Crônica da casa assassinada”, hiato este preenchido e resolvido nesta edição da Companhia das Letras. Trata-se de um belo trabalho de resgate e divulgação da obra máxima de Lúcio Cardoso, que nos chega enriquecida de um prefácio, assinado por Chico Felliti, no qual temos uma excelente hermenêutica deste romance: “A narrativa de ‘Crônica da casa assassinada’ é um exercício de claustrofobia literária”; penso que seja isso mesmo. Mas essa edição também traz a inesquecível crônica de Clarice Lispector, cuja paixão juvenil por Lúcio é sempre lembrada quando se fala de ambos.

Finalmente, completa este volume a nota biográfica escrita por Ésio Macedo Ribeiro, sem dúvidas, a maior autoridade que temos em assuntos cardosianos. Neste texto, sabemos que a “família Meneses realmente existiu, e que tinha uma chácara próxima da cidade de Cataguases, Minas Gerais”. Um fato realmente interessante, pois sempre houve dissenso em relação à veracidade ou não deste fato. 

Enfim, Lúcio Cardoso nos convida novamente à leitura de sua “Crônica”. Um exercício complicado e difícil que nos tira do nosso chão seguro, que nos interpela e causa uma certa sensação de náusea, que nos desorganiza e, em certos leitores, pode provocar um vômito positivo – metáfora do que a literatura pode despertar e (re)construir.

*Leandro Garcia é professor da Faculdade de Letras da UFMG e organizador do livro “Lúcio Cardoso – 50 anos depois” (Relicário)

Trecho

“Dirão que isto talvez não passasse de impressão exagerada, mas a verdade é que de há muito eu pressentia um mal qualquer devorando os alicerces da Chácara. Aquele reduto, que desde a minha infância – há quanto tempo, quando a estrada principal ainda se apertava entre ricos vinháticos e pés de aroeira, tortuosa, cheia de brejos e de ciladas, um prêmio quase para quem se aventurasse tão longe... – eu aprendera a respeitar e admirar como um monumento de tenacidade, agora surgia vulnerável aos meus olhos, frágil ante a destruição próxima, como um corpo gangrenado que se abre ao fluxo dos próprios venenos que traz no sangue. (Ah, esta imagem de gangrena, quantas vezes teria de voltar a ela – não agora, mais tarde – a fim de explicar o que eu sentia, e o drama que se desenrolava em torno de mim.

Gangrena, carne desfeita, arroxeada e sem serventia, por onde o sangue já não circula, e a força se esvai, delatando a pobreza do tecido e essa eloquente miséria da carne humana. Veias em fúria, escravizadas à alucinação de um outro ser oculto e monstruoso que habita a composição final da nossa trama, famélico e desregrado, erguendo ao longo do terreno vencido os esteios escarlates de sua vitória mortal e purulenta.)” 

De novo no cinema

Escrito por um mineiro, "Crônica da casa assassinada" chegará novamente ao cinema em adaptação dirigida por outro mineiro. José Luiz Villamarim, diretor de séries como "Onde nascem os fortes" e da novela "Amor de mãe", encomendou um roteiro de longa-metragem ao parceiro George Moura, com quem trabalhou em "Redemoinho", adaptado do livro de Luiz Ruffato. "Nunca tinha lido Cardoso e já mergulhei no seu romance mais complexo por ossos do ofício. Entrei de cabeça na história de Nina e Ana e no declínio da família Meneses", contou o roteirista.

Moura descreve a leitura do livro de Lúcio Cardoso como "uma vertigem": "É uma floresta densa repleta de reviravoltas movidas a desejos vividos e outros tantos reprimidos: é alta literatura, com uma minúcia barroca de tirar o fôlego, perturbador." A primeira adaptação do livro foi dirigida por Paulo César Saraceni em 1971 e, com o título "A casa assassinada", recebeu o Candango de Melhor Longa-Metragem do Festival de Brasília no mesmo ano.


“Crônica da casa assassinada”
De Lúcio Cardoso
Companhia das Letras
560 páginas
R$ 84,90
E-book: R$ 39,90

“Lúcio me transformou em mineira”

Clarice Lispector*

“Lúcio, estou com saudade de você, corcel de fogo que você era, sem limite para o seu galope (...). De sua doença restaria também o sorriso: esse homem que sorria para aquilo que o matava. Foi homem de se arriscar e de pagar o alto preço do jogo (...). Entrei no quarto e vi o Cristo morto. Seu rosto estava esverdeado como um personagem de El Greco. Havia a beleza em seus traços.

Antes, mudo, ele pelo menos me ouvia. E agora não ouviria nem que eu gritasse que ele fora a pessoa mais importante da minha vida durante a minha adolescência. Naquela época, ele me ensinava como se conhecem as pessoas atrás das máscaras, ensinava o me- lhor modo de olhar a lua. Foi Lúcio quem me transformou em ‘mineira’: ganhei diploma e conheço os maneirismos que amo nos mineiros.

Não fui ao velório, nem ao enterro, nem à missa porque havia dentro de mim silêncio demais. Naqueles dias eu estava só, não podia ver gente: eu vira a morte.”

Trechos de crônica de Clarice Lispector publicada no Jornal do Brasil em 11 de janeiro de 1969, quatro meses depois da morte de Lúcio Cardoso. A íntegra foi incluída na nova edição de “Crônica da casa assassinada”  


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