Jornal Estado de Minas

ROMANCE

Primeira mulher a ganhar Nobel de Literatura é publicada no Brasil

Parece um pormenor que requer menos atenção, mas o fato é que o título “A saga de Gösta Berling”, que a escritora sueca Selma Lagerlöf escolheu para o romance de estreia, não parece o mais adequado. Embora comece concentrado na personagem de um pastor que é destituído do cargo por conta do alcoolismo, a narrativa logo se expande para alcançar todo um grupo de pessoas e joga o foco em muitas questões distintas, num tom fabular que é interessante e que despertou atenção da crítica (longe de unânime, aliás, houve reclamações), no lançamento do romance, em 1891, quando a autora contava 33 anos. 





Em última análise, sedimentou o caminho que daria mais tarde o Nobel de Literatura para a escritora, em 1909, o primeiro concedido a uma mulher, o primeiro para escritor da Suécia. Mais tarde, em 1914, a autora foi ainda a primeira mulher a fazer parte da Academia Sueca, a mesma que concede o prêmio anualmente – outros sete suecos, aliás, já abocanharam o Nobel desde então, o que deixa claro que, perdido o pudor inicial que parece ter contido o comitê durante uns poucos anos iniciais, a brasa da sardinha brilha com intensidade para aqueles lados.  

A região onde nasceu Selma Lagerlöf, no condado de Värmland (situado a leste da capital, mais ou menos no centro inferior do mapa do país), está no cerne do romance, que aliás parece ser inteiro composto de contos relativamente interligados, com personagens que resvalam para lendas locais: duendes, bruxas, gigantes, ninfas, e atenção especial é dedicada à natureza, ela mesma uma das personagens, em que pese o número grande de fundições que movimentam também a economia local e que conferem espécie de contraponto pé no chão à prosa de Lagerlöf. Aliás, esse contraste de lendas e relatos populares com o realismo naturalista então em voga também na Suécia foi outro ponto que chamou a atenção de público e crítica.


Bem balanceado


Parte da sagacidade da autora é a mistura em medidas equilibradas entre tragédias e um tom esperançoso e otimista. “O ano se arrastava em uma pesada melancolia”, ela escreve. Logo em seguida, todavia: “Mas à noite todos os espíritos desfaziam-se dos grilhões, libertados pela aguardente. Os impulsos afloravam, o coração se acalentava, a vida tornava-se radiante, a música soava, as rosas emanavam perfume”. 

Transformado em mendigo, Gösta Berling parece realmente ter alcançado o fundo do poço. Nada o constrange mais, nem roubar criança de sua farinha para trocar por bebida. Entretanto, é salvo pela senhora de Ekeby, Margareta Celsing. Então, pausa para contar parte da história dela, como deixou de ser a bela jovem de outrora para se transformar na mulher mais poderosa da província de Värmland depois de ser submetida a um casamento arranjado.



A potencial redenção de Gösta Berling, alçado a nova condição, de cavalheiro (misto de membro de távola redonda e apóstolo), é na verdade motivo para novas rotações da narrativa, uma vez que o grupo é de gente folgada, pouco disposta ao trabalho. Acresce que Berling é dotado de beleza física, o que vai causar a perdição de muita jovem das redondezas (e mais uma sucessão de capítulos para as atribulações amorosas da personagem). 

O limbo entre ações heroicas e privilégios de classe joga luzes e matizes sobre questões morais que interessam particularmente à autora discutir. Um dos personagens que deseja entrar como membro do grupo de cavalheiros, por exemplo, Sintram, é patrão da fundição de Fors e pactuado claramente com o Diabo. É a chegada de Sintram que permite iniciar negociação com o grupo, na qual a senhora de Ekeby, agora vista como bruxa, terá que ser banida, para que uma nova ordem de poder se estabeleça.

Em troca, os cavalheiros ficam com sete fundições durante um ano e precisam agir de acordo com regras estabelecidas para a classe. No fim do período, verão se podem permanecer com as fundições ou se o Diabo vai recolher doze almas. Ou seja, aquela que salva Berling da amargura é enviada por ele para um período de sofrimento. Ninguém é exclusivamente bom ou mau, sobretudo há muito tom cinzento no caminho.




Diferenças


A ordem do trabalho, de um lado, as obrigações morais e, de outro, a força de uma comunidade, junto da alegria das festas, os destemperos do amor e uma felicidade natural reforçada por laços de solidariedade são os ingredientes com que Selma Lagerlöf constrói o romance caudaloso, a certa altura mesmo interminável, dado o andamento lento com que é construído.

Aliás, a metáfora de romance-rio (roman fleuve, como normalmente se usa, em francês, para definir obras gigantes como a de Proust, por exemplo) é retomada por Marguerite Yourcenar no ensaio incluído ao final da bela edição que o livro recebeu em português. Mas a escritora francesa atualiza a metáfora para nomeá-la epopeia-rio, “procedente das próprias fontes do mito”. Há uma aposta na mistura entre a corrente pagã e a corrente cristã, com valores em conflito e uma inteligente ausência de tomada de partido por parte da narrativa. Os modelos mais evidentes de Selma: Homero, claro, e o escocês Thomas Carlyle. 

É possível assinalar numa leitura mais cuidadosa a interface dos mitos, recuperados por Selma Lagerlöf, com outras mitologias. Assim, o personagem Kevenhüller, filho de um conde, forma-se mestre relojoeiro, mas interage de maneira simpática com uma ninfa da floresta, alertando-a para não deixar a cauda exposta, e recebe em troca da gentileza um dom, a habilidade de fazer com as mãos qualquer obra que desejar, “mas apenas uma de cada tipo”. O presente é ao mesmo tempo recompensa e maldição. 





Kevenhüller fabrica um carro que anda sozinho sem necessidade de cavalos (as narrativas se passam na década de 20 do século 19), uma torre bem alta que lembra simultaneamente Babel e o labirinto do Minotauro, asas para voar, um sol portátil, a última e mais potente das criações. Claro, a cada invento segue-se uma decepção resultante do mau emprego que o inventor faz do portento (para usar a expressão empregada na narrativa), a ponto de Kevenhüller solicitar por fim à ninfa para que lhe retire o gênio criativo. “Deixa-me ser um homem comum!”, implora. E depois de lhe retirar o dom, a ninfa esclarece que pretendia apenas poupá-lo do trabalho manual, nada o impedia de “fazer com que outros reproduzissem as tuas criações”. Parece Sísifo, lembra Cassandra, tem muito de Midas, pitadas de Dédalo. 

É com essa receita ampla que Selma Lagerlöf constrói cuidadosamente as múltiplas tramas do romance, apresentando trechos da vida de personagens que mais tarde sofrem desenvolvimentos devidos, um pouco como se acompanhasse fragmentos de diferentes etapas de uma mesma existência. Não de forma gratuita, ela termina o texto com potente metáfora que oscila entre a grandiosidade da fantasia e a pequenez da realidade, esse contraste que sempre foi importante em todas as épocas. 

* Paulo Paniago é professor de jornalismo da Universidade de Brasília e autor de “Outra viagem: Machado de Assis e a revolução da literatura brasileira” (Patuá)
 

Trecho

Se as coisas mortas também amam, se a terra e a água distinguem os amigos dos inimigos, eu bem gostaria de conquistar este amor. Gostaria que a terra verdejante não sentisse meus passos com o peso de um fardo. Gostaria que perdoasse que, por minha causa, tem de ser ferida com arados e grades, e que de bom grado se abrisse para receber meu corpo morto. E eu gostaria que a onda, cujo espelho reluzente meus remos partem, tivesse comigo a mesma paciência que uma mãe tem com a criança cheia de entusiasmo que lhe sobe ao colo sem atentar para a seda lisa do vestido de gala.



Com o ar puro, que ondula sobre as montanhas azuis, eu gostaria de travar amizade, e também com o sol reluzente e as belas estrelas. Pois a mim com frequência parece que as coisas mortas sentem e sofrem como as vivas. Não há, entre elas e nós, uma diferença tão grande quanto em geral se pensa. Que tipo de matéria terrestre não participa do ciclo da vida? Acaso o pó que se ergue da estrada não foi acariciado como cabelos macios ou amado como mãos boas e benfazejas? Acaso a água no sulco deixado pelas rodas dos veículos não correu antes como sangue por um coração palpitante

“A saga de Gösta Berling”
.Selma Lagerlöf
.Posfácio de Marguerite Yourcenar
.Tradução de Guilherme da Silva Braga 
.Carambaia 
.416 páginas
.R$ 129,90
.E-book: R$ 89,90 

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