À exceção do primeiro capítulo, a história transcorre no decorrer de um único dia. A alternância de focos narrativos e perspectivas estabelecida por Lowry é uma das melhores coisas do romance
“Era um caminho terrível, horrendo, até o fundo”, lemos já perto do final de “Debaixo do vulcão”. “Mas lhe ocorreu que também não tinha medo de cair.” A queda de Geoffrey Firmin, o cônsul britânico e veterano da Primeira Guerra Mundial que erra, bêbado, pelo interior mexicano no Dia dos Mortos de 1938, é aludida e antecipada desde o primeiro capítulo, situado um ano depois do que é narrado no restante do livro. A obra-prima do inglês Malcolm Lowry (1909-1957) retorna às livrarias brasileiras em nova e excelente tradução de José Rubens Siqueira, e seu teor apocalíptico tem a mesma força agora, neste tenebroso início de século 21, quanto em 1947, ao ser lançada em meio aos escombros da Segunda Guerra, ou em 1938, às vésperas do mesmo conflito. Salvo engano, essa perenidade é uma das coisas que caracterizam um clássico e que levou o cineasta John Huston a filmar, em 1984, uma adaptação com Albert Finney e Jacqueline Bisset e lançada nos cinemas com o mesmo título da edição anterior no Brasil, “À sombra do vulcão”, da Editora Siciliano.
A origem da obra não foi uma erupção criativa, mas algo paulatino. Consta que, em 1936, Lowry escreveu um conto com o mesmo título que daria ao romance, “Under the volcano”. A história diz respeito a um personagem identificado apenas como Cônsul, que viaja com a filha, Yvonne, e o noivo desta, Hugh, para Chapultepec, no México. Indo de ônibus para uma fiesta, os três personagens se deparam com um índio assassinado à beira da estrada. Por uma série de razões, o Cônsul, mesmo embriagado, nota que um dos passageiros, também bêbado, teria furtado os pertences do morto. Ao chegar a Chapultepec, Hugh e o Cônsul observam como esse sujeito, com um sorriso triunfante no rosto, adentra um boteco. Há alguns detalhes importantes nessa história, em especial o fato de que o índio, por conta de uma estúpida lei local, teria morrido sem receber ajuda (sendo, em vez disso, roubado), e que há uma certa cumplicidade (para dizer pouco) entre o Cônsul e o ladrão, ali referido pela gíria pelado.
Claro que, ao transformar esse conto no romance, Lowry fez inúmeras alterações, amplificando o estranhamento da desventura, mas mantendo parte do núcleo da narrativa curta: no capítulo 8 de “Debaixo do vulcão”, temos a viagem de ônibus, o índio moribundo e uma discussão sobre o termo “pelado”; para Hugh, ele se refere a um “iletrado descalço”, mas, segundo o Cônsul, “esse era apenas um dos sentidos”, pois os “pelados eram de fato ‘pelados’, os sem pele, mas também aqueles que não precisavam ser ricos para explorar os realmente pobres”. Hugh, então, compreende a ambiguidade da palavra — um “espanhol a interpretaria como índio”, e o índio “podia querer dizer espanhol”, sendo “intercambiáveis” os “termos ofensivos com que o agressor desacredita aqueles a serem explorados”. Em suma, “uma dessas palavras destiladas efetivamente da conquista”. Eis um exemplo da forma como Lowry desmonta quaisquer maniqueísmos com uma ironia sem igual: “pelado” é sempre o outro, e o explorado de hoje é o explorador de amanhã.
As relações entre os personagens também são alteradas em relação ao conto. No romance, Yvonne, uma ex-atriz que sofreu uma grande perda, é a esposa de Cônsul. Tempos depois de abandoná-lo em Quauhnahuac (recriação de Cuernavaca, onde Lowry viveu alguns anos), alienada pelo alcoolismo do marido, ela retorna com a intenção de salvar o casamento. Também está ali o meio-irmão de Cônsul, Hugh, músico, marinheiro e jornalista envolvido com os republicanos na Guerra Civil Espanhola (atentem às menções à Batalha do Ebro, sobretudo nos capítulos 4, 6 e 7). A estada de Hugh no México será breve; ele está ali para investigar as atividades de alguns fascistas e antissemitas para o jornal Daily Globe. Logo, também, fica claro que ele e Yvonne tiveram um caso, e que o Cônsul sabe disso.
A eternidade em um dia
Conforme mencionado há pouco, à exceção do primeiro capítulo, a história transcorre no decorrer de um único dia. A alternância de focos narrativos e perspectivas estabelecida por Lowry é uma das melhores coisas do romance, e não custa traçá-la para o leitor: no primeiro capítulo, temos Jacques Laruelle, um cineasta francês residente em (mas prestes a ir embora de) Quauhnahuac, evocando os acontecimentos do ano anterior e muitas outras coisas (o trecho em que são rememoradas as férias que passou com os Firmin, em 1911, é o primeiro grande momento do livro); nos capítulos 2, 9 e 11, predomina a perspectiva de Yvonne (no 9, situado em uma arena, ela rememora parte de sua vida, alucina com outras e imagina um futuro impossível com o marido, enquanto, na arena, o “México não ria de sua história trágica; o México estava entediado. O touro estava entediado. Todo mundo estava entediado, talvez tenha estado o tempo todo”); o oitavo apresenta o trio na citada viagem de ônibus; e, por fim, o ébrio Cônsul sequestra a narrativa nos capítulos 3, 5 (a pior ressaca da história da literatura), 7, 10 e 12. Creio que seja importante traçar esse esquema porque a prosa de Lowry, embora sempre esplêndida, nem sempre é “fácil”, e os leitores de primeira viagem podem se confundir.
O vulcão do título, Popocatépetl, e a montanha vizinha, Iztaccíhuatl, também são personagens importantes. É debaixo do primeiro que se dá o desfecho do livro, e à sombra dos dois que, a certa altura, tendo se desencontrado de Cônsul, Hugh e Yvonne se veem diante de uma encruzilhada: “Agora, sabia onde estava, mas as duas alternativas, os dois caminhos se abriam diante dela de ambos os lados, como os braços — ocorreu-lhe o pensamento perturbador — de um homem crucificado”. A rigor, os personagens são desencontrados desde o começo, talvez desde sempre. A questão que o trecho ressalta (e antecipa) é o caráter trágico da materialização desse desencontro. Geoffrey, o Cônsul, está mais sozinho do que nunca.
Por fim, não há espaço, aqui, para assinalar todas as referências literárias que permeiam o romance, que vão desde o “Doutor Fausto” de Marlowe até “As flores do mal”, de Baudelaire, passando por Shakespeare e Dante, entre muitos outros. Convém ressaltar, contudo, o caráter autobiográfico (mas não “autoficcional”, Deus nos livre disso) do protagonista, inclusive no que diz respeito ao nomadismo e à doença que o acomete. A vida e o trabalho de Lowry foram abreviados, talvez, pelo mesmo “colapso subterrâneo” que devasta Firmin, mas, à diferença do malfadado Cônsul, o escritor britânico conseguiu imprimir no mundo uma estupenda recriação literária dessa descida.
*Nascido em Goiânia, em 1980, o escritor André de Leones é autor dos romances “Abaixo do paraíso” (2016), “Eufrates” (2018), entre outros.
Trecho
“O Popocatépetl se erguia pela janela, os flancos imensos em parte escondidos por rolos de nuvens de tempestade; o pico bloqueando o céu, aparecia quase exatamente acima, a barranca, o Farolito, direto abaixo dele. Debaixo do vulcão! Não era à toa que os antigos haviam posto o Tártaro debaixo do monte Etna, e dentro dele o monstro Tufão com suas cem cabeças, olhos e vozes relativamente assustadores.
O Cônsul virou-se e foi com seu drinque pela porta aberta. Uma agonia de mercurocromo no poente. Ele olhou Parián. Lá, além do trecho da grama, estava a praça inevitável com seu pequeno jardim público. À esquerda, à margem da barranca, um soldado dormia debaixo de uma árvore. (...) Em algum outro lado, à esquerda, espalhavam-se cabanas de palha escura, que se fundiam com a selva que cercava a cidade de todos os lados, e brilhava agora com a luz antinatural da tempestade que se aproximava.”
Sobre o livro
“A partir da confluência de dois mundos, Malcolm Lowry confere não só um poderoso sentido histórico ao romance como sonda a subjetividade de um dos personagens mais complexos e fascinantes da ficção do século 20 (...). A maior riqueza deste romance reside na linguagem. No monólogo interior do cônsul, com seu ritmo melódico e encantatório, não faltam humor, autoironia e uma vasta erudição, com referências à pintura, ao cinema, à literatura, à história, aos textos sagrados e à mística oriental.”
Milton Hatoum, na orelha da nova edição de “Debaixo do vulcão”
“Debaixo do vulcão”
De Malcolm Lowry
Tradução de José Rubens Siqueira
Alfaguara
388 páginas
R$ 89,90
E-book: R$ 44,90