“– Senhora – gemeu Kharlov e bateu no próprio peito – Não posso tolerar a ingratidão das minhas filhas. Não posso, senhora! Dei-lhes de tudo, tudo mesmo! Além disso, minha consciência me torturou. Muito... oh! Muito pensei e refleti sentado à represa pescando. Tomara que você tenha sido útil na vida de alguém, assim pensei. Ajudava os pobres, libertei camponeses, talvez por lhes ter arrancado a vida! De fato, você deve responder por eles perante Deus! Eis quando há de pagar pelas lágrimas deles! E agora, qual é o destino deles: no meu tempo, era um poço profundo, é preciso confessar, mas agora nem o fundo se vê! Carrego todos esses pecados na alma, sacrifiquei minha consciência pelas minhas filhas e o que ganhei com isso foi uma figa! Chutaram-me como um cão!”
O desabafo é do velho proprietário de terras Martin Petróvich Kharlov, protaganista de “O rei Lear da estepe”, romance de 1870 de Ivan Turguêniev (1818-1883), que acaba de ganhar tradução de Jéssica Farjado direto do russo pela Editora 34. “O rei Lear”, a tragédia clássica de William Shakespeare (1564-1616), de 1605-06, inspirou a pena de Turguêniev, um dos três principais autores russos da segunda metade do século 19, ao lado de Tolstói e Dostoiévski, e mais conhecido no Brasil por “Pais e filhos”. Sua vasta obra inclui poesia, teatro, contos e romances. De família aristocrática, ele dedicou grande parte de sua vida e seu trabalho à aproximação da cultura russa com a europeia, para muito além das estepes, como o czar Pedro, o Grande (1672-1725), à sua maneira imperial, havia feito quase dois séculos antes, ao fundar São Petersburgo em 1703 e abrir a Rússia para o Ocidente.
Na versão russa da obra do bardo inglês, o rei Lear é Kharlov. Depois de um sonho ruim e temendo a proximidade da morte, Kharlov, já manifestando sinais de loucura, chama suas duas filhas, Anna e Evilâmpia, para dividir sua propriedade entre elas. Confiante na gratidão de ambas, ele pede que elas lhe deem apenas o necessário para a sobrevivência até o fim dos seus dias. Mas o comportamento das duas mulheres vai decepcionar o velho e levar a consequências irremediáveis.
Aqui, em vez da corte inglesa, o ambiente é uma pequena propriedade rural povoada por senhores, agregados, servos e camponeses pobres, cenário construído com base na própria experiência de juventude de Turguêniev. Por ser uma novela e não uma peça como a de Shakespeare, “O rei Lear da estepe”, obviamente, tem melhor caracterização de personagens, que dão à obra uma vida bem original. Grande admirador de Shakespeare, cujas obras tinham forte influência na cultura russa, Turguêniev faz interessante reconstrução da Rússia rural ainda mergulhada no servilismo de fins do século 19.
Diferentemente do frágil Lear, Kharlov é um personagem singularíssimo e cativante, pela sua grande compleição física e rompantes. Assim o descreve o narrador: “Imaginem um homem de estatura gigantesca. No tronco enorme assentava-se um pouco de soslaio e sem qualquer sinal de pescoço, uma monstruosa cabeça; sobre ela se elevava uma grande cabeleira louro—grisalha e desgrenhada, despontando junto das sobrancelhas arqueadas (…) Do seu rosto sobressaía um nariz colossal cheio de calombos, uns olhinhos azuis minúsculos altivamente eriçados, e se descerrava uma boca também minúscula, mas torta e gretada. Dessa boca saía uma voz, ainda que roufenha, extremamente forte e retumbante. E Kharlov falava como se gritasse ao vento forte”.
A grande questão reflexiva ou o grande dilema existencial tanto na obra de Shakespeare como na de Turguêniev, como define a tradutora Jéssica Farjado, é o “paradoxo da predestinação” de Lear e Kharlov. Em busca de um fim de vida sem grandes atribulações e sob a gratidão e a proteção das filhas, eles abdicam de sua soberania senhorial. “Vão ao encontro de seu destino ao tentar modificá-lo, pois acreditam que a morte se aproxima e por isso devem abdicar da maior parte de seus bens e poder. No entanto, morrem justamente em consequência dessa decisão”. O que poderia teria ocorrido, então, com Lear e Kharlov se não tivessem abdicado?
O alto preço
da sinceridade
A tragédia teatral “O rei Lear”, que inspirou Ivan Turguêniev, foi escrita em 1605-1606 por William Shakespeare (1564-1616), durante confinamento para escapar da peste negra. Trata-se da sina do rei da Bretanha, herói caído por erro de julgamento, em consequência de seus atos, e não por predestinação ou interferência divina. Ao chegar aos 80 anos e já apresentando sinais de senilidade, o rei convoca a três filhas – Goneril, Regana e Cordélia – para repartir seu reino entre elas. “É nossa firme decisão diminuir o peso dos anos, livrando-nos de todos os encargos, negócios e tarefas, confiando-os a forças mais jovens, enquanto nós, liberados do fardo, caminharemos mais leves em direção à morte”, diz o rei Lear às filhas – na tradução brasileira de Millôr Fernandes. Na conversa, entretanto, Lear pede que as três manifestem seu amor por ele: “Digam-me minhas filhas – já que pretendo abdicar de toda a autoridade, posses de terras e função do Estado – qual das três poderei afirmar que me tem mais amor, para que minha maior recompensa recaia onde se encontra o mérito natural?”.
Goneril, a primogênita, e Regana, ambas casadas com os condes de Cornualha e Albânia, respectivamente, declaram amor e bajulam o pai. “Eu o amo acima de todos os valores”, diz a primeira. “Só me sinto feliz em idolatrar vossa amada alteza”, afirma a segunda filha. Mas Cordélia, a caçula, solteira, não adula o pai e fala com sinceridade: “Creio que, ao me casar, o homem cuja mão minha receber deverá levar também metade do meu amor, dos meus deveres e cuidados. Jamais me casarei como minhas irmãs, para continuar a amar meu pai, unicamente”.
A resposta sincera de Cordélia deixa o rei arrasado. Com sua loucura e egolatria, Lear se indigna. “Pois se assim é, assim seja: tua verdade será então teu dote. Pelo sagrado resplendor do sol, pelos mistérios de Hécata, deusa do céu e do inferno, pelo negror da noite, por todos os giros das esferas celestes por cujos eflúvios passamos a existir ou deixamos de ser, renego aqui todas as minhas obrigações de pai, parentesco e afinidade de sangue, e, de hoje em diante, e para todo o sempre, te considero estranha a meu coração e a mim mesmo. Ao bárbaro Cita, e ao Canibal que transforma os filhos em alimento para satisfazer o apetite, darei em meu peito acolhida, piedade e proteção igual a ti, que não és mais minha filha”, sentencia o rei.
Lear, então, deserda Cordélia e a expulsa da corte, dividindo o reino entre as outras duas filhas, mas acaba causando uma guerra de intrigas e traições e ele mesmo acaba expulso da sua corte por Goneril e Regana. A disputa entre as irmãs e seus condes e os demais vassalos do rei, que alterna lucidez e delírio, e serviçais terá consequências trágicas para todos, mesmo depois que Lear, num momento de sanidade, reconhece seu erro de deixar se enganar pela bajulação de duas filhas e ignorar o amor sincero daquela que o amava realmente e não pretendia traí-lo. Mas já é tarde demais e a morte já bate à sua porta.
Para encher
os olhos
O cineasta japonês Akira Kurosawa (1910-1998) também fez sua versão de “O rei Lear” com um dos mais belos filmes da história do cinema. Autor das obras-primas “Dersu Uzala”, “Os sete samurais” e “Sonhos”, em 1985, ele lançou “Ran”. Em vez das três filhas da obra de Shakespeare, são três homens. Hidetora Ichimonji (em grande interpretação de Tatsuya Nakadai), o chefe do clã dos Ichimonjis, no ocaso da vida, anuncia que vai abdicar e dividir suas terras entre seus três filhos, Taro, Jiro e Saburo. A cada um caberá um castelo e ele, Hidetora, ficará apenas com 30 soldados e morando alternadamente com cada filho.
Como as filhas em Shakespeare, Taro e Jiro bajulam o pai, mas Saburo considera loucura a atitude e pede que ele desista, é mal interpretado e, por isso, deserdado. O desfecho da narrativa é o caos (ran, que significa revolta e desordem). A disputa fratricida acaba de enlouquecer o velho senhor feudal e corrói as relações dos três irmãos beligerantes e igualmente ensandecidos. E o desfecho é a guerra.
Esteticamente, “Ran” é monumental, não por acaso conquistou o Oscar de melhor figurino. As batalhas épicas entre os três irmãos representadas pelas cores amarela (exército de Taro), vermelha (Jiro) e azul (Saburo), em grandes planos cinematográficos, com suas três tropas em uníssono se enfrentando em torno do pai, que veste branco, confluência de todas as cores, são maravilhosamente coreografadas como um balé gigantesco de encher os olhos. Poucos são os filmes comparáveis ao tamanho feito de Akira Kurosawa.
A bela trilha sonora de Toru Takemitsu dá clima à loucura coletiva. O ator Tatsuya Nakadai faz um Hidetora teatral e quase estático, que desperta medo e compaixão do espectador. Mas Kurosawa entrelaça esses sentimentos com a maldade e o processo de enlouquecimento de Hidetora ao desnudar seu passado cruel, quando queimou castelos, matou famílias e cegou crianças. Novamente, surge o dilema filosófico do rei Lear de Shakespeare, do Kharlov de Turguêniev e do Hidetora de Kurosawa: o rei (o ser humano) é culpado por seu destino?.
O rei lear da estepe
.De Ivan Turguêniev
.Tradução de Jéssica Farjado
.128 páginas
.Editora 34
.R$ 46
Um romance eterno
“Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é infeliz a seu próprio modo.” Essa é a abertura mais famosa da literatura, que leva o leitor ao destino de Anna Kariênina e inúmeros personagens da monumental obra-prima de Lev Tolstói (1828-1910), que chega ao mercado brasileiro pela Editora 34, com tradução de Irineu Franco Perpetuo. Díficil descrever em poucas linhas a grandiosidade da obra, que vai muito além da trágica trama de adultério envolvendo a protagonista e o conde Aleksei Vrônski, um tema batido na literatura, mas que sob a pena do autor russo ganha dimensão transcendental pela riqueza de detalhamento dos sentimentos controversos dos personagens e do mundo em que vivem.
Para muitos escritores, críticos e leitores, “Anna Kariênina”, publicado nos anos 1875-77, é o maior romance de todos os tempos. E não é para menos mesmo. A obra supera a traição conjugal. Tolstói reconstrói a Rússia imperial do seu tempo com impressionante precisão, entre muitas transformações entre a vida rural e a industrialização com a chegada das ferrovias, e transforma vários dos 46 personagens em protagonistas, como o proprietário de terras Konstantin Dmítrievicth Lióvin, o alter ego de Tolstói e a figura mais emblemática e interessante da obra. É com Lióvin que Tolstói vai levantar as grandes questões da vida, principalmente as existenciais, espirituais e sociais.
Enquanto a bela e sedutora Anna Kariênina deixa apaixonados por ela os homens à sua volta – e também o leitor –, atravessa a longa obra envolvida no dilema passional com Vrônski e tenta se livrar do jugo do marido, a quem não ama, o servidor público Aleksei Kariênin – e por isso vai sofrer uma terrível perseguição da aristocracia hipócrita que a cerca – Lióvin leva o leitor a reflexões metafísicas: “Sem o conhecimento do que sou e por que estou aqui é impossível viver. Não posso saber disso e, consequentemente, é impossível viver”, diz Lióvin para si mesmo. “'No tempo infinito, na matéria infinita, no espaço infinito surge um organismo-bolha, essa bolha se mantém por um tempo e estoura, e essa bolha sou eu' (…) Quando Lióvin pensava no que era, e para quê vivia, não encontrava resposta, e entrava no desespero, porém quando parava de se perguntar isso, era como se soubesse o que era e para que vivia, pois vivia e agia de modo firme e determinado.'”
Em busca de uma vida ideal no campo, Lióvin, principalmente depois que se casa com sua adorada Kitty e tem um filho, segue com seus tormentos intelectuais. Lastreados ao drama existencial está a problemática social dos mujiques (camponeses) de sua propriedade. Ele quer garantir a eles uma vida melhor para todos, mas esbarra na incompreensão da divisão hierárquica entre patrão e empregado. “Lióvin é antes de tudo um senhor rural, cujas preocupações com as questões do campo refletem as próprias preocupações e angústias de Tolstói. As cenas no campo são descritas com muito detalhismo. Tolstói sabia muito bem do que estava falando”, destaca o tradutor Irineu Franco Perpetuo ao Pensar.
A complexidade de Anna Kariênina é bem definida pelo escritor Milton Hatoum, que assina a orelha dessa nova edição: “Não é fácil dizer quem são as personagens mais relevantes e complexas desta obra-prima da literatura. Elas podem ser Kitty e o fazendeiro Lióvin; ou o príncipe Vrônski e Anna Kariênina. O narrador contrapõe esses dois casais na abertura famosa do romance de Tolstói: ‘Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é infeliz a seu próprio modo’”.
Hatoum diz que, “ao contrário de outras heroínas do século 19, Anna Kariênina não alimenta suas fantasias amorosas na leitura de romances, pois é capaz de realizar seus sonhos e desejos. Por isso é admirada, temida e invejada por outras personagens — femininas e masculinas —, submissas a normas da sociedade e a convenções morais de seu tempo”. Neste contexto, “Anna não cede a nada disso. Ela fascina o leitor por sua beleza, encanto e inteligência, mas principalmente pela força de seu caráter, pela decisão corajosa de viver até o fim uma história de amor, a despeito de tantas adversidades, que conduzem ao destino trágico”.
Hatoum destaca também o drama de Lióvin. “Alter ego de Tolstói, ele questiona os dogmas da ortodoxia cristã e também a crença na razão, tão em voga no século do positivismo e do cientificismo. A desigualdade social, a educação do povo e o anseio por uma vida comunitária eram também obsessões do autor, igualmente debatidas no livro por Lióvin e outros personagens”, avalia o escritor. “Nesse sentido, as indagações religiosas, sociais e filosóficas, com suas controvérsias e impasses, adquirem relevo e convidam o leitor a refletir, em qualquer tempo e lugar, sobre a existência humana. Nisso reside a grandeza de um verdadeiro clássico, que sempre será lido com fervor e paixão”, conclui Hatoum.
“Anna Kariênina” tem quatro versões para o cinema. Duas ótimas com a enigmática atriz sueca Greta Garbo (1927 e 1935), com Vivien Leigh (1948) – a Scarlett O'Hara de “E o vento levou...”, com a paixão à flor da pele – e duas razoáveis com Sophie Marceau (1987) e Keira Knightley (2012), esta em produção requintada, mas que é mais do mesmo. (PN)
Anna Kariênina
.Lev Tolstói
.Tradução de Irineu Franco Perpetuo
.Prefácio de Thomas Mann
.861 páginas
.Editora 34
.R$ 119
.R$ 59 (e-book)
ENTREVISTA / JÉSSICA FARJADO / Tradutora de “O rei Lear da estepe”
“Turguêniev chama Shakespeare de semideus”
Quais as maiores dificuldades de traduzir um texto escrito há 150 anos e com especificidades tão locais, como a cultura e o folclore russos? Exige amplo conhecimento sobre o mundo imperial russo daquele tempo?
As dificuldades vão desde encontrar pronomes ou indicadores de formalidade adequados, até manter desvios de fala que conferem humor à narrativa. Por vezes, chegarmos a ter equivalentes em português não basta, sendo necessário recorrer a notas de rodapé para explicar o contexto ou recuperar o sentido do texto original, como no caso dos elementos folclóricos ou de algumas expressões idiomáticas. Também na cena em que Kharlov reúne convidados para presenciarem a execução da ata de transferência de seus bens para as filhas, por exemplo, surgem as figuras do “isprávnik” e do “stanovói”, que são denominações mais ou menos equivalentes aos cargos de chefe e comissário de polícia, especificamente do sistema de administração rural vigente de 1864 a 1918.
Turguêniev, Tolstói e Dostoiévski são os três autores mais importantes da literatura russa na segunda metade do século 19. Em sua avaliação, o que une e o que diferencia as narrativas desses três clássicos? Parece que Dostoiévski não gostou de “O rei Lear da estepe”.
Provavelmente, há mais diferenças do que semelhanças entre os três, e uma das diferenças é o tom menos religioso e moralista de Turguêniev em relação a Tolstói e Dostoiévski. Uma característica comum seria o respeito pela subjetividade, como destacou a crítica Donna Orwin ao afirmar que Turguêniev mostra esse respeito, se colocando como um observador que nunca descreve o interior de seus personagens em detalhes ou com precisão. Já Dostoiévski não explica seus personagens, mas, ao contrário, permite que eles falem por si próprios, enquanto Tolstói dá a eles a liberdade de dizerem o que pensam e de se defender, embora muitas vezes ostente sua presença autoral. De fato, Dostoiévski reprovou “O rei Lear da estepe” e revelou em carta: “Não gostei de jeito nenhum. Uma coisa pomposa e vazia. O tom é baixo”. Para ele, Turguêniev tratava determinados fenômenos da vida russa com sarcasmo: “Ele obviamente tem pensamentos diferentes sobre a vida russa, mas não ousa expressá-los de forma direta e clara, e sempre conta histórias estranhas e casos curiosos que parecem não ter mais significado.” Havia um ressentimento por Turguêniev viver longos períodos fora da Rússia, levando Dostoiévski a crer que essa distância havia prejudicado sua percepção da sociedade. Entretanto, parece ter ocorrido justamente o oposto, visto que Turguêniev se consagrou como um cronista de sua época.
Como você diz no posfácio, “O rei Lear da estepe” é ao mesmo tempo inspirado na peça de Shakespeare e também autobiográfico, com parentes e vizinhos como protótipos da obra. Por que a obra de Shakespeare tinha tanta influência na Rússia 250 anos após sua morte?
A influência de Shakespeare na literatura russa é uma questão profunda e complexa, que tem sido objeto de estudo desde o século 19, em especial a figura de Hamlet, que é usada como um paralelo ao tipo “homem supérfluo” enquanto representante da geração de 1840, marcada pelo fastio e inação ante os problemas da sociedade. No ensaio “Hamlet ou Dom Quixote”, Turguêniev chega a chamar Shakespeare de semideus, exaltando “a riqueza e o poderio de sua fantasia, o brilho supremo da sua poesia, a profundidade e a amplitude da sua imensa inteligência.” Quanto a “O rei Lear”, em seu discurso sobre o dramaturgo inglês, Turguêniev realça a maestria de Shakespeare em investigar os mistérios da vida e as fraquezas humanas. O fato é que esse contato com outro contexto cultural e a constante apropriação de temas e imagens de Shakespeare pelos escritores russos trouxeram à tona diferentes aspectos da obra shakespeariana.
Martin Petróvitch Kharlov, o rei Lear de Turguêniev, por ser personagem de uma novela e não de uma peça, é mais bem caracterizado do que o protagonista de Shakespeare. Impressiona pela força física e mental e pela capacidade de reagir. Isso dá à obra de Turguêniev uma vida literária própria, independente da original, apesar do nome no título?
Certamente, pois a caracterização de Kharlov é rica e repleta de significados. Ele é retratado como um gigante, enorme e forte, e comparado a diversas figuras do folclore russo, como o bogatir, herói dos poemas épicos, inclusive com lendas próprias; a um urso, símbolo importante da cultura russa, com conotações ao mesmo positivas e negativas; ao “liéchi”, espírito da floresta, que recebeu traços negativos com o cristianismo; a uma “kikimora”, personagem feminina da mitologia eslava que traz prejuízos ao habitante da casa onde se instala; e até ao ciclope grego Polifemo, que devorou seres humanos. Também a predominância de aspectos sociais e psicológicos – em vez de morais e políticos, como em Shakespeare –, com as crises de melancolia, sonhos e leituras do protagonista, além da representação do cotidiano em solo russo, conferem à novela de Turguêniev vida literária única.
Qual a cena mais forte ou marcante de “O rei Lear da estepe”? Seria aquela trágica em que ele se revolta com as filhas, sobe no telhado e começa a destruir o seu reino, literal e simbolicamente?
Há muitas cenas marcantes na novela, como aquela em que se conta que Kharlov teria segurado a carruagem de Natália à beira de uma ravina, ou quando o narrador o encontra na represa pescando sem isca e o leva a ter um acesso de raiva. A cena final é provavelmente a mais forte, mas vale ainda destacar o momento após a cerimônia de execução da ata de transferência dos bens de Kharlov às filhas, quando Suvenir, já bêbado, zomba de Kharlov dizendo que aquela ação levaria ao seu fim, enquanto Anna intervém em defesa do pai e Evlâmpia permanece impassível.
O cineasta japonês Akira Kurosawa também fez sua versão de “O rei Lear” com o filme “Ran”, em 1985. Na obra também estão temas caros ao ser humano, como ingratidão, sofrimento e vingança. Mas o principal parece ser a culpa, que o próprio Lear admite ter por causa do seu julgamento errado das filhas? Ele é culpado por seu destino? Sua morte não foi fortuita?
Acredito que estamos diante do paradoxo da predestinação, pois tanto Lear quanto Kharlov vão ao encontro de seu destino ao tentar modificá-lo, pois acreditam que a morte se aproxima e por isso devem abdicar da maior parte de seus bens e poder. No entanto, os protagonistas morrem justamente em consequência dessa decisão. No caso de “O rei Lear da estepe”, no final do penúltimo capítulo, o narrador afirma: “Tudo no mundo — bom ou mau — é dado às pessoas não por mérito, mas em consequência de algumas leis ainda desconhecidas, porém lógicas, que não cabe a mim apontar, embora às vezes pareça-me senti-las vagamente.” Essa afirmação poderia ser interpretada como o fato de a possibilidade de alterar o destino estar além, não apenas da capacidade de ação, mas também de compreensão do homem.
Afinal, o livro de Turguêniev tem características de antissemitismo ou é uma denúncia disso devido às referências “judeuzinho”, “imprestável” e “detestável” ao personagem Sliótkin, feitas pela mãe do narrador?
A intenção de Turguêniev sempre foi a de retratar a sociedade como realmente era, inclusive suas falhas e preconceitos. Em março de 1881, após o assassinato do tsar Aleksandr II, teve início uma onda de ataques e perseguições aos judeus, denominada progrom. Tal situação levou o escritor Iosif Nikoláievitch Sorkin a pedir que Turguêniev publicasse um texto denunciando a perseguição que os judeus estavam sofrendo no país. Em carta de julho de 1881, o escritor explica: “Como escritor de ficção, é muito provável que reproduza essa questão em uma obra separada; como publicista, não tenho importância, e minha aparição não só não traria nenhum benefício, mas despertaria espanto, talvez até zombaria”. Em carta de maio de 1882, Turguêniev também afirma sobre essa questão: “A única maneira de parar todos esses ultrajes seria uma palavra do tsar em voz alta que o povo ouviria nas igrejas...” É possível que sua saúde, já bastante debilitada na época, infelizmente tenha nos privado de conhecer sua obra de denúncia do antissemitismo. (PN)